josé carlos morel* I
Era um feriado prolongado, talvez a Semana Chata de 1973, se não me falha a memória. Eu tinha 21 anos, trabalhava como técnico de Química e estudava à noite, e estava muito excitado: iria conhecer pela primeira vez os anarquistas. Nesta altura já tinha travado conhecimento — através de Marcelo Lima — com Jaime, Chico Cubero e sua famosa sapataria havia cerca de dois anos, mas não conhecia os outros companheiros. Os anos eram ainda de chumbo com a milicada deitando e rolando, Pinochet dando o golpe no Chile, o oportunismo do “Brasil ame-o ou deixe-o” e outras merdas do mesmo tipo. Entre a esquerda, o anarquismo era considerado naquela época como “ideologia pequenoburguesa” no melhor dos casos e, no pior, como “um pensamento objetivamente de direita” . Não obstante, eu achava-me excitado, ansioso, feliz, pois iria finalmente encontrar-me com pessoas concretas que viviam um ideal que compartilhava e que eu havia muito buscava. Foi memorável: o encontro estava marcado para “Nosso Sítio”, no meio da Serra do Mar.
Conforme vim a saber depois, estas reuniões estavam sendo rearticuladas depois que a repressão havia se abatido sobre os companheiros do Rio de Janeiro. Era a terceira vez que os anarquistas se reuniam em grande grupo, depois que Ideal Perez havia saído da cadeia. Fazia frio. Encontrei um pequeno sítio de aspecto banal mas bem cuidado, com cerca de quarenta pessoas reunidas, velhos, velhos muito velhos, gente de meia idade e crianças. Jovens então muito poucos, filhos de alguns companheiros.
Havia muita gente e eram três horas da tarde. Gumercindo, Diamantino e algumas companheiras começavam a preparar o jantar (não era tarefa fácil, pois não havia eletricidade, os fogões eram a lenha e a iluminação a querosene e gás), outras pessoas estavam preparando os quartos para pernoite; um terceiro grupo estava se ocupando de uma construção e outros companheiros estavam dispersos pelo mato carpindo ou simplesmente passeando.
Marcelo sumiu e me deixou “entregue às feras”; eu não conhecia ninguém e quase tive um ataque de paranóia. Em meio a tanta gente, um velhote de cabelos quase brancos, baixinho, gorducho e rubicundo, pescou-me: era Antônio Martinez.
Não sei se por acaso ou premeditadamente tivemos que compartilhar aquela noite o mesmo leito improvisado eu, Martinez e Oliva. No dia seguinte praticamente não me largou — mostrou-me o sítio, conversamos sobre muitas coisas, desde captação de águas até a crise chilena, contamos piadas e aos poucos eu fui me acalmando... Como já tive oportunidade de dizer várias vezes, aquele fim de semana foi o início de uma verdadeira transmutação de personalidade para mim.
II
Antônio Martinez nasceu em 1915, no bairro do Brás, em São Paulo. Seus pais eram imigrantes espanhóis que repetiram a saga de muitos de nossos antepassados: fugiram da fome e da exploração na Europa para cair nas garras exploradoras dos democráticos fazendeiros de café paulistas, na virada do século.
Seu pai e seu tio tiveram que apelar para a força para conseguirem escapar da fazenda onde trabalhavam, na região de Araraquara: colocaram a família e as coisas em um carroção e, cada um munido de uma espingarda, mantiveram o capataz sob mira até saírem da fazenda. Não sei como seus pais chegaram a São Paulo; sei somente que ele era o primogênito de três filhos — suas duas irmãs ainda estão vivas — e que passou grande parte de sua vida morando nos cortiços da Rua Caetano Pinto, que ele sabia descrever viva e pitorescamente.
Muito avesso à publicidade, Martinez não deixou nada escrito, recusava-se peremptoriamente a, até mesmo, deixar depoimentos gravados, como o fizeram muitos companheiros. Quando conseguimos convencê-lo a fazer isto, depois da morte de Jaime Cubero, o tempo já era escasso: o câncer consumiu-o rapidamente.
Sem dúvida seu depoimento teria sido de extrema valia para a reconstituição da vida operária paulistana entre as décadas de 20 e 40. O pouco que sobrou da memória de nossas conversas nem ao menos é um relato contínuo. São fiapos de confidências, fragmentos de experiências concretas citados ao longo de discussões políticas e estratégicas, ou episódios contados por outros companheiros.
