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Revista Semestral do Nu-Sol — Núcleo de Sociabilidade Libertária Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP

2 2002

VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade Libertária/ Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP. Nº2 (outubro 2002 - ). - São Paulo: o Programa, 2002Semestral

1. Ciências Humanas - Periódicos. 2. Anarquismo. 3. AbolicionismoPenal. I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais. ISSN 1676-9090

VERVE é uma publicação do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUCSP. Coordenadoras: Lucia M. M. Bógus e Vera L. M. Chaia.

Editoria

Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária.

Nu-Sol

Acácio Augusto S. Jr., Andre R. Degenszajn, Maria Cristina Lima, Edson Lopes Jr., Edson Passetti (coordenador), Francisco E. de Freitas, Guilherme

C. Corrêa, Heleusa F. Câmara, José Eduardo Azevedo, Lúcia Soares da Silva, Martha C. Lossurdo, Natalia M. Montebello, Rogério H. Z. Nascimento, Salete M. de Oliveira, Thiago M. S. Rodrigues, Thiago Souza Santos. Conselho Editorial

Adelaide Gonçalves (UFCE), Christina Lopreato (UFU), Clovis N. Kassick (UFSC), Guilherme C. Corrêa (UFSM), Margareth Rago (Unicamp), Rogério

H. Z. Nascimento (UFPB), Silvana Tótora (PUC-SP). Conselho Consultivo

Alexandre Samis (Centro de Estudos Libertários Ideal Perez – CELIP/RJ), Christian Ferrer (Universidade de Buenos Aires), Dorothea V. Passetti (PUCSP), Francisco Estigarribia de Freitas (UFSM), Heleusa F. Câmara (UESB), José Carlos Morel (Centro de Cultura Social – CSS/SP), José Maria Carvalho Ferreira (Universidade Técnica de Lisboa), Maria Lúcia Karam, Paulo-Edgard de Almeida Resende (PUC-SP), Plínio A. Coelho (Instituto de Cultura e Ação Libertária – ICAL/SP), Silvio Gallo (Unicamp, Unimep), Vera Malaguti Batista (Instituto Carioca de Criminologia).

ISSN 1676-9090

verve revista de atitudes. transita por limiares e instantes arruinadores de hierarquias. nela, não há dono, chefe, senhor, contador ou programador. verve é parte de uma associação livre formada por pessoas diferentes na igualdade. amigos. vive por si, para uns. instala-se numa universidade que alimenta o fogo da liberdade. verve é uma labareda que lambe corpos, gestos, movimentos e fluxos, como ardentia. ela agita liberações. atiça-me!

verve é uma revista semestral do nu-sol que estuda, pesquisa, publica, edita, grava e faz anarquias e abolicionismo penal.

Citações de Arthur Rimbaud extraídas dos livros:

Prosa poética. Rio de Janeiro, Topbooks, 1998. Tradução de Ivo Barroso. Iluminuras - gravuras coloridas. São Paulo, Iluminuras, 1996. Tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça.

SUMÁRIO

Por que os anarquistas não aceitam a ação político-eleitoral

Edgar Leuenroth 11

Antônio Martinez, um anarquista

José Carlos Morel 20

As matizes do sentido — anarquismo, anarquia e a formação do vocabulário político no século XIX

Alexandre Samis 40

Libertários: educação da solidariedade e educação da revolta

Adelaide Gonçalves e Allyson Bruno 65

O papel do cooperativismo no desenvolvimento da economia social em Portugal

José Maria Carvalho Ferreira 88

Da filosofia do progresso

Natalia Montebello 123

Reflexões acerca da moral anarquista

Jean Barrué

Heterotopias anarquistas

Edson Passetti

A delinqüência acadêmica

Maurício Tragtenberg

132

Conversas com um abolicionista do sistema penal

186

Entrevista com Louk Hulsman

Medidas de segurança: punição do enfermo mental e violação da dignidade Maria Lúcia Karam 210 Intolerável Edivaldo Vieira da Silva 225 Como pacificar o insuportável? Thiago Rodrigues 245 Do amor à política Salete Oliveira 256 O único Max Stirner 268 RESENHAS Anarquismo além-mar: crítica ao Estado e anarquismo em Portugal Acácio Augusto S. Jr. 276 Estilos de liberdade Nildo Avelino 280 Retratando e apagando Gabriel Passetti 283 Daqueles que falam pela humanidade Andre Degenszajn 288 Ao Estado o poder de nos meter na cadeia Guilherme Corrêa 293 Escrita encharcada pelo mar; obscena ao sol Edson Lopes 296

A cidade, com suas fumaças e ruídos de ofícios, nos seguia tão longe nos caminhos. Ó outro mundo, morada abençoada por céu e sombras! O vento Sul me fez lembrar miseráveis incidentes de infância, meus desesperos de verão, a horrível quantidade de força e de ciência que o destino sempre afastou de mim. Não! Não passaremos o verão neste país mesquinho onde nada mais seremos que noivos órfãos.

Arthur Rimbaud

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por que os anarquistas não aceitam a ação político-eleitoral1

edgard leuenroth Apresentação

O saque ao Moinho Santista, perpetrado por grevistas paulistanos, em 11 de julho de 1917, foi mote utilizado pelas autoridades estaduais para decretar a prisão de Edgard Leuenroth. A acusação: autoria psíquico- intelectual do roubo de 600 sacas de farinha. Mesmo com a incerteza sobre a presença do militante anarquista durante o incidente, a ordem de prisão foi cumprida. Leuenroth alcançara, com as insurreições operárias de julho de 1917, grande destaque no meio anarquista brasileiro; proeminência adquirida pelo envolvimento, ao longo dos anos precedentes, na divulgação do libertarismo e na participação ativa nas práticas de organização auto-gestionária das mais diversas categorias de trabalhadores. Filho de um médico alemão e uma brasileira, Leuenroth iniciara-se muito jovem no ativismo político através de jornais de intervenção, primeiro como republicano e, a partir de 1904, como anarquista. Acompanhou e foi agente importante do crescimento do anarquismo entre os trabalhadores paulistanos, defendendo a construção de instrumentos de organização próprios e descentralizados pelo operariado.

A importância das táticas de mobilização anarco-sindicalistas, na década de 1910, culminou com a irrupção dos protestos de 1917; contestações de trabalhadores ao regime salarial e às condições de vida nos bairros operários que não seguiram direção centralizada e per-

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duraram de maio a outubro daquele ano, atingindo seu ápice em julho, mês em que foram registrados inúmeras manifestações populares e conflitos entre trabalhadores e forças policiais. Dentre os eventos, a invasão ao Moinho Santista. Edgard Leuenroth, uma vez mais em evidência nas agitações reivindicatórias, era responsável pela coordenação dos protestos junto ao Comitê de Defesa Proletária, associação organizada por representantes de 36 ligas operárias da cidade de São Paulo com o objetivo de aglutinar esforços dos trabalhadores em greve. A posição de Leuenroth no Comitê de Defesa Proletária tornou possível que a acusação de incitador ou mentor do saque ao moinho pudesse ser formalizada.

Sendo brasileiro, apesar da ascendência estrangeira, Edgard Leuenroth não poderia ser expulso do país, como foram libertários espanhóis, italianos e portugueses; poderia, contudo, ser processado — explicitamente — pelo assalto à empresa e — veladamente — pela condição de “indesejável” e “desviante”. O processo desenrola- se até março de 1918. Em fevereiro, contudo, um grupo de simpatizantes socialistas lança à revelia o nome de Leuenroth a uma vaga de deputado federal nas eleições que viriam a seguir. Do cárcere, Leuenroth redige, no dia 19 daquele mês, uma carta aberta, publicada em O Combate, na qual explicita os motivos que, por ser anarquista, não pode aceitar sua indicação ao cargo parlamentar. Optou-se, aqui, em reproduzir a carta na versão organizada pelo próprio Leuenroth para a edição de seu livro Anarquismo: roteiro de libertação social, na qual o autor apresenta a situação em que escreveu a carta, frisando o tema da não delegação de poderes. A seção é completada com o trecho “Em síntese” que, segundo Leuenroth, foi publicada no periódico carioca Ação Direta (s/d). Em tempos de eleições em que o abstencionismo é estigmatizado como comportamento apolítico, coloca-se em discussão temas caros

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Por que os anarquistas não aceitam a ação polítco-eleitoral

ao libertarismo, como o rechaço à representação política, pela voz de um dos mais importantes anarquistas brasileiros do século XX.

Thiago Rodrigues

edgard leuenroth *

Ainda há, mesmo entre pessoas letradas ou que se têm nessa conta, quem faça essa indagação. Destinando- se esse livro à conduta dos anarquistas, torna-se necessário falarmos, embora sumariamente, sobre as razões pelas quais os libertários não aceitam a ação parlamentar, abstendo-se, conseqüentemente, de votar para a escolha de representantes junto às várias casas legislativas, na base da política partidária. Para esse fim, são aproveitadas as considerações contidas na carta com que o autor deste livro se pronunciou sobre a apresentação de seu nome como candidato a deputado, por ocasião das eleições realizadas no começo de 1918, quando se encontrava preso na Casa de Detenção (então Cadeia Pública), processado como “autor psico-intelectual” da greve geral de 1917, que paralisou toda a vida produtiva de São Paulo:

“Não hesito em tornar pública a minha conseqüente resolução, já manifestada a amigos junto às grades do cárcere, de me opor terminantemente à apresentação da minha candidatura, lançada por amigos, talvez alheios à inteireza doutrinária dos princípios libertários, de seus métodos de ação e das normas de coerência a que necessariamente estão adstritos todos quantos os professam.

Não posso, não devo e não quero aceitar a indicação de meu nome para candidato a deputado, embora isso seja feito como uma manifestação de protesto contra uma violência, de repulsa contra a iniqüidade com que,

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através da minha pessoa, se pretende ferir a classe trabalhadora, da qual sou obscuro militante.

Como libertário, não aceito a ação parlamentar, que implica na delegação de poderes, o que constitui séria divergência doutrinária com o anarquismo. É em obediência a este sábio critério que os libertários, arrostando dificuldades sem conta, lutam incessantemente no sentido de conseguir que cada elemento do povo, libertando- se da mentalidade messiânica imperante, tornandose senhor de si mesmo, constitua uma unidade ativa na vida social, agindo em causa própria no patrocínio dos interesses que, sendo seus, estão, em harmonia com os da coletividade. Entendem os anarquistas, abroquelados em exemplos, de ontem e de hoje, que não seria decoroso contar com a votação de descontentes ocasionais das várias capelinhas políticas em desarmonia, e bem pouco numerosos seriam os homens animados de espírito liberal que, embora alheios à classe obreira, se sintam revoltados contra as injustiças com ela praticadas e, por isso, poderiam acorrer às urnas, conclui-se, logicamente, que o protesto teria resultado contraproducente.

Vê-se, pois, que, mesmo sob esse aspecto, a candidatura como protesto é desaconselhável. Tem-se tentado esse ato em outros países, é certo, mais em meios socialmente trabalhados aonde a parte dos socialistas concorde com o parlamentarismo se acha fortemente organizada.

Necessário se torna, entretanto, dizer que embora os beneficiados por essas manifestações sui generis de protesto pertencessem aos seus, os anarquistas sempre se lhes opuseram, conservando-se fiéis aos seus princípios, abstendo-se, assim, de contribuir, embora de maneira indireta, para alimentar no povo a confiança em uma instituição por eles condenada.

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Por que os anarquistas não aceitam a ação polítco-eleitoral

Sou, portanto, conseqüente com a minha condição de libertário não querendo intervir nas próximas eleições. Os amigos autores dessa iniciativa, a cujos bons intuitos presto homenagem, estou certo, não me quererão mal por isso, pois que é justamente à firmeza com que me tenho esforçado para sustentar as minhas convicções que atribuo a sua confortadora manifestação de simpatia. E tão eloqüentes são as lições dos acontecimentos desenrolados neste excepcional momento histórico que os exemplos de épocas anteriores são dispensáveis para que o ponto de vista libertário, evidenciando chocantemente o seu acerto, se imponha ao critério de quantos se preocupam com problema da questão social.

De fato, se das plagas lusitanas às estepes russas algo de valia se verifica contra a hediondez da guerra e os pruridos de tirania, isso tem partido da ação direta do povo oprimido e explorado em desespero. Em tão tremenda conjuntura, a ação parlamentar, quando deixa de ser inócua, passa a ser danosa ou contraproducente. Por que, pois, reincidir numa experiência já eficientemente realizada, com resultados negativos, em meios que oferecem todas as circunstâncias julgadas necessárias para o desejado bom êxito?

Considerações sem conta poderia ainda aduzir em abono da minha maneira de encarar a ação parlamentar.Julgo-me, porém, dispensado de o fazer, por me parecer ter dito o suficiente para que se possa concordar ou, quando menos, respeitar a resolução por mim, tomada de não aceitar a inclusão de meu nome na lista, já bastante longa, daqueles que, por ambição pessoal, por interesses subalternos da politicagem ou também, segundo os libertários, por um critério políticosocial, pretendem conseguir das poltronas do Parlamento o que só será conquistado pela ação decidida do povo, que, dos seringais da Amazônia às coxilhas sulinas,

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suporta o jugo de um regime revoltantemente opressivo.

Nem por se tratar de uma votação de protesto poderse- á desprezar a repulsa doutrinária do anarquismo à minha participação, como candidato, na eleição de 1o de março. Baseados na história e na experiência de muitas décadas de ação eleitoral, o que urge é intensificar a obra de educação social do povo, fazendo com que ele chegue a ter consciência dos seus direitos e adquira confiança na sua força para deixar de confiar a uns tantos indivíduos guindados às casas legislativas pelo seu voto e pelos seus conchavos politiqueiros – indivíduos esses nem sempre bem intencionados e sempre sujeitos à corrupção imanente do fastígio do poder

– aquilo que só ele, em luta perene, poderá e deverá conseguir. Seria ocioso, e mesmo foge aos limites desta carta, a demonstração da inanidade e até da influência danosa exercida pela ficção parlamentar da luta popular para a conquista de mais elevados estágios sociais. A experiência é grande mestra, e esta nos ensina que o Parlamento, instituição essencialmente burguesa, nunca agiu e jamais poderá agir em detrimento da vigente ordem de coisas, o que corresponde a nada fazer em proveito do povo e da causa pública.

Qualquer melhoria na situação da plebe, por insignificante que seja, representa o resultado de sua própria ação exercida fora das esferas parlamentares. As resoluções dos chamados representantes populares só são efetivadas quando representam o reflexo das conquistas feitas pela pressão partida de baixo, do povo em movimento. De maneira diversa, os seus decretos e suas leis têm sido e continuarão a ser meros farrapos de pa- pel.

Farta messe de exemplos poderia robustecer estas asserções. Sem termos em conta o que se passa entre

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nós, onde o Parlamento é essa coisa dispendiosa e improdutiva que todas as pessoas de bom senso reconhecem, não poderemos desprezar os ensinamentos que nos vêm de países nos quais a vida parlamentar se desenvolve ao redor de partidos com cronogramas políticos e sociais definidos e sujeitos ao influxo permanente da opinião pública, que aqui, desgraçadamente, por causas múltiplas, ainda não exerce a necessária influência.”