Seu pai foi certamente militante operário e sua mãe conservou algumas crenças católicas. Aos companheiros que visitavam sua casa e que estranhavam as imagens de santos, seu pai respondia: “aqui exercemos a liberdade; ela não interfere em minhas convicções e eu respeito as dela”. Seu pai era analfabeto, mas fez muitos esforços para que seus filhos pudessem estudar um pouco. Tanto Martinez quanto suas irmãs conseguiram terminar o curso primário. Ele se recordava com carinho que, ainda menino, seu pai lhe presenteou com alguns livros, entre eles uma Aritmética Progressiva, que o auxiliou muito até na vida profissional, e livros infantis anarquistas. Mais tarde foi um ávido leitor das brochuras de La Novela Ideal. Seu pai parece que faleceu muito cedo (antes de 1941) e sua mãe viveu até 1968 ou 69. Ela, ao que parece, tinha uma quitanda na Av. Celso Garcia. Desde muito cedo Martinez habituou-se a acompanhá-la ao Mercado Municipal para as compras, e foi lá, segundo ele próprio, que adquiriu modos peculiares de alimentação. Embora não fosse um vegetariano militante, Martinez comia pouca carne e quase nunca tomava refeições completas. Segundo ele, ao acompanhar a mãe ao mercado, e tomando conta das compras, ia provando frutas, legumes, e ganhava algumas guloseimas dos comerciantes de modo que no horário habitual das refeições já estava locupletado. De fato, mesmo em “Nosso Sítio” muitas vezes seu almoço eram caquis, bananas, ervadoce e tomates que colhia no pé durante a manhã. À noite, geralmente, gostava de uma sopa bem grossa e muito pão, ou então café com leite e bolachas. Apesar de ser cardíaco crônico, era fanático por sementes oleaginosas — amendoim, castanha do Pará, amêndoas — todas as frutas secas enfim. Era um abstêmio convicto, rigoroso. Não sei ao certo, mas parece que isso se deve a alguns casos de alcoolismo em sua família. Gostava muito de futebol mas não torcia por nenhum time, sendo um excelente ponta direita, segundo a opinião de muitos companheiros, e, como ele próprio uma vez me contou, chegava durante as noites de verão a jogar até quatro horas de “pelada” nos campos do Tamanduateí, sempre disputado por vários clubes de várzea.
É muito difícil se falar dos amigos mortos. O nosso envolvimento é muito grande com eles de modo que excesso ou falta de críticas ou encômios podem ser facilmente interpretados, com muita verdade aliás, como cegueira passional do relator. Alguém mais afastado certamente faria melhor obra, mas o Martinez sobrevive apenas na memória de seus próximos, de modo que nos incumbe a tarefa espinhosa da biografia. O leitor será obrigado a perdoar o tom grandemente pessoal destas linhas, mas Martinez foi o último de meus “pais anarquistas”, juntamente com Jaime Cubero e Ideal Perez, que souberam forjar meu caráter político e ético. Não tenho pejo em admitir que se não os tivesse encontrado na altura da vida em que os encontrei, seria certamente um sujeito muito pior do que sou, um tecnocrata de bela alma, mas tecnocrata, ou talvez um petista “ligth” exercendo meu socialismo bienalmente durante as eleições e cuidando de minha vida e carreira no intervalo entre elas, sei lá ...
Destes três pais, meu vínculo afetivo mais forte foi sem dúvida Jaime Cubero. As personalidades de Ideal e Martinez eram menos propícias a pessoalidades, suas características psicológicas eram bastante distintas, não obstante a origem social bastante próxima: o operariado emigrante paulistano de começos do século XX. Jaime era mais aberto, amigável, uma personalidade branda e boníssima, basta se ver a unanimidade com que era aceito nos mais diversos ambientes, libertários ou não. Ideal e Martinez eram personalidades mais fortes e menos flexíveis, duma retidão que muitos confundiam com rigidez. A isso Martinez acrescentava um estilo de vida espartano, pouco apropriado a uma sociedade de consumo, e uma discrição e modéstia tão sólidas que evitavam até mesmo que se tornasse mais visível como militante. Seu domínio, como ele mesmo gostava de dizer, era o trabalho de base, no apoio e infraestrutura. Martinez foi talvez o último exemplar paulistano de um tipo social que o Anarquismo soube criar muito bem por mais de um século: o operário intelectualizado, militante apaixonado da Revolução Social, para o qual o cotidiano não está separado das aspirações.
Hoje em dia , quando é mais fácil encontrar em nossas fileiras um professor universitário do que um operário metalúrgico, em dias também nos quais, como sabe muito bem qualquer um que tenha trabalhado algum tempo em fábrica, a ideologia de um operário médio não se distingue muito do pensamento hegemônico da classe média afluente, e onde o sonho de um futuro de abundância e liberdade para toda a sociedade parece ter sido substituído pelos sonhos mais concretos e mais banais de consumo imediato e individual fomentado brutalmente pelo “marketing”; em dias nos quais falar-se ou pensar-se em qualquer questão propriamente social significa arrostar toda uma “rationale” econômica que pretende ter descoberto o segredo último do bom funcionamento da sociedade no desenvolvimento “livre” do mercado, nestes dias, talvez, pensar que alguém tenha podido viver até os 83 anos coerentemente com seus ideais, em extrema modéstia mas longe da indigência humilhante, alguém que tenha se deitado apenas por dois meses para morrer e que, mesmo assim, ainda estava envolvido com planos e projetos, lamentando apenas que sua ampulheta estava se esvaziando, alguém que mesmo velho não permitia que o considerassem como um traste inútil, contrapondo-se deste modo muito prático às imagens usuais da sociedade de consumo que associam glória, fama e poder a uma minoria de semideuses eternamente jovens pelo acesso ao capital e ao consumo, enfim, rememorar alguém, nestes brutos e feios dias, como o companheiro Martinez pode nos servir de alento e lição.
III
Um operário intelectualizado sim. Martinez era um leitor ávido. A começar dos jornais cotidianos, que nunca dispensou, e da imprensa libertária, que acompanhava com regularidade. Tinha bons conhecimentos de Proudhon e Bakunin, cujas obras relera várias vezes na edição de La Protesta, mas era especialmente envolvido com a produção cultural do anarquismo espanhol, La Novela Ideal, que já mencionamos, mas também as obras mais densas de Anselmo Lorenzo, Ferrer, Federico Urales, Federica Monseny, José Peirats, Abel Paz e Felipe Alaiz, entre outros. Apaixonado por economia , estava empreendendo nos últimos anos um estudo sistemático dos livros de Abraham Guillén. Seus livros de cabeceira eram El Proletariado Militante, de Anselmo Lorenzo e Nacionalismo y Cultura, de Rudolf Rocker; por este último texto devotava um carinho especial, tendo-se munido de vários exemplares dele , com os quais presenteava, seguindo critérios que desconheço, algumas pessoas; eu mesmo possuo um destes exemplares, encadernado por suas mãos.
Mas Martinez, por mais ilustrado que fosse, sempre foi um homem de ação. A própria cultura que acumulara, somente tinha sentido para ele na medida em que pudesse servir de estímulo, aclarar ou auxiliar a ação política. Era partidário da militância dos anarquistas nos sindicatos, embora sem tomar cargos de direção, assim como era favorável à ação dos centros de cultura.
Martinez tinha 14 anos quando seu pai o levou pela primeira vez à Federação Operária de São Paulo, que reunia as organizações sindicais anarquistas do que hoje denominamos região da grande São Paulo, além das da própria Capital. Segundo sua descrição, a FOSP ocupava um prédio grande na Praça da Sé, munido de um saguão e de um amplo salão no térreo e de um mezanino, cheio de salas menores aonde estavam as sedes de vários sindicatos da cidade e de alguns jornais operários. No Salão, munido de um palco, ocorriam durante os fins de semana as conferências, recitais, espetáculos de teatro e bailes e, durante a semana, as assembléias sindicais ou reuniões maiores do movimento operário. Como se vê, uma organização ainda bastante robusta para um movimento cuja morte mágica, segundo alguns historiadores, teria ocorrido em 1922 por ocasião da fundação do Partido Comunista.
Embora seu pai não tivesse permitido que trabalhasse antes dos 18 anos (seu argumento era: Não te apresses, pois terás que trabalhar a fartar quando chegar a tua hora), Martinez participava das atividades sindicais junto com seu pai e é dele que tenho alguns episódios mais vivos do cotidiano operário que não estão nos livros.