Em síntese: — Repudiamos o parlamentarismo e a ação eleitoral, não só pela razão teórica de ser o Parlamento uma instituição autoritária, incumbida de forjar leis obrigatórias, mas ainda por outros motivos teóricos e práticos. Eis alguns:

Quanto ao Parlamento:

1o – A assembléia parlamentar é incompetente para decidir sobre qualquer dos assuntos da vida social. Um congresso de técnicos (médicos, engenheiros, sapateiros, etc.), discute com conhecimento de causa o que é de seu ofício; num Parlamento, cada ponto de vista, cada ramo de saber tem sempre para o tratar uma minoria, sendo, no entanto, a maioria que decide.

2o – O seu poder limita-se a formular leis, sendo impotente para as fazer aplicar, quando porventura cheguem a contrariar os interesses das classes dominantes, dos proprietários, que têm nas suas mãos as autoridades, e os próprios favorecidos, seus dependentes, por meio dos salários.

3o – Ambiente burguês e politicamente dominado pelos interesses capitalistas e financeiros exerce uma inevitável corrupção sobre os que para lá entram, vindos do seio do povo trabalhador e animados das melhores intenções.

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4o – Dispensa o povo de agir diretamente e entretém as impaciências populares tanto mais eficazmente quanto mais atroadores e “revolucionários” forem os discursos ali proferidos.

Quanto à ação eleitoral:

1o – Trata-se de obter número, e para isso fazem-se apenas vagas afirmações, esconde-se o ideal revolucionário e entra-se em combinações e intrigas.

2o – A ação eleitoral e parlamentar chama ao socialismo uma chusma de aventureiros da pequena burguesia, de profissionais da política e do intelectualismo, etc., que corrompem e desviam o movimento. Querendo uma revolução profunda, verdadeiramente social, em que o povo espoliado e oprimido desaproprie o capitalismo e socialize os bens sociais; sabendo que essa revolução não pode ser decretada do alto de seus privilégios, que a emancipação do povo há de ser obra dele próprio, como é lição da História, os anarquistas que- rem que o povo se habitue, desde já, a agir e associarse, sem confiar em criaturas providenciais, guias ou dirigentes, líderes ou messias, e sem delegar poderes a pretensos defensores ou protetores.2

Nota

1 Texto reproduzido de Edgard Leuenroth. Anarquismo: roteiro de libertação social. Rio de Janeiro, Mundo Livre, 1963, pp. 54-58.

2 “Ação Direta”, Rio de Janeiro (nota do Autor).

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Por que os anarquistas não aceitam a ação polítco-eleitoral

RESUMO

Na prisão, Edgard Leuenroth escreveu uma declaração em que recusava sua indicação como candidato ao Parlamento nas eleições de 1918. Leuenroth havia sido preso em agosto de 1917, acusado de ser um dos líderes das greves anarquistas em São Paulo. Em sua carta, condensam-se os princípios anarquistas referentes ao autogoverno e à rejeição libertária à democracia burguesa.

ABSTRACT

In prison, Edgard Leuenroth wrote a statement in which he refused to run for the Parliament. He was arrested in august 1917, charged of being one of the leaders of the anarchical strike in Sao Paulo. His letter of denial condensed the anarchical principles of self-government and the libertarian rejection of the bourgeois democracy.

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antônio martinez, um anarquista

josé carlos morel* I

Era um feriado prolongado, talvez a Semana Chata de 1973, se não me falha a memória. Eu tinha 21 anos, trabalhava como técnico de Química e estudava à noite, e estava muito excitado: iria conhecer pela primeira vez os anarquistas. Nesta altura já tinha travado conhecimento — através de Marcelo Lima — com Jaime, Chico Cubero e sua famosa sapataria havia cerca de dois anos, mas não conhecia os outros companheiros. Os anos eram ainda de chumbo com a milicada deitando e rolando, Pinochet dando o golpe no Chile, o oportunismo do “Brasil ame-o ou deixe-o” e outras merdas do mesmo tipo. Entre a esquerda, o anarquismo era considerado naquela época como “ideologia pequenoburguesa” no melhor dos casos e, no pior, como “um pensamento objetivamente de direita” . Não obstante, eu

* Filósofo, físico e integrante do Centro de Cultura Social, São Paulo. verve, 2: 20-39, 2002

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Antônio Martinez, um anarquista

achava-me excitado, ansioso, feliz, pois iria finalmente encontrar-me com pessoas concretas que viviam um ideal que compartilhava e que eu havia muito buscava. Foi memorável: o encontro estava marcado para “Nosso Sítio”, no meio da Serra do Mar.

Conforme vim a saber depois, estas reuniões estavam sendo rearticuladas depois que a repressão havia se abatido sobre os companheiros do Rio de Janeiro. Era a terceira vez que os anarquistas se reuniam em grande grupo, depois que Ideal Perez havia saído da cadeia. Fazia frio. Encontrei um pequeno sítio de aspecto banal mas bem cuidado, com cerca de quarenta pessoas reunidas, velhos, velhos muito velhos, gente de meia idade e crianças. Jovens então muito poucos, filhos de alguns companheiros.

Havia muita gente e eram três horas da tarde. Gumercindo, Diamantino e algumas companheiras começavam a preparar o jantar (não era tarefa fácil, pois não havia eletricidade, os fogões eram a lenha e a iluminação a querosene e gás), outras pessoas estavam preparando os quartos para pernoite; um terceiro grupo estava se ocupando de uma construção e outros companheiros estavam dispersos pelo mato carpindo ou simplesmente passeando.

Marcelo sumiu e me deixou “entregue às feras”; eu não conhecia ninguém e quase tive um ataque de paranóia. Em meio a tanta gente, um velhote de cabelos quase brancos, baixinho, gorducho e rubicundo, pescou- me: era Antônio Martinez.

Não sei se por acaso ou premeditadamente tivemos que compartilhar aquela noite o mesmo leito improvisado eu, Martinez e Oliva. No dia seguinte praticamente não me largou — mostrou-me o sítio, conversamos sobre muitas coisas, desde captação de águas até a crise chilena, contamos piadas e aos poucos eu fui me acalmando... Como já tive oportunidade de dizer várias

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vezes, aquele fim de semana foi o início de uma verdadeira transmutação de personalidade para mim.

II

Antônio Martinez nasceu em 1915, no bairro do Brás, em São Paulo. Seus pais eram imigrantes espanhóis que repetiram a saga de muitos de nossos antepassados: fugiram da fome e da exploração na Europa para cair nas garras exploradoras dos democráticos fazendeiros de café paulistas, na virada do século.

Seu pai e seu tio tiveram que apelar para a força para conseguirem escapar da fazenda onde trabalhavam, na região de Araraquara: colocaram a família e as coisas em um carroção e, cada um munido de uma espingarda, mantiveram o capataz sob mira até saírem da fazenda. Não sei como seus pais chegaram a São Paulo; sei somente que ele era o primogênito de três filhos — suas duas irmãs ainda estão vivas — e que passou grande parte de sua vida morando nos cortiços da Rua Caetano Pinto, que ele sabia descrever viva e pitorescamente.

Muito avesso à publicidade, Martinez não deixou nada escrito, recusava-se peremptoriamente a, até mesmo, deixar depoimentos gravados, como o fizeram muitos companheiros. Quando conseguimos convencê-lo a fazer isto, depois da morte de Jaime Cubero, o tempo já era escasso: o câncer consumiu-o rapidamente.

Sem dúvida seu depoimento teria sido de extrema valia para a reconstituição da vida operária paulistana entre as décadas de 20 e 40. O pouco que sobrou da memória de nossas conversas nem ao menos é um relato contínuo. São fiapos de confidências, fragmentos de experiências concretas citados ao longo de discussões políticas e estratégicas, ou episódios contados por outros companheiros.

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Antônio Martinez, um anarquista

Seu pai foi certamente militante operário e sua mãe conservou algumas crenças católicas. Aos companheiros que visitavam sua casa e que estranhavam as imagens de santos, seu pai respondia: “aqui exercemos a liberdade; ela não interfere em minhas convicções e eu respeito as dela”. Seu pai era analfabeto, mas fez muitos esforços para que seus filhos pudessem estudar um pouco. Tanto Martinez quanto suas irmãs conseguiram terminar o curso primário. Ele se recordava com carinho que, ainda menino, seu pai lhe presenteou com alguns livros, entre eles uma Aritmética Progressiva, que

o auxiliou muito até na vida profissional, e livros infantis anarquistas. Mais tarde foi um ávido leitor das brochuras de La Novela Ideal. Seu pai parece que faleceu muito cedo (antes de 1941) e sua mãe viveu até 1968 ou 69. Ela, ao que parece, tinha uma quitanda na Av. Celso Garcia. Desde muito cedo Martinez habituou-se a acompanhá-la ao Mercado Municipal para as compras, e foi lá, segundo ele próprio, que adquiriu modos peculiares de alimentação. Embora não fosse um vegetariano militante, Martinez comia pouca carne e quase nunca tomava refeições completas. Segundo ele, ao acompanhar a mãe ao mercado, e tomando conta das compras, ia provando frutas, legumes, e ganhava algumas guloseimas dos comerciantes de modo que no horário habitual das refeições já estava locupletado. De fato, mesmo em “Nosso Sítio” muitas vezes seu almoço eram caquis, bananas, ervadoce e tomates que colhia no pé durante a manhã. À noite, geralmente, gostava de uma sopa bem grossa e muito pão, ou então café com leite e bolachas. Apesar de ser cardíaco crônico, era fanático por sementes oleaginosas — amendoim, castanha do Pará, amêndoas — todas as frutas secas enfim. Era um abstêmio convicto, rigoroso. Não sei ao certo, mas parece que isso se deve a alguns casos de alcoolismo em sua família. Gostava

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muito de futebol mas não torcia por nenhum time, sendo um excelente ponta direita, segundo a opinião de muitos companheiros, e, como ele próprio uma vez me contou, chegava durante as noites de verão a jogar até quatro horas de “pelada” nos campos do Tamanduateí, sempre disputado por vários clubes de várzea.

É muito difícil se falar dos amigos mortos. O nosso envolvimento é muito grande com eles de modo que excesso ou falta de críticas ou encômios podem ser facilmente interpretados, com muita verdade aliás, como cegueira passional do relator. Alguém mais afastado certamente faria melhor obra, mas o Martinez sobrevive apenas na memória de seus próximos, de modo que nos incumbe a tarefa espinhosa da biografia. O leitor será obrigado a perdoar o tom grandemente pessoal destas linhas, mas Martinez foi o último de meus “pais anarquistas”, juntamente com Jaime Cubero e Ideal Perez, que souberam forjar meu caráter político e ético. Não tenho pejo em admitir que se não os tivesse encontrado na altura da vida em que os encontrei, seria certamente um sujeito muito pior do que sou, um tecnocrata de bela alma, mas tecnocrata, ou talvez um petista “ligth” exercendo meu socialismo bienalmente durante as eleições e cuidando de minha vida e carreira no intervalo entre elas, sei lá ...

Destes três pais, meu vínculo afetivo mais forte foi sem dúvida Jaime Cubero. As personalidades de Ideal e Martinez eram menos propícias a pessoalidades, suas características psicológicas eram bastante distintas, não obstante a origem social bastante próxima: o operariado emigrante paulistano de começos do século XX. Jaime era mais aberto, amigável, uma personalidade branda e boníssima, basta se ver a unanimidade com que era aceito nos mais diversos ambientes, libertários ou não. Ideal e Martinez eram personalidades mais fortes e me- nos flexíveis, duma retidão que muitos confundiam com

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Antônio Martinez, um anarquista

rigidez. A isso Martinez acrescentava um estilo de vida espartano, pouco apropriado a uma sociedade de con- sumo, e uma discrição e modéstia tão sólidas que evitavam até mesmo que se tornasse mais visível como militante. Seu domínio, como ele mesmo gostava de dizer, era o trabalho de base, no apoio e infraestrutura.

Martinez foi talvez o último exemplar paulistano de um tipo social que o Anarquismo soube criar muito bem por mais de um século: o operário intelectualizado, militante apaixonado da Revolução Social, para o qual o cotidiano não está separado das aspirações.

Hoje em dia , quando é mais fácil encontrar em nossas fileiras um professor universitário do que um operário metalúrgico, em dias também nos quais, como sabe muito bem qualquer um que tenha trabalhado algum tempo em fábrica, a ideologia de um operário médio não se distingue muito do pensamento hegemônico da classe média afluente, e onde o sonho de um futuro de abundância e liberdade para toda a sociedade parece ter sido substituído pelos sonhos mais concretos e mais banais de consumo imediato e individual fomentado brutalmente pelo “marketing”; em dias nos quais falar-se ou pensar- se em qualquer questão propriamente social significa arrostar toda uma “rationale” econômica que pretende ter descoberto o segredo último do bom funcionamento da sociedade no desenvolvimento “livre” do mercado, nestes dias, talvez, pensar que alguém tenha podido viver até os 83 anos coerentemente com seus ideais, em extrema modéstia mas longe da indigência humilhante, alguém que tenha se deitado apenas por dois meses para morrer e que, mesmo assim, ainda estava envolvido com planos e projetos, lamentando apenas que sua ampulheta estava se esvaziando, alguém que mesmo velho não permitia que o considerassem como um traste inútil, contrapondo-se deste modo muito prático às imagens usuais da sociedade de

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consumo que associam glória, fama e poder a uma minoria de semideuses eternamente jovens pelo acesso ao capital e ao consumo, enfim, rememorar alguém, nestes brutos e feios dias, como o companheiro Martinez pode nos servir de alento e lição.

III

Um operário intelectualizado sim. Martinez era um leitor ávido. A começar dos jornais cotidianos, que nunca dispensou, e da imprensa libertária, que acompanhava com regularidade. Tinha bons conhecimentos de Proudhon e Bakunin, cujas obras relera várias vezes na edição de La Protesta, mas era especialmente envolvido com a produção cultural do anarquismo espanhol, La Novela Ideal, que já mencionamos, mas também as obras mais densas de Anselmo Lorenzo, Ferrer, Federico Urales, Federica Monseny, José Peirats, Abel Paz e Felipe Alaiz, entre outros. Apaixonado por economia , estava empreendendo nos últimos anos um estudo sistemático dos livros de Abraham Guillén. Seus livros de cabeceira eram El Proletariado Militante, de Anselmo Lorenzo e Nacionalismo y Cultura, de Rudolf Rocker; por este último texto devotava um carinho especial, tendo-se munido de vários exemplares dele , com os quais presenteava , seguindo critérios que desconheço, algumas pessoas; eu mesmo possuo um destes exemplares, encadernado por suas mãos.

Mas Martinez, por mais ilustrado que fosse, sempre foi um homem de ação. A própria cultura que acumulara, somente tinha sentido para ele na medida em que pudesse servir de estímulo, aclarar ou auxiliar a ação política. Era partidário da militância dos anarquistas nos sindicatos, embora sem tomar cargos de direção, assim como era favorável à ação dos centros de cultura.

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Antônio Martinez, um anarquista

Martinez tinha 14 anos quando seu pai o levou pela primeira vez à Federação Operária de São Paulo, que reunia as organizações sindicais anarquistas do que hoje denominamos região da grande São Paulo, além das da própria Capital. Segundo sua descrição, a FOSP ocupava um prédio grande na Praça da Sé, munido de um saguão e de um amplo salão no térreo e de um mezanino, cheio de salas menores aonde estavam as sedes de vários sindicatos da cidade e de alguns jornais operários. No Salão, munido de um palco, ocorriam durante os fins de semana as conferências, recitais, espetáculos de teatro e bailes e, durante a semana, as assembléias sindicais ou reuniões maiores do movimento operário. Como se vê, uma organização ainda bastante robusta para um movimento cuja morte mágica, segundo alguns historiadores, teria ocorrido em 1922 por ocasião da fundação do Partido Comunista.

Embora seu pai não tivesse permitido que trabalhasse antes dos 18 anos (seu argumento era: Não te apresses, pois terás que trabalhar a fartar quando chegar a tua hora), Martinez participava das atividades sindicais junto com seu pai e é dele que tenho alguns episódios mais vivos do cotidiano operário que não estão nos livros.

A repressão aos anarquistas desde o governo de Epitácio Pessoa e Arthur Bernardes foi, como se sabe, muito dura. A esta repressão governamental vieram se somar, desde o final da década de 20, os conflitos com os comunistas e os integralistas.

O conflito com os integralistas era de certo modo esperado e inevitável. O confronto com os comunistas, entretanto, foi o mais doloroso. Como se sabe, desde a fundação da III Internacional, em Moscou, a orientação do movimento comunista era clara: todas as organizações operárias que não pudessem ser cooptadas ou absorvidas pelos comunistas deveriam ser destruídas. A luta no seio da CGT francesa talvez seja o exemplo mais

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típico dos resultados de tal orientação. No Brasil tal orientação resultou em uma verdadeira guerra promovida contra as organizações anarquistas pelos grupos comunistas, que não recuaram diante de nenhum método, por mais sórdido que fosse, para atingirem seus fins e, deste modo, lançaram mão de assassinatos (como o caso de Riccardo Cipolla em São Paulo) delações, empastelamentos e principalmente agressões. Martinez, embora adolescente, foi testemunha deste período, e relatava como, ao terminarem as reuniões e atividades na FOSP, os operários e suas famílias tinham que se organizar em grupos para poderem chegar em segurança a suas casas, pois os bandos de comunistas e fascistas, acoitados em pontos estratégicos, aguardavam os incautos solitários para surrar-lhes. Os pontos preferidos destas agressões eram a Av. Rangel Pestana (então em construção), o Parque D. Pedro e as Estações da Lapa e da Barra Funda.

IV

Martinez também participou da famosa Batalha da Praça da Sé, quando o povo de São Paulo conseguiu impedir que os integralistas de Plínio Salgado repetissem o ato de Mussolini com a Marcha sobre Roma. A FOSP e os anarquistas tiveram um papel preponderante neste evento. Costuma-se atribuir os méritos desta vitória a uma frente única antifascista que teria se formado em São Paulo por volta de 1933. Na verdade, como bem o demonstrou Jaime Cubero em uma palestra por ocasião do cinqüentenário do evento, os anarquistas já vinham atacando o fascismo desde 1924, com destaque para o trabalho pioneiro de Maria Lacerda de Moura, através de conferências e livros. Não foram certamente os únicos antifascistas do Brasil, mas foram com certeza os primeiros, os mais ardorosos e os menos ambí

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Antônio Martinez, um anarquista

guos. O fato é que os anarquistas não participaram da tal frente ampla. Não tinham motivos para tanto, senão vejamos: os comunistas os caçavam quotidianamente pelas ruas, os trotskistas muitos deles egressos do PC, embora fossem fracos, não mereciam maior confiança, e setores da burguesia liberal paulista sempre demonstraram muito bem ao que vieram, quando não é só lembrar a verdadeira razia que patrocinaram em 1924, quando da insurreição do General Isidoro Dias Lopes sobre os bairros operários, com agressões, violações, empastelamento de jornais e associações, mortes e prisões em massa de anarquistas e militantes operários. Diante deste quadro, a resposta do Movimento Anarquista não poderia ter sido outra: faremos a unidade no domingo , na praça da Sé. E assim foi .

O episódio foi dramático. Muitos “camisas verdes” (ou camisas de Vênus, como os gostava de denominar o desbocado Roberto da Neves) foram cooptados em cidades pequenas do interior e não conheciam São Paulo.

A FOSP pretendia ocupar a Praça da Sé e impedir a qualquer custo que a manifestação ocorresse. Na madrugada já havia operários na praça, mas a Polícia e o Exército também lá estavam acampados no recinto da nova Catedral que então se construía. No flanco esquerdo das escadarias da Catedral foi instalado um ninho de metralhadoras.

Os integralistas estavam se reunindo na Praça da República e no Largo de São Francisco. Ao meio-dia já estava a praça completamente tomada. Os integralistas então organizaram sua passeata colocando à frente mulheres e crianças, com o fim óbvio de utilizá-las como escudo, e visavam entrar na praça pelo seu flanco direito. Alguns batedores operários, postados no alto dos prédios, prontamente perceberam a manobra e como resposta abriram suas fileiras em duas colunas, de modo a permitir a passagem do escudo, mas fechando-se num

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forte movimento de pinça sobre os flancos dos integralistas.

Havia, entretanto, um inconveniente maior nesta tática: ao praticarem-na, os operários exporiam necessariamente sua retaguarda ao ninho de metralhadoras e seriam facilmente varridos, sob o pretexto de controlar o tumulto. Foi então que alguns companheiros mais experimentados, tendo à frente João Perez e o ucraniano Stepanovitch, propuseram-se a assaltar o ninho, o que conseguiram com sucesso e discretamente. Garantidos em sua retaguarda puderam deste modo dar seqüência a sua tática. Os integralistas, confiantes no seu escudo humano e no apoio tácito das forças da ordem, foram apanhados em uma ratoeira. Contava o companheiro Martinez que depois de uns dez minutos de tiroteio começaram a debandar, alguns até “esquecendo” mulher e filhos. Faziam qualquer coisa para se desfazer de suas camisas verdes. Alguns, por falta de conhecimento da cidade, ao invés de se retirarem para a Vila Buarque, de onde vieram, lançaram-se em cheio sobre a Avenida Rangel Pestana, caindo totalmente desbaratados nas vielas operárias do Brás, outros literalmente tomavam de assalto bondes e táxis, qualquer coisa que os pudesse levar para longe da Sé.

Foi neste conflito que nosso companheiro fez suas primeiras armas. Tais impressões, bem como suas vivências de adolescente na FOSP, marcaram-no profundamente.

Seguiram-se dois anos como conscrito no Exército. Martinez serviu em Mato-Grosso: primeiro em um Batalhão de Fronteira, onde se feriu seriamente na perna. Depois de muitos meses em hospital militar foi transferido para um Batalhão de Cavalaria, onde terminou sua corvéia e foi desmobilizado. Passou alguns anos durante a ditadura de Vargas auxiliando sua irmã e seu cu

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Antônio Martinez, um anarquista

nhado, estabelecidos então como pequenos sitiantes na região de Bauru, e em seguida retorna a São Paulo.

V

Profissionalmente, Martinez exerceu vários ofícios: começou como cobrador de crediários de uma cadeia de lojas do Brás (Não sei se a Pirani ou se a Eletroradiobrás); por algum tempo foi auxiliar de cozinha. Logo depois da guerra entrou para a companhia Castelões, onde desenvolveu intensa atividade sindical, tendo inclusive liderado uma greve contra o patrão e contra a orientação do sindicato pelego de então. Demitido em conseqüência da greve, vai trabalhar na Fábrica de Parafusos Santa Rosa, como responsável pela têmpera de parafusos de grande porte. Sai de lá em conseqüência de um conflito com um contramestre fascista e ingressa à IBRAPE, que era então uma incipiente fábrica de válvulas eletrônicas associada à multinacional PHILIPS, e é lá que vai se aposentar em conseqüência de problemas cardíacos em 1973. Por volta de 1960 deixa

o seu Brás querido e passa a residir no Parque Novo Mundo, em uma casa modesta mas confortável, que ele mesmo constrói auxiliado por um de seus cunhados, um excelente mestre de obras. A grande atividade política de Martinez desenvolvese entre 1945 e 1966, quando é afetado por uma “angina pectoris” que o força a diminuir fortemente suas atividades por cerca de dois anos, e o faz dependente de Isordil até o final de sua vida. De 1966 até sua morte, concentra suas atividades ao apoio do Centro de Cultura Social e a algumas tarefas de base do movimento específico em São Paulo. Participou da União Anarquista de São Paulo desde a sua formação, em 1957 até a sua extinção, em 1969. Quando reorganizamos o GRUPO PROJEÇÃO, em finais de 1973, ele foi um de seus

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primeiros integrantes, juntamente com Jaime Cubero, Ideal Perez, Edgard Rodrigues e outros.

Sua atividade de agitador na Castelões foi de muita importância: dela extraiu dois axiomas que orientavam suas atividades políticas. Um deles era: se não puderes estar comigo, que ao menos não estejas contra mim. E o outro, Devemos abolir os rótulos, pois considerava prejudicial ao militante de base anarquista identificar-se prontamente enquanto tal. A seu ver, esta atitude, um tanto ingênua, serviria muito mais para neutralizar e isolar o companheiro, pelo próprio preconceito que a palavra “anarquismo” gera, do que para atrair pessoas sinceras ao seu redor. Na atividade sindical preconizava uma ação de claro conteúdo anarco-sindicalista, ou seja, partidária da ação direta e da autogestão das lutas, do controle operário de base do movimento, mas sem vincular tais idéias explicitamente com o anarquismo. Na medida em que as pessoas fossem se interessando pela proposta e que fossem se envolvendo com ela, então sim, se poderia com cuidado discutir mais claramente os nossos objetivos políticos mais amplos com elas e atraí-las para alguma de nossas organizações. Tais princípios de método me foram de extrema valia quando comecei a envolver-me mais seriamente com a questão sindical, a partir de 1975/76.

Na Castelões ele conseguiu não só levar uma greve a bom termo, atingindo as reivindicações concretas, como conseguiu destituir a diretoria do sindicato, articulando uma nova chapa ligada aos movimentos de base. Com a vitória desta chapa conseguiu acesso aos arquivos do sindicato onde encontrou papéis que ligavam umbilicalmente os diretores aos patrões, indícios de negociatas e corrupção, envolvendo, inclusive, os fiscais do Ministério do Trabalho. Informações estas que lhe foram muito úteis quando de um processo trabalhista que a firma lhe moveu e que ele conseguiu ga

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nhar sem auxílio de advogados. Na Castelões também conseguiu muitos simpatizantes para o CCS, de cuja reorganização participou em 1945.

Outra luta séria que teve que desenvolver foi contra os comunistas. Lembrava-se muito bem de suas façanhas anteriores à ditadura, e com a reabertura do CCS pôde informar-se melhor do que acontecera e estava acontecendo na Rússia, e do papel da URSS durante a Revolução Espanhola, de modo que o marxismo nunca

o seduziu. Durante seu trabalho na Castelões, alguns militantes de célula tentaram cooptá-lo sem sucesso. Como não conseguiram, começaram um processo de estigmatização que também não deu muito certo. Ele tinha conseguido alinhavar alguns apoios de base, de modo que as intrigas não chegaram a surtir efeito.

Esta luta também se travou no bairro, a ponto da célula do PC da Rua Caetano Pinto tê-lo colocado na lista negra. A tal respeito existe um episódio divertido. Depois de colocados na ilegalidade pelo governo Dutra, os comunistas concentraram suas táticas em aparelhar organizações populares, quaisquer que fossem. Martinez, que já os tinha enfrentado no Sindicato, deveria agora enfrentá-los no clube de futebol local. Para tanto, aproveitou o dia de uma visita de Luís Carlos Prestes a São Paulo e convocou a Assembléia do Clube para aquela data, tudo segundo os regulamentos. No dia marcado, obviamente, nenhum deles apareceu. Martinez, que tinha estudado minuciosamente os estatutos do clube e da federação, pediu para ver as contas e constatou que a maioria dos sócios comunistas estava muito atrasada com os pagamentos (é óbvio que as pessoas realmente interessadas não). Ele faz então votar uma moção de desligamento automático de todos os sócios em atraso por mais de três meses sem justificativa, como facultavam os estatutos. Procede-se então às

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eleições da Diretoria do Clube, sem a menor participação dos comunistas nela ou no quadro associativo.

Poderíamos nos estender em dezenas de histórias deste tipo, mas estas são suficientes para amostrar o seu caráter.

VI

Durante a sua crise de angina, Martinez, que estava afastado do trabalho por ordem médica, pôde desenvolver um trabalho de imensa repercussão histórica, cujos créditos, agora que está morto, podemos francamente estabelecer: trata-se da organização do arquivo de Edgard Leuenroth. Como já é sobejamente conhecido,

o companheiro Leuenroth reuniu durante sua vida de militante um imenso acervo de documentação social, que hoje constitui o núcleo do Arquivo Edgard Leuenroth, da UNICAMP. Este arquivo foi sendo continuamente enriquecido com doações de muitos outros companheiros e de materiais que chegavam ao CCS, de modo que se constituía, em meados dos anos 60, no melhor arquivo de História Social do Brasil. Estava instalado naquele tempo em uma ampla sala de um velho edifício comercial, que já não mais existe, situado na Rua Ricardo Gonçalves (aliás, um poeta anarquista do começo do século, prematuramente desaparecido em uma tragédia amorosa). Tal sala era alugada pelo companheiro Luca Gabriel, e o arquivo era considerado pelo próprio Edgard como um patrimônio do movimento. Ocorre que o material estava tremendamente desorganizado, dadas as suas constantes mudanças de localização, por motivos de segurança ou financeiros, desde 1930. Martinez então propôs-se a ajudar na organização do material. Muito sistemático, tinha aprendido muito sobre almoxarifado na IBRAPE, fez um curso de encadernação e começou então uma tarefa hercúlea que verve

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iria lhe tomar os próximos 8 anos: reorganizou, com o auxílio de Jaime Cubero e de outros companheiros, praticamente todo o arquivo, restaurou coleções de documentos, completou e encadernou coleções de jornais e periódicos, etc. Quando John Foster Dulles esteve no Brasil buscando subsídios para o seu bisonho livro, deparou-se com um arquivo razoavelmente organizado e não com um amontoado de papel velho. Nesta ocasião (1967 - 68), o trabalho de organização ainda nem atingira metade do material, mesmo assim foi suficiente para fascinar Mr. Dulles. Segundo o depoimento de Martinez, que o assistiu na coleta de dados, ele trabalhava ininterruptamente nas notas por horas a fio, já trazendo um maço de lápis previamente apontados e não parava sequer para urinar...

Mr. Dulles queria levar a todo custo o material para Austin, no Texas, e felizmente não o conseguiu. Edgard Leuenroth falece em 1969, e deixa uma carta recomendando que o Arquivo seja entregue a uma comissão de oito companheiros. A família, entretanto, de repente percebe que aqueles papéis bolorentos valem dinheiro, e começam entabular, à socapa, negociações para vendêlo. Martinez, que possuía um faro muito apurado, percebe tais maquinações e juntamente com outros companheiros planeja uma transferência do material para um lugar seguro no Rio de Janeiro. Tal plano é apenas parcialmente executado, e, de fato, o material restante, infelizmente a parte mais substancial, é vendido à UNICAMP, onde constitui o núcleo do seu atual acervo de História Social. Seja dito, a bem da verdade, que grande parte das cláusulas estipuladas no contrato de venda até hoje aguardam serem cumpridas, como a publicação de dois livros póstumos de Edgard, que os tinha preparado em seu leito de morte, e o acesso permanente de membros da família Leuenroth e de dois delegados do movimento anarquista ao acervo.