A repressão aos anarquistas desde o governo de Epitácio Pessoa e Arthur Bernardes foi, como se sabe, muito dura. A esta repressão governamental vieram se somar, desde o final da década de 20, os conflitos com os comunistas e os integralistas.
O conflito com os integralistas era de certo modo esperado e inevitável. O confronto com os comunistas, entretanto, foi o mais doloroso. Como se sabe, desde a fundação da III Internacional, em Moscou, a orientação do movimento comunista era clara: todas as organizações operárias que não pudessem ser cooptadas ou absorvidas pelos comunistas deveriam ser destruídas. A luta no seio da CGT francesa talvez seja o exemplo mais típico dos resultados de tal orientação. No Brasil tal orientação resultou em uma verdadeira guerra promovida contra as organizações anarquistas pelos grupos comunistas, que não recuaram diante de nenhum método, por mais sórdido que fosse, para atingirem seus fins e, deste modo, lançaram mão de assassinatos (como o caso de Riccardo Cipolla em São Paulo) delações, empastelamentos e principalmente agressões. Martinez, embora adolescente, foi testemunha deste período, e relatava como, ao terminarem as reuniões e atividades na FOSP, os operários e suas famílias tinham que se organizar em grupos para poderem chegar em segurança a suas casas, pois os bandos de comunistas e fascistas, acoitados em pontos estratégicos, aguardavam os incautos solitários para surrar-lhes. Os pontos preferidos destas agressões eram a Av. Rangel Pestana (então em construção), o Parque D. Pedro e as Estações da Lapa e da Barra Funda.
IV
Martinez também participou da famosa Batalha da Praça da Sé, quando o povo de São Paulo conseguiu impedir que os integralistas de Plínio Salgado repetissem o ato de Mussolini com a Marcha sobre Roma. A FOSP e os anarquistas tiveram um papel preponderante neste evento. Costuma-se atribuir os méritos desta vitória a uma frente única antifascista que teria se formado em São Paulo por volta de 1933. Na verdade, como bem o demonstrou Jaime Cubero em uma palestra por ocasião do cinqüentenário do evento, os anarquistas já vinham atacando o fascismo desde 1924, com destaque para o trabalho pioneiro de Maria Lacerda de Moura, através de conferências e livros. Não foram certamente os únicos antifascistas do Brasil, mas foram com certeza os primeiros, os mais ardorosos e os menos ambíguos. O fato é que os anarquistas não participaram da tal frente ampla. Não tinham motivos para tanto, senão vejamos: os comunistas os caçavam quotidianamente pelas ruas, os trotskistas muitos deles egressos do PC, embora fossem fracos, não mereciam maior confiança, e setores da burguesia liberal paulista sempre demonstraram muito bem ao que vieram, quando não é só lembrar a verdadeira razia que patrocinaram em 1924, quando da insurreição do General Isidoro Dias Lopes sobre os bairros operários, com agressões, violações, empastelamento de jornais e associações, mortes e prisões em massa de anarquistas e militantes operários. Diante deste quadro, a resposta do Movimento Anarquista não poderia ter sido outra: faremos a unidade no domingo , na praça da Sé. E assim foi .
O episódio foi dramático. Muitos “camisas verdes” (ou camisas de Vênus, como os gostava de denominar o desbocado Roberto da Neves) foram cooptados em cidades pequenas do interior e não conheciam São Paulo.
A FOSP pretendia ocupar a Praça da Sé e impedir a qualquer custo que a manifestação ocorresse. Na madrugada já havia operários na praça, mas a Polícia e o Exército também lá estavam acampados no recinto da nova Catedral que então se construía. No flanco esquerdo das escadarias da Catedral foi instalado um ninho de metralhadoras.
Os integralistas estavam se reunindo na Praça da República e no Largo de São Francisco. Ao meio-dia já estava a praça completamente tomada. Os integralistas então organizaram sua passeata colocando à frente mulheres e crianças, com o fim óbvio de utilizá-las como escudo, e visavam entrar na praça pelo seu flanco direito. Alguns batedores operários, postados no alto dos prédios, prontamente perceberam a manobra e como resposta abriram suas fileiras em duas colunas, de modo a permitir a passagem do escudo, mas fechando-se num forte movimento de pinça sobre os flancos dos integralistas.