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Deste modo, o modesto operário Martinez está na raiz de toda uma produção cultural que foi gerada nos últimos 25 anos na UNICAMP. Como diz Brecht: “quem construiu as muralhas de Tebas, a das mil portas?”

Aproveitando os seus ócios forçados, Martinez também atuou nesta época em uma importantíssima atividade do CCS, que foi o Laboratório de Ensaio que, sob a influência de Francisco Cubero e do veterano Pedro Catallo, renovou a tradicional dramaturgia política anarquista, com as modernas técnicas do teatro de Brecht, Grotowski e outros. Vivendo um período de ebulição política e cultural, esta experiência ainda aguarda o seu historiador. Ela revolucionou a cena clássica anarquista, além de lançar novos rumos, tanto na direção do espetáculo como no conteúdo dos textos. Foi um período muito fértil para o anarquismo paulista, embalado pela revolta estudantil na França e brutalmente encerrado com a Edição do AI-5, em 13/12/1968. Com a crescente complexidade das peças, e dada a exigüidade da “arena” onde ocorriam os espetáculos, o trabalho de contra-regra era essencial, e mais uma vez foi o anônimo Martinez quem se dispôs para tal tarefa, assegurando, durante quase três anos, ao menos duas noites de espetáculo por semana.

Durante o período de dispersão do movimento que se estende de 1969 até 1976/77, onde o lançamento do jornal O Inimigo do Rei traz consigo uma nova geração de anarquistas no cenário político brasileiro, Martinez é um dos que ajuda a “catar os cacos” do movimento. Já dentro do Projeção, realiza um importante trabalho, retomando o contacto com antigos companheiros afastados do movimento, a maioria pela idade já avançada, e recolhe suas bibliotecas e papéis pessoais, que vêm a se constituir no fundo atual do Centro de Cultura Social. Em 1975, juntamente com Jaime Cubero, ele auxilia Maria Tereza Vargas a achar e articular materiais

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Antônio Martinez, um anarquista

para a sua importante dissertação sobre o Teatro Operário em São Paulo. Com o crescimento das atividades anarquistas a partir de 1977, sempre presta a maior colaboração possível. Estava na reunião de fevereiro de 1977, quando se decidiu transformar o Inimigo do Rei em um jornal nacional, e nas freqüentes reuniões que realizávamos em “Nosso Sítio” ele quase sempre estava presente apoiando na infraestrutura e “conversando com os meninos”.

A partir de 1979 os anarquistas começam a retomar à cena pública. Surge então no Grupo Projeção a idéia de se formar uma livraria ambulante por correspondência e, mais uma vez, é Martinez que se encarrega da banquinha de livros, que marcará muitas das atividades públicas dos anarquistas nas décadas de 80 e 90, e cuja atividade postal em muito auxiliou a divulgação do anarquismo no Brasil. Sempre discreto, nunca quis ocupar a ribalta, que preferia deixar com Jaime ou com Ideal ou mesmo com algum companheiro mais moço. Fazia, entretanto, um importante trabalho de costura ao conversar ao pé da orelha com as pessoas que se aproximavam do evento. Seu último ímpeto militante, ele o investiu na reorganização do Centro de Cultura Social, a partir de 1982. Esteve presente em todas as reuniões preparatórias, enfrentou com galhardia discussões rebarbativas e bizantinas, e fez finalmente parte da comissão administrativa do CCS nos seus quatro primeiros mandatos, preparando uma nova geração de companheiros para sucedê-lo. Mesmo sem ocupar cargos, era um pau para toda obra, sempre podíamos contar com ele para auxiliar nos trabalhos do centro: auxiliava na manutenção, mantinha a livraria, fazia pagamentos e compras que não podíamos realizar em horário de trabalho e, principalmente, estava lá quase todo o sábado, em quase todas as manifestações de rua, em todos os cursos e palestras externos que realizamos nos últimos

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quatorze anos. Ficava muito irritado quando não se conseguia dar continuidade às atividades do CCS, que na sua opinião deveria funcionar a semana inteira.

VII

É meio-dia de 29 de outubro de 1998, no velório G do cemitério do Araçá, um dia luminoso mas um pouco fresco para esta época em São Paulo. Lá está ele em um simples caixão preto, vestindo sua velha malha cor de vinho, calças cinza escuro (uma das três que possuía) e uma camisa branca. Seus cabelos estão bem curtos, pois não tiveram tempo de crescer desde a cirurgia... Sua barba cresce um pouco, como sói nos defuntos. No caixão não há flores. Sua última vontade. Na verdade, nem enterro queria. Tinha dito aos seus familiares que

o deixassem no hospital, que não fossem retirar o corpo... Sem dentadura e boca aberta, defunto feio de hospital público onde nem sequer se amarra o queixo. Estamos em quatro no velório. Apesar de tudo, de seu rosto ainda exala a dignidade, seu perfil ibérico foi ressaltado pela morte e agora sim aparenta os 83 anos que carrega. Há oito horas Antônio Martinez deixou de existir. Chega o Cid com a bandeira preta e o envolve, logo começam a chegar os outros companheiros. Conversase. Chega a hora de o levarmos à tumba. O antigo cemitério pobre dos imigrantes também floresceu, tornouse afluente, embora algumas tumbas conservem a antiga simplicidade. Aqui ele vai ficar junto de José Martinez,

o jovem mártir da greve de 1917, junto a Ernesto Gattai um dos fundadores da Colônia Cecília. Seu último ami- go, Homero é filho do Cid e tem cinco anos. Martinez adorava as crianças. Homero esta contente, embora sério e sabe que vai despedir-se do amigo, fica junto ao coveiro para saber direitinho aonde ele vai ficar, e depois verve

Antônio Martinez, um anarquista

começa a correr, brincando por entre os túmulos. São flechas lançadas ao futuro. Adeus companheiro Antônio Martinez.

RESUMO

Narrativa tecida na superfície da existência de Antônio Martinez (1915-1998), anarquista; arquivista; encadernador; autodidata; rebelde... no Centro de Cultura Social (CCS).

ABSTRACT

Narrative woven on the surface of the existence of Antonio Martinez (1915-1998), anarchist; archivist; bookbinder; self- taught; rebel… at the Center of Social Culture.

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os matizes do sentido — anarquismo, anarquia e a formação do vocabulário político no século XIX

alexandre samis* Introdução

O presente trabalho foi concebido a partir da necessidade de se buscar o entendimento de determinadas práticas políticas, através de aportes semânticos complementares, que deram sustentação lógica aos discursos de um número significativo de representantes das elites imperiais no Brasil. Para tanto, utilizaremos como exemplo a idéia, instituída através do discurso conservador, de anarquia ou anarquismo, no período compreendido entre a independência política do país e os primeiros anos da República.

O conceito de anarquismo (incluindo-se aí seus cognatos), a dinâmica que lhe foi atribuída e as necessidades dos grupos que dele fizeram uso, serão aqui

* Mestre em História e integrante do Círculo de Estudos Libertários Ideal Peres. verve, 2: 40-64, 2002

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Os matizes do sentido

analisados à luz de uma linguagem política historicamente produzida e comprometida, estrito senso, com as classes dominantes.

Empregaremos, para tanto, paradigmas teóricos de capital importância para a investigação no campo das linguagens políticas. Em conformidade com tal necessidade, torna-se relevante uma apreciação mais detida sobre uma iniciativa, principiada na Alemanha, para a elaboração de um dicionário de “Princípios Históricos da Linguagem Política”, o Geschichtliche Grundbegriffe

(G. G.). O empreendimento, coordenado por W. Conze e R. Koselleck, acompanhado pelos ingleses de Cambridge, Pocock e Skinner,1 — estes mais preocupados com “discursos” e “ideologias”2 — colaborou para uma significativa transformação nos trabalhos posteriores sobre a história das idéias que utilizavam como método a análise do discurso político. Assim, diversos conceitos, negligenciados em sua constituição histórica particular, ganharam status de condicionadores de cognição ou mesmo moduladores de qualificativos. Segundo M. Richter: “É possível permitir que um filósofo político, hoje, veja a relação entre

o uso de um conceito no passado e no presente ou que perceba a dependência do uso conceitual atual sobre o institucional ou outras práticas no passado.”3 Dentro deste espírito, e tentando utilizar os referenciais anglogermânicos, em que pesem algumas divergências entre ambos, da linguagem política e seus objetivos e relevâncias para a História, procuraremos construir uma linha de demonstração. Tendo em vista a larga utilização dos termos políticos, achamos importante balizar, mesmo reduzindo o universo de investigação, alguns conceitos que irão aparecer no decorrer de todo o século XIX e, como já foi dito, pensar o anarquismo e as implicações léxico-semânticas que o permearam na sua trajetória oitocentista.

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A escola alemã nos mostra a importância do sincronismo da linguagem, situação e tempo em que o conceito é analisado, “assim como uma análise diacrônica da continuidade, da alteração e da inovação destes vocabulários políticos e sociais.”4 Demonstra, ainda, que o conceitual político também possui raízes sociais e aponta para a necessidade da comunhão com a história social.

Embora a história política seja a beneficiária direta da reconstrução das linguagens políticas, estas são filhas de uma profunda preocupação com as dinâmicas sociais que, não raro, são as maiores responsáveis pela conotação dos termos. O próprio Koselleck, em suas primeiras obras, subordinou seu texto ao propósito de associar história social e epistemologia conceitual.5

Dessa forma, a preocupação maior das escolas, tanto a de Cambridge quanto a alemã, é a possibilidade de entendimento do conceito em seu tempo. Assim, para estes estudiosos dos conceitos, o princípio hermenêutico deve guiar as suas investigações e definir, em última análise, os conteúdos ou mesmo o corpo de seus trabalhos. Nesse sentido, o entendimento do que representava o anarquismo, ou mesmo no que se configurava enquanto significado politicamente construído, tornase relevante e justifica a investigação em torno do conceito. Lembrando sempre que este termo será incluído em uma família de palavras e, por conseqüência, de significados produzidos a partir do discurso político.

Melvin Richter, ao buscar definir a procedência do método complementa: “Pocock agora começa com a proposição de que os homens se comunicam por sistemas de linguagem, que os ajudam a construir tanto seus mundos conceituais como estruturas de autoridade.”6 Dessa forma, assim parece a certos estudiosos do assunto, faz-se necessário a conversão da história das idéias em história das linguagens.

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Os matizes do sentido

Para Pocock, os meandros sutis da análise do “discurso” podem muito bem substituir a investigação das idéias. O “discurso” deve ser entendido como desenvolvimento ou definição de campos de ação política, que são produzidos através da linguagem. A nós parece que este paradigma possui raízes correlatas às que nutriram o pós-estruturalismo do pensamento de Michel Foucault e pode ser encontrado até mesmo em Thomas Kuhn, mas a sua estrutura é distinta, na medida em que propõem relações mais rígidas com a técnica da lingüística.

As reflexões sobre a obra destes teóricos do “discurso”, alemães e ingleses, demonstram que as pequenas diferenças entre os projetos não os afasta no que tange ao objeto de estudo e, muito ao contrário, reiteram a complementariedade dos esforços.

As propostas de Skinner para a investigação histórica através da linguagem, que serve como identificação da ideologia, é bastante atraente e sintética de alguns objetivos da linha proposta pelos alemães. E assim tenta sintetizar M. Richter sobre qual deve ser o objetivo das metodologias que privilegiam a linguagem política: “descrever e tornar inteligível tais teorias ou ‘ideologias’ como atos intencionais do discurso”.7

Este trabalho pretende explicitar, através do conceito de anarquismo, as diversas conotações assumidas pela palavra em momentos históricos distintos. Sem a preocupação de seguir rigidamente qualquer dos paradigmas levantados anteriormente, mas observando as sugestões metodológicas fornecidas pelos mesmos, através do texto de Melvin Richter.

A disputa pelo sentido

O pensamento político no Brasil do início de 1800 é representativo de uma fase constitutiva do vocabulário

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que se apresenta em formação. Os significados, epítetos, ou adjetivos atribuídos a elementos ou procedimentos políticos têm, por assim dizer, vida própria e precisam ser observados e interpretados para além da significação que receberam nas respectivas origens européias.

O “jovem” Estado brasileiro já apresentava na sua formação, na década de 20 daquele século, características que permitiam o seu funcionamento como catalisador dos discursos de poder. Tais discursos, forjaram nas suas asserções políticas, juízos e valores que invariavelmente necessitavam ser traduzidos em palavras. Os debates instituídos no interior do espaço formal de atuação pública irão, em grande medida, dando significação aos termos utilizados, atribuindo-lhes valor e formatando significados.

A perspectiva constitucional concebida a partir dos eventos de 1820 no Porto, com conseqüências no Brasil, traz à baila uma nova forma de se pensar o governo e, por conseguinte, o próprio vocabulário político explicativo do mesmo. Como aponta a Prof.ª Lúcia M. B. Neves8, que demonstra a produção de um novo linguajar, nas questões relacionadas com o trato do político no Brasil, há uma incorporação de palavras que pretendem constituir-se em conceitos e termos que servirão de matéria-prima para a cunhagem dos discursos. Des- sa forma, dois grandes conjuntos de palavras passam a figurar nos pronunciamentos oficiais, subjetivando, de forma positiva ou negativa, uma conduta determinada a ser seguida.

É nesse contexto que a idéia de “Regeneração”9 aparece como conceito-chave de um processo de “ordem” em construção, e a ele ligam-se imediatamente diversas palavras de teor valorativo positivo como reforma, cortes, eleição, voto, eleitor, deputado, cidadão, direito e ordem.10 Em oposição aos mais “altos valores” da governabilidade aparecem os termos de equivalência

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Os matizes do sentido

negativa, presentes também nos discursos oficiais que buscam taxionomizar os germes da desordem ou dos excessos de liberdade, como anarquia, guerra civil, demagogos, pedreiros-livres, carbonários, jacobinos, sanscullotes, democracia, república, partido e facção.11

É importante ressaltar que os dois blocos de poder que disputaram, nos primeiros momentos, o locus privilegiado junto ao poder, após a independência, eram constituídos pelas elites coimbrã e brasiliense12, respectivamente representadas por José Bonifácio de Andrada e Silva e Joaquim Gonçalves Ledo. E que a vitória de José Bonifácio sobre o grupo rival de Gonçalves Ledo, possibilitou àquele a privilegiada posição de defensor das virtudes da “Regeneração”, associando à elite marginal derrotada os termos pejorativos relacionados aos excessos de liberdade.

Assim como o termo “Regeneração” chega ao Brasil, vindo da Europa (Portugal), carregado de significação, aqui é adaptado e posto a serviço da construção da ordem imperial, em oposição, a um Antigo Regime representativo das ausências de cidadania, de voto, de direito e da reforma. As idéias de “anarquia”, “guerra civil”, “demagogia” e “jacobinismo”, de forma nenhuma apresentam distinção a este processo. Os anarquistas, neste momento, representam a desestabilização, o caos social e a possibilidade de comprometer a dinâmica requerida pela ordem, para o seu desdobramento sob as vistas da elite ou elites. E, neste particular, a relação com os conceitos ou significações do termo guardam estreito vínculo com a Europa.

No caso brasileiro, o embate dos princípios ideológicos das duas facções das elites, a coimbrã e brasiliense, produziram um duelo de qualificação e desqualificação mútuas, onde a semântica adquiriu fundamental importância. A linguagem foi neste momento o principal meio de esvaziamento dos discursos dos grupos derro

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tados e, ao mesmo tempo, garantia de triunfo e legitimação dos vitoriosos.

A elite coimbrã, liderada por José Bonifácio — este representante do ideário que propunha limitar os poderes da Assembléia Legislativa —, usava nas suas investidas contra o grupo rival brasiliense, significações ventiladas pelo discurso. “O ministro José Bonifácio confiando na opinião pública, que havia abandonado a idéia de república, pois os brasileiros encontravam-se lisonjeados com os títulos de Império e Imperador, declarou uma guerra aberta contra o grupo brasiliense, considerando seus integrantes como membros do partido republicano e da anarquia”.13 Bonifácio, dessa forma, buscava demonstrar claramente para a população os “reais” objetivos do grupo de Gonçalves Ledo, signatário de uma proposta onde D. Pedro I, com imenso prejuízo para sua imagem monárquica, aparece como servo do povo e subordinado aos que governa.

Fato é que o grupo brasiliense desarticulado pela campanha de José Bonifácio sucumbe às críticas, e o sacrifício destes é justificado como uma forma de evitar males maiores para o próprio soberano, gozando então de grande prestígio. Era assim: “O meio de evitar a anarquia e a guerra civil seria a abertura de um processo que impusesse uma punição aos malvados”.14

Embora tentassem os brasilienses a identificação com

o princípio da “Regeneração”, através do jornal “Revérbero Constitucional Fluminense”,15 acabaram por perder a credibilidade, desacreditados pelo discurso político de seus adversários. Optando por aglutinar os termos e atribuindo-lhes significado, as elites políticas dão sentido às suas representações classificando condutas e estabelecendo modelos a serem representados na cena pública. O estabelecimento de famílias de palavras, a partir de seus sentidos ou mesmo objetivos, colocava a “anarquia” na

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Os matizes do sentido

esfera de valor do “republicanismo”, “jacobinismo”, do comportamento divergente e demais práticas identificadas e combatidas pelos cidadãos “de bem”.

Os representantes da elite coimbrã adicionavam, aos termos referidos com negatividade, os adjetivos de “caluniadores” e “pérfidos”. Assim como a palavra democracia está, naquele momento, associada a “anarquia” e ao despotismo do povo,16 estas idéias, ou mesmo termos que passavam a compor o mesmo bloco de significação, estão ainda no início do século XIX, no Brasil, longe do significado que percebemos hoje. A palavra “anarquia”, vista até aqui, como sinônimo de subversão ou elemento desestabilizador da ordem, tem suas raízes também na Europa — é utilizada já na França revolucionária, do fim do século XVIII. Não raro o substantivo “anarquia” ou o adjetivo de quem tende à mesma, ou seja, anarquista, estiveram ligados a situações semelhantes, a valores atribuídos por um determinado tempo histórico ou mesmo conjuntura. Na Revolução Francesa, os anarquistas muitas vezes eram os desestabilizadores, mesmo para os jacobinos como Robespierre. Segundo James Joll: “Os epítetos são significativos; ‘anarquista’ era o termo adotado por Robespierre para atacar os da esquerda, de que se servira para os seus próprios fins mas de quem resolvera se libertar”17. Joll alerta para uma construção, já na Revolução Francesa, de uma visão negativa do anarquista e de seu papel desagregador e nocivo para a sociedade. Entretanto, em outro trecho de seu trabalho, o autor mostra que não existia unanimidade em torno do papel dos anarquistas naquele momento. A citação da alocução dos sans-cullotes de Beaucaire, em 1793, à Convenção, apresenta outra perspectiva: “Somos uns pobres e virtuosos sans-cullotes; formamos uma associação de artesãos e camponeses... sabemos quem são os nossos amigos: aqueles que nos livraram do clero e da

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nobreza, do sistema feudal, das décimas, da monarquia e de todos os males que ela acarreta consigo; aqueles a quem os aristocratas chamam anarquistas, facciosos, maratistas.”18

É interessante notar que, neste momento de turbulência da revolução, o anarquismo assume ao mesmo tempo, para alguns, o papel de promotor da revolução e, para outros, de perturbador da mesma. Robespierre, certamente como apóstolo de um modelo revolucionário específico e guardião das virtudes do processo, encontrava para o anarquismo o significado mais “adequado”.

É bom lembrar que, segundo James Joll, os que mais se aproximavam do anarquismo do século XIX, no momento da Revolução Francesa eram os enragés de Jacques-Roux ou mesmo Jean Varlet. E, eram exatamente estes, os alvos dos “virtuosos” jacobinos de Robespierre.

Devemos observar que muitos dos termos utilizados no Brasil do século XIX, nos anos 20, são em grande parte herdados do processo revolucionário francês, apesar das modificações do significado dos mesmos, pelos distintos períodos históricos e mesmo pelo distanciamento das culturas. Acrescidos da contribuição lusitana, já que muitos termos chegaram ao Brasil depois de assimilados e interpretados pelos portugueses, certamente enriqueceram e ampliaram a complexidade dos discursos políticos.

Dessa forma, podemos perceber, no caso brasileiro, semelhanças no que tange à identificação de anarquista como elemento desagregador ou mesmo perturbador da paz. A despeito das singularidades históricas, e fatos cronológicos distintos, o termo no Brasil aproximava- se da construção ou atribuição conferida por grupos na França setecentista. Além do anarquismo, podemos constatar, no vocabulário político brasileiro, palavras

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claramente oriundas das discussões e cultura produzidas a partir da Revolução Francesa. A chamada “Ilustração Portuguesa”,19 disseminou a linguagem da revolução redimensionando-a aos interesses vigentes, atitude verificada também no Brasil. Quer pela via da reforma, ou mesmo pelas críticas aos modelos excessivamente liberais, o vocabulário universalizado a partir do fenômeno francês foi fundamental.

Destarte, é possível afirmar que não devemos separar os fenômenos das razões que os constituem, e a linguagem, como mecanismo constitutivo do discurso, obedece às mesmas regras, nas quais a razão de dizer não se separa do significado que assume o que foi dito.

O ideário político é tecido de fibras semânticas e, com a ajuda dos artífices (políticos), estas assumem as cores ou matizes desejados. A simbologia política necessita de elementos que a vinculem e promovam o seu reconhecimento morfológico. A identidade de valores simbólicos, faz-se também da reformulação dos discursos e reinvenção do significado das palavras, atribuindo- lhes valor ou ampliando os já existentes. É o que acontece no Brasil do primeiro Império, quando desfilam termos como “demagogos”, “república”, “carbonários” e “anarquia” de um lado, e em pólo oposto, “cidadão”, “voto”, “direito” e outros, assumindo assim polaridades distintas às encontradas em determinados grupos na Revolução Francesa.

Palavra e revolução

A idéia de anarquismo não se esgota no quadro histórico da conjuntura dos anos 20 do século XIX no Brasil, ou no resto da Europa. O termo anarquia nos anos 40, do referido século, continua a integrar os discursos políticos e mesmo a associar-se à idéia de revolução ou mudança brusca por “excesso de liberdade”.

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A Insurreição Praieira de 1848, em Pernambuco — onde facções disputavam o poder político e o Partido da Praia, com matizes distintos em seu interior, polarizava com os conservadores (saquaremas) e uma parte significativa dos liberais (luzias) — é um exemplo da permanência da idéia de anarquismo. Os termos analisados são retomados e, em muito, guardam os significados apresentados durante a disputa entre as elites coimbrã e brasiliense, na aurora da independência.

Os radicais da Praia, que incluíam na sua pauta de reivindicações — permeada por uma certa lusofobia — a luta contra os privilégios dos estrangeiros, partiam de concepções nacionalistas e esboçavam comportamentos que futuramente seriam encontrados nas camadas médias da população brasileira.

Apesar da utilização de um vocabulário político, já familiar ao meio público, podemos observar algumas variações no significado de termos largamente empregados. Em um artigo escrito por Borges da Fonseca, um radical da Praia, em seu periódico, O Verdadeiro Regenerador20, percebemos que a idéia de “regeneração” para os praieiros é, em muitos aspectos, distinta daquela que tinham os membros da elite coimbrã de José Bonifácio. Borges da Fonseca sistematizando o radicalismo, personificado pela ala a qual pertencia, previa, entre outros objetivos, em seu programa, o voto livre e universal do povo brasileiro”21, além da extinção do poder moderador, liberdade total de imprensa e a implantação efetiva do federalismo. E, pregando o fim dos partidos, lembrava: “assim que não temos partidos; estão eles para nós acabados; hoje só há liberdade e regeneração, ou escravidão e aniquilamento; venham todos a nós, que os receberemos como irmãos.”22 São momentos nos quais a palavra “regeneração” aparece com sentido diverso do visto anteriormente, mas ainda

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preservada no seu imperativo moral e como elemento desejável para a resolução dos problemas sociais.

Outros praieiros, como Antônio Pedro de Figueiredo, pensavam formas políticas alternativas ao “liberalismo” vigente em Pernambuco dos anos 40. Em sua revista social O Progresso, que circulou de 1846 à 1948, ele comemorava os acontecimentos do chamado “Quarantehuitarde” 23, — as manifestações nacionalistas da Itália, Alemanha, Polônia e Hungria —, além da insurreição em Paris naquele mesmo ano. Procurava divulgar, através de suas asserções, o entendimento da perspectiva que possuía de progresso, preocupação expressa já no título de sua revista.

E, para tanto, as palavras, uma vez recorrentes na revista, tinham que aparecer como representantes de um significado. Este expediente era importante, pois definia estratégias e a elaboração de táticas para os radicais, diferenciando-os dos conservadores e liberais apelidados então de “guabirus”. Para Izabel Andrade Marson, “enquanto os guabirus separavam revolução e reforma pelo fio da legalidade, porque não lhes convinha no momento tal recurso extremo, a Praia, sofrendo os últimos reveses, percorria o movimento inverso, confundindo uma e outra como soluções legais.”24

Os radicais da Praia caminhavam no sentido de pro- mover rupturas em relação às atitudes ou modus de operar mudanças na política, mas permaneciam prisioneiros dos sentidos das palavras ou vocabulários legados pela política tradicional brasileira. As idéias de progresso e regeneração conviviam no vocabulário radical, sendo que a primeira, pouco identificada com a segunda, por vezes fazia com que as influências mais diversas dificultassem a clareza do pensamento radical. O sentido de progresso naquele momento, determinado, em muitos aspectos, pela conjuntura européia, induzia conclusão de que através da técnica a sociedade pode

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ria resolver seus problemas estruturais, chegando-se mesmo a admitir que: “O segredo consistia, então, em neutralizar a contradição irredutível entre os dois termos — ordem (sinônimo de despotismo) e liberdade (sinônimo de contestação e anarquia) — recriando-os num espaço de moderação e complementariedade, despindo de tensões, superando as definições antagônicas, através de um instrumento mágico e fruto do conhecimento, a técnica.”25 O Progresso institui-se claramente aqui como elemento racional e mediador de um problema antigo no vocabulário político, qual seja, a possibilidade de se defender a liberdade sem a mecânica relação com a imagem da desordem. Mas é importante ressaltar que contra os radicais, a imprensa conservadora não cessava de utilizar o termo “anarquia”, associando-o a guerra civil26, e conseqüentemente, a todas as tentativas de mudança da ordem social.

A anarquia, palavra recorrente nos discursos que tinham como objetivo desclassificar os oponentes, geralmente partidários da liberdade, era então vista de forma bem diversa da conceituação que lhe deu Pierre- Josefh Proudhon no seu tratado apresentado à Academia de Ciências de Besançon, O que é a propriedade?, em 1840.

Embora vários autores apontem as influências de Proudhon, Blanc27, Saint-Simon, Cabet e outros na Insurreição Praieira e afirmem, como Vamireh Chacon, que: “as barricadas parisienses de fevereiro e de julho de 1848, irradiando-se numa ‘primavera dos povos’ que também atingiu o Brasil”, nos parece exagerada esta perspectiva, na medida em que o próprio entendimento do socialismo e do anarquismo estavam, aqui, reféns de uma herança política anterior e que as condições que proporcionaram a Praieira eram bem distintas. O próprio sentido do termo socialismo neste momento é de ampla interpretação, valendo lembrar que na própria

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Europa só se define mais claramente a idéia a partir de 1830, e que, no Brasil, podíamos encontrar indivíduos, como o General Abreu e Lima, também um praieiro, que possuíam singulares interpretações para o termo.

Abreu e Lima, alcunhado de “General das Massas”28, acreditava em um socialismo que utilizasse como pilares de sua constituição a propriedade e a família, além de entender este pensamento social não como ciência ou religião, mas sim como “providência”29. No seu “socialismo” cabiam pesadas críticas a Fourier, Saint-Simon, Owen e ao comunismo. Em seu livro O socialismo, publicado em Recife, no ano de 1855, o general esclarece seu juízo sobre a matéria deixando-nos um pequeno exemplo do que poderia ser encontrado no Brasil, ao tratarmos os significados de palavras utilizadas no vocabulário político.

A idéia que o General Abreu e Lima faz do comunismo, é bastante diversa daquela que faria um socialista do final do século XIX, ou mesmo da de um liberal da mesma época. Sem poupar adjetivos depreciativos ao descrever o comunismo e os seus seguidores, Abreu e Lima, afirma que esta doutrina não é tão clara como as anteriormente citadas, mas que compreende uma multidão de sectários.30 Entretanto, o livro do general nos faz atentar para uma ausência, qual seja: a de que em seus 31 capítulos não haja espaço para as críticas ao anarquismo.

Tal omissão, bastante sintomática, deve-se certamente a uma indefinição, ainda naquele tempo, da própria perspectiva de anarquismo em sua acepção política no exterior. Entendido, ainda, muito mais como comportamento do que por doutrina social.