Havia, entretanto, um inconveniente maior nesta tática: ao praticarem-na, os operários exporiam necessariamente sua retaguarda ao ninho de metralhadoras e seriam facilmente varridos, sob o pretexto de controlar o tumulto. Foi então que alguns companheiros mais experimentados, tendo à frente João Perez e o ucraniano Stepanovitch, propuseram-se a assaltar o ninho, o que conseguiram com sucesso e discretamente. Garantidos em sua retaguarda puderam deste modo dar seqüência a sua tática. Os integralistas, confiantes no seu escudo humano e no apoio tácito das forças da ordem, foram apanhados em uma ratoeira. Contava o companheiro Martinez que depois de uns dez minutos de tiroteio começaram a debandar, alguns até “esquecendo” mulher e filhos. Faziam qualquer coisa para se desfazer de suas camisas verdes. Alguns, por falta de conhecimento da cidade, ao invés de se retirarem para a Vila Buarque, de onde vieram, lançaram-se em cheio sobre a Avenida Rangel Pestana, caindo totalmente desbaratados nas vielas operárias do Brás, outros literalmente tomavam de assalto bondes e táxis, qualquer coisa que os pudesse levar para longe da Sé.
Foi neste conflito que nosso companheiro fez suas primeiras armas. Tais impressões, bem como suas vivências de adolescente na FOSP, marcaram-no profundamente.
Seguiram-se dois anos como conscrito no Exército. Martinez serviu em Mato-Grosso: primeiro em um Batalhão de Fronteira, onde se feriu seriamente na perna. Depois de muitos meses em hospital militar foi transferido para um Batalhão de Cavalaria, onde terminou sua corvéia e foi desmobilizado. Passou alguns anos durante a ditadura de Vargas auxiliando sua irmã e seu cunhado, estabelecidos então como pequenos sitiantes na região de Bauru, e em seguida retorna a São Paulo.
V
Profissionalmente, Martinez exerceu vários ofícios: começou como cobrador de crediários de uma cadeia de lojas do Brás (Não sei se a Pirani ou se a Eletroradiobrás); por algum tempo foi auxiliar de cozinha. Logo depois da guerra entrou para a companhia Castelões, onde desenvolveu intensa atividade sindical, tendo inclusive liderado uma greve contra o patrão e contra a orientação do sindicato pelego de então. Demitido em conseqüência da greve, vai trabalhar na Fábrica de Parafusos Santa Rosa, como responsável pela têmpera de parafusos de grande porte. Sai de lá em conseqüência de um conflito com um contramestre fascista e ingressa à IBRAPE, que era então uma incipiente fábrica de válvulas eletrônicas associada à multinacional PHILIPS, e é lá que vai se aposentar em conseqüência de problemas cardíacos em 1973. Por volta de 1960 deixa o seu Brás querido e passa a residir no Parque Novo Mundo, em uma casa modesta mas confortável, que ele mesmo constrói auxiliado por um de seus cunhados, um excelente mestre de obras.
A grande atividade política de Martinez desenvolvese entre 1945 e 1966, quando é afetado por uma “angina pectoris” que o força a diminuir fortemente suas atividades por cerca de dois anos, e o faz dependente de Isordil até o final de sua vida. De 1966 até sua morte, concentra suas atividades ao apoio do Centro de Cultura Social e a algumas tarefas de base do movimento específico em São Paulo. Participou da União Anarquista de São Paulo desde a sua formação, em 1957 até a sua extinção, em 1969. Quando reorganizamos o GRUPO PROJEÇÃO, em finais de 1973, ele foi um de seus primeiros integrantes, juntamente com Jaime Cubero, Ideal Perez, Edgard Rodrigues e outros.