Nos anos 50 do século XIX, o corpo teórico do que viria a ser o anarquismo moderno ainda estava por ser construído pelos seguidores de Proudhon. Os discípulos de Bakunin só passariam a identificar-se como anar

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quistas a partir do cisma ocorrido no interior da Associação Internacional dos Trabalhadores, no último quartel do século XIX. E segundo o historiador George Woodcock: “Proudhon foi um exilado voluntário do mundo político do século XIX; não procurou discípulos, reagiu com indignação, sempre que alguém se atreveu a dizer que procurara criar um sistema e certamente que lhe terá provocado prazer o fato de, durante boa parte de sua vida, ter sido a única pessoa a ostentar o título de anarquista. Os seus continuadores imediatos preferiram chamar-se mutualistas (...)”.31 Proudhon, segundo Woodcock, escolhera o anarquismo como qualidade de quem tende à anarquia, ao questionamento do poder. “O aparente paradoxo da ordem na anarquia — eis onde reside a chave para a viragem de significado de todo este grupo de palavras. Proudhon, convencido de que uma lei natural de equilíbrio age no seio da sociedade, rejeita a autoridade, que considera inimiga da ordem, fazendo recair sobre os agentes do princípio autoritário as acusações feitas anteriormente aos anarquistas; e, ao fazê-lo, adota aquele título que julga ter liberto de todas as conotações pejorativas.”32

Desta forma o termo anarquista, por via inversa, ad- quire força ética, na medida em que pelos discursos de poder, foi estigmatizado como a prática adotada pelos oprimidos ou mesmo os párias da sociedade organizada hierarquicamente. Proudhon tomou para si a difícil tarefa de habilitar um termo com significado negativo e com postura estóica resistiu durante muito tempo solitário com suas convicções. Ele afirma em O que é a propriedade?: “a propriedade e a autoridade estão ameaçadas de ruir desde o princípio do mundo: assim como o homem busca a justiça na igualdade, a sociedade aspira à ordem na anarquia.”33 Proudhon transforma assim a anarquia em veículo para se atingir o thelos qualitativo da sociedade; é a pedra-de-toque que levará

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o homem à ordem em oposição ao caos, que, segundo ele, é a autoridade. O imperativo moral anunciado por Proudhon é uma mudança radical no conceito de “anarquia” e confere aos anarquistas um papel privilegiado nas mudanças sociais. A ciência e o discurso

A segunda metade do século XIX no Brasil caracteriza- se, no plano social, pela formação de grupos de opinião nas camadas médias da população. O positivismo, introduzido pelos escritos de Saint-Simon, é, a partir dos anos 60, substituído pela vertente de Augusto Comte que, interpretada pelos segmentos intelectuais de então, passa a influenciar sobremaneira a idéia de progresso. Dessa forma, Augusto Comte legava a uma boa parte da intelectualidade brasileira suas noções de uma “Religião da Humanidade” consubstanciada na fé no progresso. A vertente comteana contrastava com a minoritária germanofilia de Tobias Barreto, tradutor de algumas passagens de O capital de Karl Marx, e outros materialistas. Comte reinava quase que exclusivamente, com seus postulados, princípios morais e sínteses científicas. Entretanto, outro pensador que ganhava notoriedade na Europa a partir de 1860, chega ao Brasil e arrebata as mentes de uma grande parte dos intelectuais. Com seu dogmatismo evolucionista, Herbert Spencer disputou com Augusto Comte as simpatias dos homens de idéias do Império, em particular daqueles com pretensões a emergirem como indivíduos empreendedores. Assim como Comte, Spencer pregava a crença no progresso, mas, atribuía a este características de uma evolução inexorável e científica. Segundo Richard Grahan, “embora Spencer jamais tivesse alcançado a forte influência exercida por Comte nos círculos brasi

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leiros, sua importante contribuição não pode ser ignorada.” 34

O liberalismo radical de Spencer propunha, entre outras medidas, a extinção do Estado, particularidade que o incompatibilizou com o jacobinismo republicano e, por via inversa, permitia equivocadamente sua aproximação do anarquismo.35 Tal confusão, filha do século XIX, é perceptível ainda em algumas análises nos dias de hoje.36

Um bom exemplo da perplexidade diante de tantas teorias e “novidades” vindas da Europa, é Euclides da Cunha que, segundo se tem notícias, teria assimilado simbioticamente os postulados de Comte e do evolucionismo spenceriano. Para o escritor de Os sertões, o livro de Comte, Síntese subjetiva, de 1856, era o maior livro do século XIX.37 Euclides da Cunha, segundo Richard Graham, era um “(...) engenheiro e acatado correspondente de jornais, demonstrou a influência que Spencer tinha sobre ele quando insistiu, em 1902, que: ‘ou progredimos, ou desaparecemos: isto é certeza”.38 A personalidade intelectual de Euclides da Cunha, longe de representar uma absurda e confusa síntese de idéias, era o paroxismo da aplicação de paradigmas europeus à realidade brasileira. Muito coerente com as tendências de seu tempo, assinou muitos de seus artigos de teoria e opinião sob o pseudônimo Proudhon.

Linguagem partida

A imprensa é um veículo que merece maiores atenções no que diz respeito à investigação das transformações, operadas pelos discursos, no conceito de anarquismo. Os primeiros jornais a fazerem alusão ao termo datam dos anos 30 do oitocentos, e já traziam no seu conteúdo a idéia, compatível com o momento, do que se entendia por anarquismo. Não procuraremos

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verificar o número de vezes que a palavra surge no título ou mesmo no interior da publicação, mas sim o sentido que ela apresenta quando figura nas respectivas obras.

Segundo o historiador do anarquismo Edgar Rodrigues, já em 1835 apareceu no Rio de Janeiro o periódico O Anarquista Fluminense, e, para o autor, “não se trata evidentemente o Anarquista em que se tornou Proudhon”39, era um periódico que simplesmente caricaturava as medidas governamentais sem maiores pretensões. O mesmo caráter atribui-se ao jornal O Grito Anarquial, de 1848, que criticava ações políticas das elites sem objetivos claramente revolucionários.

Mas é importante ressaltar que, ambos aproximavam- se ou assemelhavam-se, no sentido de produzirem uma crítica ao poder vigente.40

Encontramos em alguns livros referências sobre uma imprensa operária presente já nos anos 60, coincidindo com a entrada de levas de imigrantes e o aumento sistemático de jornais que tinham como objetivo tratar das questões sociais. “De 1860 a 1869, apareceram no Brasil vinte publicações operárias, número este que aumentou para 46 no decênio seguinte. Os títulos, que se repetem muitas vezes, denotam a tendência do jornal: O Operário, O Trabalho, O Proletário, O Socialista, O Brasil da Miséria, O Grito dos Pobres. Havia alguns, porém, como O Anarquista Fluminense, O Comunista, O Incendiário e O Carbonário, que procuravam satirizar a sociedade da época, de cunho humorístico, ou apenas possuíam um caráter liberal.”41

O aumento do número de jornais, se por um lado frisava as novas concepções atribuídas aos termos socialismo, comunismo e anarquismo, não garantia o rompimento com as antigas referências atribuídas aos mesmos no passado. A configuração de uma nova realidade social, e a formação de um proletariado, mesmo que

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incipiente, contribuíram, a médio prazo, para o entendimento dos termos a partir de interesses de classes relativamente definidos. Assim, palavras como anarquismo, ou mesmo socialismo, por força de uma nova realidade econômica e social, passaram a possuir um outro significado, a despeito das permanências do pensamento conservador. Para os grupos dominantes o anarquista ainda era o desagregador e desestabilizador da ordem.42

A dualidade que se estabelece a partir das modificações da realidade objetiva, não cessará de crescer no século XX. A visibilidade que passarão a possuir os libertários, por força do incômodo e da interferência na esfera pública burguesa, espaços sindicais e no meio intelectual, fará com que a apreciação das elites não fosse mais a única forma de se entender o anarquismo.

As experiências agrárias, como as de Guararema do italiano Artur Campagnoli (1888), Colônia Cecília de Giovani Rossi (1890) e outras, ensejaram a rediscussão da idéia de anarquismo no Brasil, embora muito criticadas por vertentes do próprio anarquismo europeu. Essas colônias introduziram um tipo de cultura libertária, saudada pelos militantes anarco-sindicalistas, que contribuiu para compor, nas páginas dos jornais operários, uma nova imagem para o termo.

Assim, a imigração adicionava, através de variados fatores, outros ingredientes à já complexa sociedade brasileira. Os imigrantes anglo-saxões, considerados pelas elites como melhores, ou mesmo ideais,43 em raras oportunidades foram identificados com o anarquismo. Ao contrário dos italianos, portugueses e espanhóis que, juntamente com outros brasileiros, definiram a reputação classista do ideário anarquista no país44. A presença do movimento operário no Brasil, e em particular na Capital Federal onde até meados da

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década de 10 do século XX estavam concentradas as indústrias, criou uma cisão na idéia de anarquia.

Se por um lado o vício elitista vaticinado pela pregação conservadora, na qual o anarquismo é o mal, permaneceu na imprensa identificando os “indesejáveis”, por outro, a classe operária em crescimento deu-lhe a leveza da esperança de dias melhores e um instrumento de luta para se alcançar a justiça social.

Em parte, a própria proposta doutrinal do anarquismo, em organizações não institucionais e grêmios de afinidade, que poderiam até ser étnicos, contribuiu para a formação da base social que daria voz aos princípios libertários. A marginalização dos contingentes de migrantes e imigrantes, além da estrutura arcaica da velha capital brasileira, forneceu as condições da organização do ideário anarquista sob bases propositivas.

Dessa forma, o início do século XX testemunha a inauguração de uma “linguagem operária” no Brasil, uma classe que pretende encontrar seu caminho, deparando- se com dificuldades, necessita formular seu próprio discurso através do entendimento de seus signos e palavras. O anarquismo é escolhido, por uma população excluída e pauperizada, como aríete para esgarçar a tessitura social pacientemente urdida pela burguesia na Belle Époque republicana; o anarquismo, revestido de ideais utópicos de libertação, passa mesmo a representar o velho risco, muito temido pelas elites em outros tempos, da revolução social. Sob este prisma, as demandas de uma camada social, que não cessaria de crescer nos anos seguintes, iriam determinar muito do que viria a significar o anarquismo.

Identificar o indivíduo, ou mesmo o grupo, como desviante é acomodá-lo na condição de anarquista e ao mesmo tempo aproximá-lo da desqualificação social.

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Conclusão

É preciso, antes de mais nada, pensar o efeito que uma palavra tem ao carregar consigo toda uma carga simbólica oriunda, de fato, das significações que esta assume no contexto do discurso. Trata-se de entender, também, em que medida as palavras, enquanto signos, na tradição de Roland Barthes, ou mesmo de outros estudiosos da semiologia, assumem significações independentes e definem o conteúdo da frase ou discurso; ou, se estas perdem-se no contexto da frase ou discurso, como um todo, e passam a servir de simples componentes do pensamento completo, materializado em discurso.

O vocabulário político é sem dúvida um manancial de significações, com caracteres variados, assim como representante de juízos distintos de acordo com cada construção. É, em um primeiro momento, o vocabulário que permite a veiculação das propostas dos grupos políticos. É também, a análise do vocabulário, ou melhor, das palavras impregnadas de determinadas idéias, um desafio pois, ao tentarmos identificar qual dos fatores é condicionante ou condicionado, no tocante ao discurso ou à língua, aqui entendida como palavra, nos deparamos com uma tautologia.

Na medida em que os discursos pressupõem intencionalidade, esta pré-disposição já permite forjar um sentido. Assim pensando, como ficaria a palavra carregada ou entendida como signo? Será possível à palavra possuir significado independente, não sujeitando seu sentido ao discurso?

O trabalho nos levou a entender que existe uma interrelação entre discurso e palavra (termo). E que a própria conceituação do termo já o coloca no âmbito do discurso, assim como a palavra traz, com ela mesma,

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conotações passadas que de alguma forma permanecem.

Assim como a palavra é parte integrante do discurso, ela fornece as definições morfológicas do mesmo. A palavra é o pigmento que permite a percepção da textura do discurso. Podemos identificar a palavra (pigmen- to) e discurso (textura), mas dissecá-los é tarefa bastante difícil.

A utilização do termo anarquismo por Proudhon, em 1840, dando-lhe um qualificativo, até então desconhecido na Europa, é de suma importância para se entender a forma filosófica moderna assumida pela doutrina política e social do anarquismo. Foi dentro de um discurso racional e bem construído que o francês de Besançon logrou “transformar” radicalmente a palavra que seria o distintivo de toda uma geração de revolucionários. Entretanto, as permanências e os interesses das elites nunca permitiram uma mais ampla aceitação do novo sentido defendido por Proudhon.

No caso brasileiro, a situação não foi radicalmente distinta. De um significado majoritariamente negativo no início do século XIX, até a disputa pelo entendimento do anarquismo como força de transformação e ação das classes oprimidas, podemos contabilizar inúmeras escaramuças e tentativas de definição do termo. A disputa política, feita com signos e imagens simbólicas, construídas pelas palavras e discursos das classes sociais, pavimentou o longo percurso do dualismo de sentido, ainda hoje, contido no anarquismo.

A forma complexa que caracterizou o anarquismo na ocupação de espaços simbólicos, elemento promotor das hegemonias políticas, pode responder a muitas das indagações feitas, nos tempos que se seguem, sobre o instável sentido que possui o anarquismo na sociedade. Tendo sido os seus significados produzidos a partir das situações históricas, que determinaram o vocabulário

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político, de acordo com os grupos capazes de veicular o sentido do termo com maior eficiência, o conteúdo semântico tornou-se, muitas vezes, mera conseqüência da capacidade que determinados elementos possuíam de atribuírem-lhe valor, via imprensa ou outros meios de comunicação formal.

Notas

1 Melvin Richter. Reconstruindo a história das linguagens políticas: Pocock, Skinner e o Geschichtliche Grundbegriffe. Edição in separata mimeo. Rio, UERJ, 1996, p. 1. 2 Idem, p. 45. 3 Ibidem, p. 4. 4 Ibidem, p. 6. 5 Ibidem, p. 8. 6 Ibidem, p. 25. 7 Ibidem, p. 41. 8 Ver: Lúcia Maria Bastos P. Das Neves, “Um novo vocabulário político” in

Corcundas, constitucionais e pés-de-chumbo: a cultura política da independência (18201822). Tese de doutorado apresentada à Universidade de São Paulo. São Paulo, 1992.

9 Idem, p. 241.

10 Ibidem.

11 Ibidem. 12 Ibidem. 13 Ver: Lúcia M. Bastos P. das Neves. “A exclusão como instrumento de poder:

a devassa contra os demagogos anarquistas no Rio de Janeiro (1822-1823)” in Gizlene Neder (org.). Cidade, poder e memória. Niterói, UFF, 1996, p. 90. 14 Ibidem, p. 91. 15 Lúcia Maria Bastos P. das Neves. op. cit, 1992, p. 244.

16 Lúcia M. Bastos P. das Neves. op. cit, 1996, p. 94. 17 James Joll. Anarquistas e anarquismo. Lisboa, Publicações do Quixote, 1977, p. 48

18 Idem, p. 48.

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19 Lúcia M. Bastos P. das Neves. op. cit., 1992, p. 241.

20 Ver: Vamireh Chacon. História das idéias socialistas no Brasil. Fortaleza/Rio de Janeiro, Civilização Brasileira/ Ed. UFC, 1981, p. 26.

21 Idem, p. 33.

22 Ibidem, p. 34.

23 O espírito de quarenta e oito, citado não só por Vamireh Chacon, como também por Amaro Quintas onde este atribui não só a Pernambuco como também a Paraíba, “aspirações libertárias” naquele momento. Ver: Amaro Quintas. O sentido da Revolução Praieira. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1967, p. 62.

24 Izabel Andrade Marson. O Império do progresso. São Paulo, Brasiliense, 1987, p.

395. 25 Idem, p. 294.

26 Ibidem, p. 395.

27 Segundo Chacon, a revista O Progresso de Antônio Pedro de Figueiredo teria se inspirado, até no título, na similar francesa de Louis Blanc, Revue du Progrès. op. cit. , p. 75.

28 No posfácio ao livro de Vamireh Chacon, o iminente historiador José Honório Rodrigues traça um breve perfil do General das Massas: “Abreu e Lima não foi apelidado de General das Massas pelas suas aventuras libertárias. No meu estudo sobre ele, publicado em História e Historiadores do Brasil, conto a história do apelido, criado pela falsa presunção, inventada por Varnhagen e aceita por Evaristo da Veiga, de que Abreu e Lima não fora General de Bolivar, e sim pelo fato de que, em seus discursos, apelam com freqüência às massas. O epíteto ridículo foi criado e divulgado pelo indignado Evaristo da Veiga, um dos precursores do udenismo”. op. cit. , p. 342.

29 José Ignácio de Abreu Lima. O Socialismo; 2° Edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.

30 Idem, p. 97.

31 George Woodcock. O Anarquismo. Lisboa, Ed. Meridiano, 1971, p. 11.

32 Idem, p. 10.

33 Pierre-Joseph Proudhon. Que es la propriedad? Barcelona, Ed. Tusquets, 1975,

p. 283. 34 Richard Grahan. Grã-Bretanha e o início da modernização no Brasil (1850-1914). São Paulo, Brasiliense, 1973, p. 244.

35 Edgar Rodrigues. Socialismo: uma visão alfabética. Rio de Janeiro, Ed. Ponta Aberta LTDA, 1979, p. 152.

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36 Angela de Castro Gomes. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro, Vértice/ IUPERJ, 1978, p. 104.

37 Evaristo de Moraes Filho (org.). O socialismo brasileiro. Brasília, UNB, 1981, p.

44. 38 Richard Graham. op. cit. , p. 246.

39 Edgar Rodrigues. Os libertários. Petrópolis, Vozes, 1988, p. 113.

40 Edgar Rodrigues. Sindicalismo e socialismo no Brasil. Rio de Janeiro, Ed. Laemmert, 1969, p. 57.

41 Moniz Bandeira; Clóvis Melo & A. T. Andrade. O ano vermelho: a Revolução Russa e seus reflexos no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967, p. 10.

42 Segundo Gilberto Freyre, nos anos que antecederam a abolição, até as posições moderadas sustentadas por Joaquim Nabuco eram qualificadas, pelos escravocratas, como atitudes de um “petroleiro”, “comunista” e “agitador”. Introdução in Joaquim Nabuco. O abolicionismo. Petrópolis, Vozes/MEC, 1977.

43 Ver: Lúcia Maria P. Guimarães. “Da pecha de anarquismo às páginas policiais: a imigração espanhola no Rio de Janeiro” in Gizlene Neder (org.). Cidade, poder e memória. Niterói, UFF, p. 123.

44 Como nos mostra Lúcia M. Paschoal Guimarães em relação aos espanhóis no Rio de Janeiro. Idem, p. 123.

RESUMO

As diversas nuances dos termos anarquismo e anarquia no debate semântico e etimológico, ativando a discussão acerca dos elementos constituintes do discurso político do século XIX no Brasil.

ABSTRACT

The various nuances of the terms anarchism and anarchy in the semantic and etymologic debate, stirring up discussions over the elements that constitute the political discourse on the 19th century in Brazil.

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libertários: educação da solidariedade e educação da revolta

Adelaide Gonçalves e Allyson Bruno * No seio do movimento libertário que, no Brasil, alcançou sua maior expressão social entre o final do século XIX e as décadas iniciais do século XX, a preocupação com as práticas educacionais enquanto armas para a transformação da sociedade foi uma constante. Bem claro estava para os militantes que passavam a atuar de forma crescente nas lutas operárias, buscando para estas características essencialmente libertárias, que a consecução das modificações no quadro de vida que experimentavam os trabalhadores dependia da formação de espíritos conscientes desta situação e comprometidos com a sua superação. Mais ainda, a formação dessas consciências libertárias, desses “espíritos

* Doutora em História Social pela UFSC e professora no Departamento de História da UFC. Mestre em História Social pela UFC e professor no Departamento de História da UECE.

verve, 2: 65-87, 2002

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livres”, seria a garantia de que essas transformações e conquistas estivessem a serviço dos trabalhadores.

Nos estudos sobre a presença de idéias e práticas anarquistas no Brasil, a faceta mais contemplada dessa demanda em torno de uma educação comprometida com a superação da ordem social vigente, é aquela associada com a fundação das chamadas escolas racionalistas ou modernas, fruto da divulgação e aplicação das idéias de educadores libertários como Francisco Ferrer, Paul Robin, Sebastién Faure, entre outros1. Em estudos que privilegiaram comumente o espaço do eixo centro-sul, foram abordadas, por exemplo, as trajetórias das Escolas Modernas em São Paulo e da Universidade Popular de Ensino Livre, no Rio de Janeiro, com ênfase nos seus programas, funcionamento e a repressão que sofreram por parte da ordem estabelecida.

Há, entretanto, um sentido mais amplo da educação, que muito marcou o discurso dos militantes libertários que animavam o associativismo dos trabalhadores no contexto da virada para o século passado, em que se faziam sentir a urbanização e a industrialização nascentes, imersas no quadro da “modernização” das principais cidades brasileiras. Esse sentido, veiculado principalmente por meio da imprensa operária, traduzia- se na premissa de que a ignorância era um dos principais obstáculos à emancipação dos trabalhadores, e que a instrução poderia levá-los a compreensão dos males que os afligiam.

A “instrução que redime” era estimulada através de variados meios. Além da proposta de abertura de escolas voltadas aos operários, lutava-se pela organização de outros espaços que poderiam servir à superação da ignorância e da conseqüente letargia que grassavam entre os trabalhadores, tais como, os sindicatos, os grupos editores, os círculos de leitura e bibliotecas voltadas ao estudo das “questões sociais”.

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Libertários: educação de solidariedade e educação de revolta

No Ceará, os periódicos Voz do Graphico (1920-1922) e O Combate (1921) são os representantes locais de uma imprensa que expressa uma visão de socialismo libertário constituída a partir do pensamento de Pierre- Joseph Proudhon, Mikhail Bakunin, Piotr Kropotkin, mas também das idéias sindicalistas revolucionárias de Émile Pouget e Fernand Pelloutier que, na França, de- ram origem ao que viria a ficar conhecido como anarcosindicalismo2. O desenvolvimento dessas idéias no Ceará ocorre no contexto das mudanças provocadas pela divulgação das novas idéias progressistas, vindas diretamente da Europa, ou através de cidades como Recife e Rio de Janeiro.

Nas páginas de ambos os periódicos, ligados ao associativismo dos trabalhadores gráficos, é freqüente

o apelo à educação a cuja expansão estava subordinada a vulgarização dos ideais libertários e a transformação social como almejavam. Na imprensa dos gráficos, a concepção de educação revestida de um sentido mais abrangente que o de instrução, capturando inclusive um certo tom milenarista de missão, é o suporte fundamental para grande parte das construções discursivas que associam a ausência de educação à desunião e à ignorância. Entendem alguns militantes operários que a união tem como lastro a vivência prática da solidariedade e que esta, por advir dos conteúdos da experiência, liga-se ao tempo da aprendizagem e de sua internalização, construindo um con- junto de valores éticos que devem cimentar as práticas da classe. Este é o vocabulário do gráfico Pedro Augusto Motta3, em 1920, exortando os operários cearenses à união: “Mais que a ignorância, a desunião, concorre para a nossa miséria, porque desvaloriza o nosso trabalho, a nossa família e o nosso caráter, porque nos reduz a mercadorias expostas a quem mais der (…).”4

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Para Pedro Augusto Motta, o estado de miséria e exploração a que se encontra submetido o operariado resulta da situação objetiva criada por um regime desigual. O combate a esse regime requer, segundo ele, a criação de liames formais de união e organização, como

o sindicato de resistência. A essa via organizativa se interpõe um obstáculo, a ignorância. Este discurso, veiculado no Voz do Graphico, em 1920, é ilustrativo da formulação dos conteúdos da revolta mediados pelo combate à ignorância: “Operários cearenses, brasileiros, universais, unamonos. Estudemos a nossa situação, o estado de nossa família, a miséria que nos assoberba, os vícios que nos entibiam o organismo, principalmente a ignorância que é o maior dos nossos males, a causa da nossa dor, e dos nossos infortúnios!

E depois, quando tudo isso tivermos feito, quando sentirmos em nossa consciência o vislumbrar das idéias que se nos despertam, (…) então saberemos sentir o que somos e o que valemos, (…) o gérmen purificador do nosso espírito, até ontem adormecido na embriaguez da ignorância, no enervamento da nossa consciência, é a revolta, a revolta indomável que existe latente em to- dos os indivíduos e, que, adormecida despertará um dia para tornar o homem capaz de viver e pronto para lutar.” 5

Embora o maior volume de argumentos tome a ignorância como uma espécie de “mal de origem” para o estado de apatia e indiferença ante às exigências das lutas sociais, aparecem argumentos situando o problema da ignorância (como falta de instrução) como iniqüidade decorrente do regime social vigente. No Voz do Graphico, em 1920, a formulação mais usual é de que em razão “de toda a riqueza social correr fatalmente para os cofres da minoria dominante”, mais aumenta a fome, a miséria e a “ignorância campeia triunfante nos arrai

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ais das inteligências novéis, cultiváveis e prometedoras”. 6

Partindo do dito popular “que homem desinteligente e ignorante nunca poderá sair da miséria” e que é essa a razão que os torna em seu meio “considerados como fósforos queimados”, o Voz do Graphico argumenta junto ao seu público leitor que:

“Assim sendo, instruamo-nos o quanto antes. Hoje mesmo, quando chegarmos em nossa casa, depois de manjar o nosso feijão, devemos procurar as escolas, noturnas ou diurnas, para educar e instruir o nosso espírito, a nossa consciência (…). Nada mais triste e vergonhoso do que um operário ignorante. Senão vejamos: sou operário, (…) adoeço, preciso fazer uma carta (…), mas acontece que eu não sei ler (…) e tenho que recorrer a estranhos – é triste e vergonhoso, não achas camarada?”7

Tratando em seus artigos do que localizam como sendo os males da desorganização operária, assestam as críticas à indiferença, pois que “Aos indiferentes Dante recusou o próprio inferno”, ao mesmo tempo em que situam o problema da ignorância não apenas como decorrência da pouca instrução, mas como fenômeno existente mesmo entre os ofícios considerados mais cultos. Esta apreciação sobre os gráficos de Fortaleza revela tal entendimento:

“(…) Não é de hoje que afirmamos ser a desorganização existente no seio das classes trabalhadoras a causa direta da presente situação e miséria em que se debatem.

Não somente a desorganização, mas também a desunião e ignorância que, infelizmente, suplantam e concorrem bastante para o indiferentismo em que aquela se encontra, dentro mesmo das classes que já tem as suas organizações.

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E a verdade deste cruel abandono em que vivemos (…) temos no meio da nossa própria classe, considerada, talvez, a mais culta dentre todas as outras genuinamente operárias.”8

Se a formulação do jornal como a escola do pobre é recorrente, não menos enfática é a identificação do sindicato como escola. Na imprensa cearense de orientação libertária tal formulação é evidente. Quando como exemplo se traz à discussão o sindicato de resistência como campo de organização anticapitalista em contraponto às práticas beneficentes, o modo considerado mais eficaz para explicar a função do sindicato é apresentá-lo como equivalente à escola, ampliando seu sentido e função social, como neste artigo de José Mathias de Azevedo, em que fica clara a noção de escola como lugar possível de construção de novas sociabilidades pautadas na solidariedade, apoio mútuo, igualdade e comunidade de interesses:

“O sindicato é a ESCOLA e o recreio do operário e de sua família; ali ele aprende a ler e ensina aos companheiros que desejam aprender; ali ele aprende a estimar o seu semelhante e irmão, dando assim um passo em prol do sentimento de igualdade; ali ele conhece que

o interesse do trabalhador é um só em toda parte; ali ele aprende a ser homem de verdade (…) ali ele aprende a organizar, a produzir e distribuir eqüitativamente o bem comum segundo as necessidades de cada um.”9 Sílvia Petersen, adotando o estudo de Eric Hobsbawn sobre o sindicalismo nesse período, caracterizado como lugar de prática social e política onde se combinava uma atitude (denegação do presente e crença no futuro), uma técnica (a militância), uma estratégia (as greves) e uma esperança (prefiguração de um novo mundo), ressalta o mosaico associativo das primeiras décadas do século XX, onde as escolas, a imprensa, as conferências doutrinárias, o esforço pedagógico se contrapõem à cultura

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dominante. Eis aí o momento e os mecanismos que implicavam um tipo humano que era, ao mesmo tempo, agitador, pedagogo, jornalista, dramaturgo, profeta e animador cultural. O sindicato foi a escola possível de realização dessas múltiplas práticas e de surgimento desses sujeitos sociais10.

Veja-se que os jornais das associações gráficas, aqui apresentados, de certo modo, repercutem e recriam as teses correntes na imprensa dos trabalhadores de outros estados. Em A Voz do Trabalhador (RJ) são vários os articulistas que discutem a importância da organização e união operárias, sendo o sindicato o lugar por excelência onde se faz a propaganda do apoio mútuo, onde se reforçam as reivindicações em torno das necessidades materiais, onde se apuram as responsabilidades dos sofrimentos individuais e coletivos e sobretudo onde se realiza a tarefa de educação moral dos operários. Por educação moral entendem o reforço aos atributos de dignidade e solidariedade. Para eles, o moderno operariado em seus grandes contingentes é capaz de gestar uma comunidade de interesses, fazendo nascer a solidariedade, que “pode crescer, ganhar força, fazer diminuir ou fazer desaparecer o sentimento de medo, muito freqüente nos isolados”. Este tipo de educação, para eles, deve realizar-se “pelo exemplo e pelo contágio que dele resulta: aprendem, afoitam-se a não curvar a cabeça, a não ter medo”. Por fim, apontam o exemplo das greves como prática da solidariedade e da revolta, sendo elas por isso “ainda que parciais, (…) úteis e necessárias para a educação da solidariedade e para a educação da revolta”.11

No Ceará, a imprensa de matriz socialista libertária considerava que a apatia, a indiferença dos trabalhadores frente aos constantes apelos organizativos decorria, em grande medida, do analfabetismo, da ignorância, instalados no meio operário. Vencidos estes grandes

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males, estariam sendo preparadas em bases mais sólidas a luta reivindicatória, e poder-se-ia superar o quadro de dificuldades para a consecução da tarefa de organização da classe, a partir da constatação de que é necessário promover uma educação integral

“que capacite aos seres humanos para desempenhar funções úteis à sociedade; a proscrição de todas as superstições e dogmatismos no ensino e a defesa ampla da liberdade de pensar em todas as suas manifestações orais e escritas ou representativas.”12

É preciso entender que a formulação acerca da necessidade de instrução, nesta vertente libertária, visava propor mecanismos educacionais não apenas para que o trabalhador tivesse contato com os rudimentos elementares da escrita e da leitura. Sua proposta, de caráter mais abrangente, buscava precipuamente aliar os resultados da educação à possibilidade de compreensão da origem dos sofrimentos dos operários, na perspectiva do entendimento dos projetos emancipatórios. São incontáveis os depoimentos reveladores deste tipo de formulação. Transcreve-se aqui o de José Bernardo, por conter uma espécie de esboço programático mais geral acerca da concepção de educação enfeixada no dístico Instruir para Redimir como recurso finalístico e estratégico na organização da classe:

“Para mim, trabalhador manual é sujeito às vicissitudes estafantes do ofício, nada maior como obstáculo à compreensão dos ideais libertários pela massa escravizada ao salário e ao patrão, do que a falta de instrução.