Sua atividade de agitador na Castelões foi de muita importância: dela extraiu dois axiomas que orientavam suas atividades políticas. Um deles era: se não puderes estar comigo, que ao menos não estejas contra mim. E o outro, Devemos abolir os rótulos, pois considerava prejudicial ao militante de base anarquista identificar-se prontamente enquanto tal. A seu ver, esta atitude, um tanto ingênua, serviria muito mais para neutralizar e isolar o companheiro, pelo próprio preconceito que a palavra “anarquismo” gera, do que para atrair pessoas sinceras ao seu redor. Na atividade sindical preconizava uma ação de claro conteúdo anarco-sindicalista, ou seja, partidária da ação direta e da autogestão das lutas, do controle operário de base do movimento, mas sem vincular tais idéias explicitamente com o anarquismo. Na medida em que as pessoas fossem se interessando pela proposta e que fossem se envolvendo com ela, então sim, se poderia com cuidado discutir mais claramente os nossos objetivos políticos mais amplos com elas e atraí-las para alguma de nossas organizações. Tais princípios de método me foram de extrema valia quando comecei a envolver-me mais seriamente com a questão sindical, a partir de 1975/76.
Na Castelões ele conseguiu não só levar uma greve a bom termo, atingindo as reivindicações concretas, como conseguiu destituir a diretoria do sindicato, articulando uma nova chapa ligada aos movimentos de base. Com a vitória desta chapa conseguiu acesso aos arquivos do sindicato onde encontrou papéis que ligavam umbilicalmente os diretores aos patrões, indícios de negociatas e corrupção, envolvendo, inclusive, os fiscais do Ministério do Trabalho. Informações estas que lhe foram muito úteis quando de um processo trabalhista que a firma lhe moveu e que ele conseguiu ganhar sem auxílio de advogados. Na Castelões também conseguiu muitos simpatizantes para o CCS, de cuja reorganização participou em 1945.
Outra luta séria que teve que desenvolver foi contra os comunistas. Lembrava-se muito bem de suas façanhas anteriores à ditadura, e com a reabertura do CCS pôde informar-se melhor do que acontecera e estava acontecendo na Rússia, e do papel da URSS durante a Revolução Espanhola, de modo que o marxismo nunca o seduziu. Durante seu trabalho na Castelões, alguns militantes de célula tentaram cooptá-lo sem sucesso. Como não conseguiram, começaram um processo de estigmatização que também não deu muito certo. Ele tinha conseguido alinhavar alguns apoios de base, de modo que as intrigas não chegaram a surtir efeito.
Esta luta também se travou no bairro, a ponto da célula do PC da Rua Caetano Pinto tê-lo colocado na lista negra. A tal respeito existe um episódio divertido. Depois de colocados na ilegalidade pelo governo Dutra, os comunistas concentraram suas táticas em aparelhar organizações populares, quaisquer que fossem. Martinez, que já os tinha enfrentado no Sindicato, deveria agora enfrentá-los no clube de futebol local. Para tanto, aproveitou o dia de uma visita de Luís Carlos Prestes a São Paulo e convocou a Assembléia do Clube para aquela data, tudo segundo os regulamentos. No dia marcado, obviamente, nenhum deles apareceu. Martinez, que tinha estudado minuciosamente os estatutos do clube e da federação, pediu para ver as contas e constatou que a maioria dos sócios comunistas estava muito atrasada com os pagamentos (é óbvio que as pessoas realmente interessadas não). Ele faz então votar uma moção de desligamento automático de todos os sócios em atraso por mais de três meses sem justificativa, como facultavam os estatutos. Procede-se então às eleições da Diretoria do Clube, sem a menor participação dos comunistas nela ou no quadro associativo. Poderíamos nos estender em dezenas de histórias deste tipo, mas estas são suficientes para amostrar o seu caráter.
VI
Durante a sua crise de angina, Martinez, que estava afastado do trabalho por ordem médica, pôde desenvolver um trabalho de imensa repercussão histórica, cujos créditos, agora que está morto, podemos francamente estabelecer: trata-se da organização do arquivo de Edgard Leuenroth. Como já é sobejamente conhecido, o companheiro Leuenroth reuniu durante sua vida de militante um imenso acervo de documentação social, que hoje constitui o núcleo do Arquivo Edgard Leuenroth, da UNICAMP. Este arquivo foi sendo continuamente enriquecido com doações de muitos outros companheiros e de materiais que chegavam ao CCS, de modo que se constituía, em meados dos anos 60, no melhor arquivo de História Social do Brasil. Estava instalado naquele tempo em uma ampla sala de um velho edifício comercial, que já não mais existe, situado na Rua Ricardo Gonçalves (aliás, um poeta anarquista do começo do século, prematuramente desaparecido em uma tragédia amorosa). Tal sala era alugada pelo companheiro Luca Gabriel, e o arquivo era considerado pelo próprio Edgard como um patrimônio do movimento. Ocorre que o material estava tremendamente desorganizado, dadas as suas constantes mudanças de localização, por motivos de segurança ou financeiros, desde 1930. Martinez então propôs-se a ajudar na organização do material. Muito sistemático, tinha aprendido muito sobre almoxarifado na IBRAPE, fez um curso de encadernação e começou então uma tarefa hercúlea que iria lhe tomar os próximos 8 anos: reorganizou, com o auxílio de Jaime Cubero e de outros companheiros, praticamente todo o arquivo, restaurou coleções de documentos, completou e encadernou coleções de jornais e periódicos, etc. Quando John Foster Dulles esteve no Brasil buscando subsídios para o seu bisonho livro, deparou-se com um arquivo razoavelmente organizado e não com um amontoado de papel velho. Nesta ocasião (1967 - 68), o trabalho de organização ainda nem atingira metade do material, mesmo assim foi suficiente para fascinar Mr. Dulles. Segundo o depoimento de Martinez, que o assistiu na coleta de dados, ele trabalhava ininterruptamente nas notas por horas a fio, já trazendo um maço de lápis previamente apontados e não parava sequer para urinar...
Mr. Dulles queria levar a todo custo o material para Austin, no Texas, e felizmente não o conseguiu. Edgard Leuenroth falece em 1969, e deixa uma carta recomendando que o Arquivo seja entregue a uma comissão de oito companheiros. A família, entretanto, de repente percebe que aqueles papéis bolorentos valem dinheiro, e começam entabular, à socapa, negociações para vendêlo. Martinez, que possuía um faro muito apurado, percebe tais maquinações e juntamente com outros companheiros planeja uma transferência do material para um lugar seguro no Rio de Janeiro. Tal plano é apenas parcialmente executado, e, de fato, o material restante, infelizmente a parte mais substancial, é vendido à UNICAMP, onde constitui o núcleo do seu atual acervo de História Social. Seja dito, a bem da verdade, que grande parte das cláusulas estipuladas no contrato de venda até hoje aguardam serem cumpridas, como a publicação de dois livros póstumos de Edgard, que os tinha preparado em seu leito de morte, e o acesso permanente de membros da família Leuenroth e de dois delegados do movimento anarquista ao acervo.
Deste modo, o modesto operário Martinez está na raiz de toda uma produção cultural que foi gerada nos últimos 25 anos na UNICAMP. Como diz Brecht: “quem construiu as muralhas de Tebas, a das mil portas?”
Aproveitando os seus ócios forçados, Martinez também atuou nesta época em uma importantíssima atividade do CCS, que foi o Laboratório de Ensaio que, sob a influência de Francisco Cubero e do veterano Pedro Catallo, renovou a tradicional dramaturgia política anarquista, com as modernas técnicas do teatro de Brecht, Grotowski e outros. Vivendo um período de ebulição política e cultural, esta experiência ainda aguarda o seu historiador. Ela revolucionou a cena clássica anarquista, além de lançar novos rumos, tanto na direção do espetáculo como no conteúdo dos textos. Foi um período muito fértil para o anarquismo paulista, embalado pela revolta estudantil na França e brutalmente encerrado com a Edição do AI-5, em 13/12/1968. Com a crescente complexidade das peças, e dada a exigüidade da “arena” onde ocorriam os espetáculos, o trabalho de contra-regra era essencial, e mais uma vez foi o anônimo Martinez quem se dispôs para tal tarefa, assegurando, durante quase três anos, ao menos duas noites de espetáculo por semana.
Durante o período de dispersão do movimento que se estende de 1969 até 1976/77, onde o lançamento do jornal O Inimigo do Rei traz consigo uma nova geração de anarquistas no cenário político brasileiro, Martinez é um dos que ajuda a “catar os cacos” do movimento. Já dentro do Projeção, realiza um importante trabalho, retomando o contacto com antigos companheiros afastados do movimento, a maioria pela idade já avançada, e recolhe suas bibliotecas e papéis pessoais, que vêm a se constituir no fundo atual do Centro de Cultura Social. Em 1975, juntamente com Jaime Cubero, ele auxilia Maria Tereza Vargas a achar e articular materiais para a sua importante dissertação sobre o Teatro Operário em São Paulo. Com o crescimento das atividades anarquistas a partir de 1977, sempre presta a maior colaboração possível. Estava na reunião de fevereiro de 1977, quando se decidiu transformar o Inimigo do Rei em um jornal nacional, e nas freqüentes reuniões que realizávamos em “Nosso Sítio” ele quase sempre estava presente apoiando na infraestrutura e “conversando com os meninos”.
A partir de 1979 os anarquistas começam a retomar à cena pública. Surge então no Grupo Projeção a idéia de se formar uma livraria ambulante por correspondência e, mais uma vez, é Martinez que se encarrega da banquinha de livros, que marcará muitas das atividades públicas dos anarquistas nas décadas de 80 e 90, e cuja atividade postal em muito auxiliou a divulgação do anarquismo no Brasil. Sempre discreto, nunca quis ocupar a ribalta, que preferia deixar com Jaime ou com Ideal ou mesmo com algum companheiro mais moço. Fazia, entretanto, um importante trabalho de costura ao conversar ao pé da orelha com as pessoas que se aproximavam do evento. Seu último ímpeto militante, ele o investiu na reorganização do Centro de Cultura Social, a partir de 1982. Esteve presente em todas as reuniões preparatórias, enfrentou com galhardia discussões rebarbativas e bizantinas, e fez finalmente parte da comissão administrativa do CCS nos seus quatro primeiros mandatos, preparando uma nova geração de companheiros para sucedê-lo. Mesmo sem ocupar cargos, era um pau para toda obra, sempre podíamos contar com ele para auxiliar nos trabalhos do centro: auxiliava na manutenção, mantinha a livraria, fazia pagamentos e compras que não podíamos realizar em horário de trabalho e, principalmente, estava lá quase todo o sábado, em quase todas as manifestações de rua, em todos os cursos e palestras externos que realizamos nos últimos quatorze anos. Ficava muito irritado quando não se conseguia dar continuidade às atividades do CCS, que na sua opinião deveria funcionar a semana inteira.
VII
É meio-dia de 29 de outubro de 1998, no velório G do cemitério do Araçá, um dia luminoso mas um pouco fresco para esta época em São Paulo. Lá está ele em um simples caixão preto, vestindo sua velha malha cor de vinho, calças cinza escuro (uma das três que possuía) e uma camisa branca. Seus cabelos estão bem curtos, pois não tiveram tempo de crescer desde a cirurgia... Sua barba cresce um pouco, como sói nos defuntos. No caixão não há flores. Sua última vontade. Na verdade, nem enterro queria. Tinha dito aos seus familiares queo deixassem no hospital, que não fossem retirar o corpo... Sem dentadura e boca aberta, defunto feio de hospital público onde nem sequer se amarra o queixo. Estamos em quatro no velório. Apesar de tudo, de seu rosto ainda exala a dignidade, seu perfil ibérico foi ressaltado pela morte e agora sim aparenta os 83 anos que carrega. Há oito horas Antônio Martinez deixou de existir. Chega o Cid com a bandeira preta e o envolve, logo começam a chegar os outros companheiros. Conversase. Chega a hora de o levarmos à tumba. O antigo cemitério pobre dos imigrantes também floresceu, tornouse afluente, embora algumas tumbas conservem a antiga simplicidade. Aqui ele vai ficar junto de José Martinez, o jovem mártir da greve de 1917, junto a Ernesto Gattai um dos fundadores da Colônia Cecília. Seu último amigo, Homero é filho do Cid e tem cinco anos. Martinez adorava as crianças. Homero esta contente, embora sério e sabe que vai despedir-se do amigo, fica junto ao coveiro para saber direitinho aonde ele vai ficar, e depois começa a correr, brincando por entre os túmulos. São flechas lançadas ao futuro. Adeus companheiro Antônio Martinez.
* Filósofo, físico e integrante do Centro de Cultura Social, São Paulo. verve, 2: 20-39, 2002
RESUMO
Narrativa tecida na superfície da existência de Antônio Martinez (1915-1998), anarquista; arquivista; encadernador; autodidata; rebelde... no Centro de Cultura Social (CCS).
ABSTRACT
Narrative woven on the surface of the existence of Antonio Martinez (1915-1998), anarchist; archivist; bookbinder; self- taught; rebel… at the Center of Social Culture.