(…) Sem instrução não pode haver compreensão nítida do ideal libertário.

Abraçar uma idéia sem conhecê-la a fundo, é afirmar uma causa que não se sabe o efeito.

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Para que se saiba compreender a origem dos nossos sofrimentos e seus efeitos, necessário se faz que tenhamos instrução clara, racional.

(…) Urge, pois, que criemos as nossas escolas para salvaguardarmos a parte maior do proletariado adulto e a totalidade dos pequenos operários, se quisermos triunfar futuramente.

Instrução! deve ser o nosso brado, a nossa divisa, INSTRUIR PARA REDIMIR!”13

A falta de instrução, o analfabetismo, a dificuldade de acesso à escola constituíam, a seu juízo, resistentes obstáculos à propagação das idéias libertárias e socialistas. Para a ultrapassagem desse quadro se impunha a criação de variadas formas de educação da classe, a partir da idéia nuclear de que

“devemos nos aprestar, unindo-nos e instruindo-nos na Biblioteca de Livros produzidos por trabalhadores e sábios sociólogos, nossos amigos de fato, para arrebatar o nosso lugar, que deve ser de destaque na administração da nação, destes que nos desprezam e nos exploram sem piedade e sem compostura.”14

Considerando ser diminuto, em Fortaleza, o número de estabelecimentos educacionais públicos, somado ainda ao fato de que a escola formal não fazia parte de sua vida, dado que a família operária — homens, mulheres, crianças — desde logo era instada ao trabalho para prover o básico de sua existência, assim manifestavam sua crítica/denúncia:

“O filho do operário quando chega à idade de ir para a escola, mandam-no para a oficina: em vez do livro, dão-lhe a ferramenta do ofício. É mais uma vítima que vai ser devorada pelo Moloch do capitalismo implacável, (…) é se ver pelas fabricas, crianças pálidas, linfáticas, minadas de clorose, organismos que se preparam para a tuberculose, (…).

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A culpa maior, (…) cabe aqueles que nunca pensaram em melhorar-lhes a sorte, proibindo a exploração torpe das crianças atiradas nas fábricas em vez de estarem na escola, no templo suntuoso e augusto em que o saber, numa onda luminosa e fluente, derrama sobre os cérebros, a luz grandiosa da instrução preparandoos para se erguerem fortes e indômitos, prontos a se baterem, de fronte erguida, pelos ideais sublimes das grandes causas libertárias.”15

A constituição de círculos de leitura em torno dos jornais foi decisiva no esforço de congregação dos militantes, na tessitura de vínculos entre distintas regiões do país e instrumento de fundamental importância no processo de auto-educação do proletariado. Para que se dimensione seu grau de significação, veja-se, em parte, o Projeto de bases de acordo para formação de núcleos libertários, que informou a ação de Moacir Caminha, José Mathias, Ernesto Brasil, Pedro Augusto Motta, Francisco Falcão, José Bernardo, Eurico Pinto, entre outros, criando em Fortaleza o Grupo Libertário de Amigos d’A Plebe, em 1921. O Projeto definia como princípio central a necessidade de formação, consagrado pela auto-educação e “recíproca influência cultural dos seus membros a mais firme e maior capacitação de todos e de cada um dos seus componentes”. A necessidade de formação individual visava converter o pequeno núcleo em centro de irradiação de “uma intensa e perseverante propaganda tendente à elevação intelectual e moral dos trabalhadores”. Para eles, a estratégia de auto-educação formadora de espíritos livres era condição indispensável para promover a luta anticapitalista. A eficácia de tal estratégia, cujo objetivo era o advento de “uma sociedade harmônica e solidária edificada pela livre inteligência dos produtores”, requeria a propagação incessante “pela palavra, pela escrita e pela associ

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ação de vontade, na luta contra as instituições do Estado e contra as rapinas do capital”.

Apresentados os princípios de formação dos núcleos militantes, o enunciado de seus fins recupera os atributos da união, da afinidade ideológica e dos laços de solidariedade como signos de coesão, destacando os elementos indispensáveis à circulação das palavras de combate. A divulgação dos jornais, livros e folhetos ocupa lugar central, associada às reuniões, conferências, atos de protesto, devendo “quando possível, fundar uma biblioteca de estudos sociais, entrando em relações com os grupos, centros operários, jornais, etc., no sentido de obter os meios necessários a esse fim.”16

Todo esse conjunto de atividades era secundado por outro, objetivando cumprir a tarefa de instruir para redimir, o que se fazia de forma constante, através da realização de palestras, conferências, cursos e da adaptação, ao teatro, da literatura social produzida no meio operário ou que sobre ele tematizasse. Vão, pouco a pouco, tentando constituir espaços de diferenciação da cultura dominante e até mesmo em relação aos grupos com atuação no meio operário, em particular com as sociedades beneficentes e os círculos operários católicos.

O Voz do Graphico (1921) e O Combate (1920) veiculam permanentemente convites para conferências e palestras, em Fortaleza e no interior (Sobral, Quixadá e Aracati). O temário abarca desde a discussão de fatos mais ligados ao cotidiano das reivindicações, às pautas de luta por melhores salários, redução da jornada de trabalho, condições dignas de trabalho e moradia, até aqueles assuntos de caráter essencialmente doutrinário. Muitas são as conferências abordando os temas: O Socialismo e as Sociedades de Resistência ou Sindicalistas, O Cooperativismo e o parlamentarismo, O Papel da mulher na luta operária, Os Direitos dos trabalhadores

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nas fábricas e nas ferrovias, O Valor das sociedades sindicalistas, O Socialismo contemporâneo, O Sindicalismo e a emancipação econômico-social do proletariado, O Pa- pel da imprensa na propaganda social, entre outras.

Sob os auspícios da Federação dos Trabalhadores do Ceará, a partir de 1920 realizam-se palestras operárias, sendo seu dinamizador o gráfico Pedro Augusto Motta, que aborda uma série de temas ligados ao socialismo e às sociedades de resistência ou sindicalistas, tratando de difundir entre sua audiência as teses libertárias, centradas na virtualidade da organização sindical como contraponto aos apelos da política partidária. Registrese que neste período o militante gráfico se aproximava cada vez mais da vertente anarquista e do sindicalismo revolucionário, tendo já explicitado suas divergências com o núcleo fundador do Partido Socialista Cearense, de 1919. Parece estar extraindo das resoluções emanadas da constituição dos núcleos libertários, nos anos 1920, o modo de realização de sua militância:

“Deverá, sempre que possa, promover a organização dos trabalhadores em sindicatos de ofícios vários, e tomará parte direta nas organizações de outras tendências, quer sejam reformistas, sindicalistas ou beneficentes, procurando fazer com que as mesmas se orientem pelos métodos de ação direta na luta contra o Estado e

o Capital.”17 Ora são os militantes gráficos envolvidos na criação dos sindicatos de resistência, ora são os dirigentes da União Geral dos Trabalhadores Cearenses, depois Federação dos Trabalhadores do Ceará, como ainda alguns conhecidos professores de Fortaleza que estreitam laços de colaboração com as entidades operárias, inclusive criticando seus pares que, segundo eles, dispõem de discernimento intelectual e compreendem as mazelas do seu tempo gestadas pelo capitalismo e não firmam compromissos de difusão das teses anti-capita

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listas no meio operário. Um destes é o professor Paula Achilles que, oferecendo seus préstimos para a fundação de uma escola operária, em meio a uma anunciada “numerosa assistência de trabalhadores”, fazia uma conferência sobre o Socialismo Contemporâneo. Ao abordar o tema tratava de fazer a crítica aos intelectuais que “apesar de conhecerem a questão social, as grandes verdades do Socialismo e as grandes misérias do regime atual, não tem a devida hombridade de revelar ou propagar esses conhecimentos e preferem acompanhar a turba dos exploradores.”18

Ao mesmo tempo reafirmava a necessidade de ado- tar mecanismos que favorecessem a educação operária para que “a consciência de todos e a união de vistas entre todos sejam os meios de ação dos trabalhadores”. Na qualidade de professor, defendia a instalação de es- colas para trabalhadores como um caminho para o fortalecimento dos laços de união e solidariedade, para ele imprescindíveis na tarefa de organização da classe.19

Vez em quando aparece nos jornais um camarada pedreiro, alfaiate, barbeiro, que embora não nominado, está falando sobre os temas em voga no seu meio. Certamente não são anônimos e compuseram com tantos outros esta lista de intérpretes, tradutores e elaboradores do pensamento e das lutas sociais no Ceará, nas primeiras décadas do século XX.

Nos modestos salões das entidades operárias de Fortaleza e do interior do Ceará — na Associação Graphica do Ceará, União dos Ferroviários Cearenses, Escola Operária Secundária, Sociedade Beneficente Centro dos Carroceiros, Federação dos Trabalhadores do Ceará, Sindicato dos Carpinteiros, Sindicato dos Operários Ferroviários de Sobral, Aliança Artística e Proletária de Quixadá —, alguns conferencistas foram os responsáveis diretos pela difusão das idéias socialistas gestadas no século XIX.

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Ressalte-se aqui a função das conferências como uma das modalidades de leitura comentada. No caso da imprensa dos trabalhadores é razoável situar essa prática como herdeira da tradição do lector; as conferências realizadas nos salões das entidades operárias e os discursos em suas assembléias e atos de protesto ou celebração são elementos de difusão da palavra impressa. Através dos conferencistas que traduzem e adaptam as realidades do seu meio às teses correntes, os não alfabetizados têm acesso à palavra impressa. Veja-se ainda que a metodologia das conferências, quase sempre seguidas de debates, guarda relação com o dispositivo das leituras comentadas da experiência portenha, referida por Dora Barrancos. Elas também funcionaram como mecanismo de propaganda e educação, propiciaram o debate e constituíram momentos de socialização do repertório de autores e temas da tradição socialista, além de favorecerem o congraçamento e a manifestação de laços de camaradagem, em si um ato comunicativo20.

Além das conferências, publicam traduções de artigos seccionados em várias edições, como os de Émile Pouget, Émile Costa21, Piotr Kropotkin e Maximo Gorki, ao lado dos intelectuais franceses reunidos na revista Clarté22, ressaltando a tese por ela difundida no que se refere à ordem moral e à necessidade de educação integral aos indivíduos.

Através das traduções publicadas nos jornais e das listas de livros recomendadas em sua imprensa é possível pensar o conteúdo das bibliotecas básicas que começam a existir em alguns sindicatos. Neste ponto, são pertinentes as observações de Martyn Lyons. Em seu estudo sobre as seleções de livros de trabalhadores franceses para sua bibliothèque populaire ou bibliothèque démocratique, observa que eles escapam às tentativas de controle dos notables da cidade e da élite religiosa, incluindo os livros de Voltaire, Rousseau, George Sand,

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Eugène Sue, Enfantin, Louis Blanc, Fourier e Proudhon, indicativo do esforço dos leitores operários na formação de “uma cultura literária própria, livre do controle da burguesia, do catolicismo ou da burocracia”.23

A divulgação das listas de livros e a formação de bibliotecas decorrem em grande medida dos índices recolhidos através do intercâmbio ainda que precário de informações, com o que consideravam “centros mais adiantados”. Buscavam, sem intervalos, o contato com os grupos editores de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Portugal, realizando o intercâmbio com o que consideravam sua contraparte metropolitana. Tentavam difundir os escritos e os ecos das lutas travadas nos centros considerados mais avançados, procurando superar as distâncias e as debilidades organizativas. Vencendo o problema das grandes distâncias, a circulação irregular das publicações e outras dificuldades, aqui e ali noticiam o não recebimento de alguns jornais de outros estados, denunciando tal fato como decorrendo da apreensão, pelo serviço local dos correios em Fortaleza, dos jornais operários enviados.

Salientando que a ignorância está na base de todos os padecimentos dos trabalhadores, a argumentação do Voz do Graphico é construída de modo a que os leitores/ trabalhadores percebam que seu estado de miséria, salários aviltados, confisco de direitos elementares pode ser transformado, desde que estejam municiados da inteligibilidade do mundo e compreendam as raízes geradoras de tal quadro. Afirmam que a fonte de poder na sociedade de seu tempo reside na concentração do capital e na apropriação do saber para fins da dominação, localizando aí um elemento a mais que justifica a necessidade de cultivar o espírito, para empreender a luta emancipatória. Tal é sua formulação:

“Na sociedade presente existem duas cousas que dominam o mundo: uma é o ouro; outra a inteligência.

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E já que não possuímos o ouro presentemente, é preciso cultivarmos a inteligência, porque o resultado desta imbecilidade é ficarmos reduzidos a um estado de mendicância tal que nos há de causar dó, e com espírito culto, iluminado pela instrução, saberemos lutar, saberemos vencer.

Cultivemos pois o nosso espírito, e esta miséria que reina em nosso meio há de desaparecer, há de sucumbir!.

(…) e como a conseqüência desses males que nos corrompem e nos degeneram é a falta absoluta de instrução e especialmente de união, instruamo-nos e unamo-nos!

Instruamo-nos sim, porque instruídos saberemos repelir os males que nos afetam, conseqüência direta da ignorância reinante em nosso meio e que nos assoberba e nos asfixia!

Unamo-nos, sim, porque unidos poderemos exigir os nossos direitos, conquistar as nossas reivindicações!

À Escola, à Sociedade, pois, camaradas!”24

O chamamento reiterado n’A Voz do Graphico, À Es- cola, à Sociedade, pois, camaradas!, indica o alargamento da concepção de educação. A escola, espaço formal de apropriação de saberes, é requerida, mas não substitui a escola do sindicato, das greves, dos jornais. Como ainda, a educação como formação do ser moral, na expressão de Kropotkin, é buscada através das memórias, ritos, símbolos e alegorias que vão se inscrevendo no campo das tradições operárias.

Os conteúdos de formação e ampliação social da propaganda tiveram no jornal um significativo espaço. É a imprensa que vai se constituir não apenas no lugar de circulação de idéias, mas no espaço de aglutinação de homens e mulheres. Ao criarem seus jornais, estavam também forjando uma experiência de (in)formação alternativa ou contraposta à imprensa burguesa. Ao atri

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Libertários: educação de solidariedade e educação de revolta

buírem à educação a função de formação de consciências libertárias, a imprensa pode ser vista como meio eficaz de ampliação dos conteúdos da tradição libertária, pelo seu alcance e por sua característica aglutinadora; onde “os pequenos grupos gravitavam em torno de um núcleo de atração”, posto que “a imprensa teve em quase toda a história do anarquismo um papel capital como agente de ligação”25. Quantos jornais começam em minúsculas salas que passam a ter as múltiplas funções: de redação, círculos de leituras, seções de teatro, ou, como descreve Jean Maitron, “a sala do grupo é o lugar de passagem onde cada um fala à vontade, lugar de educação e não de ação”26. A adesão ao socialismo libertário certamente encontrou no jornal sua maior inspiração, porque mais difundido. Passando de mãoem- mão, deixado no bonde para o acesso de outros. Lido, relido e conservado, colaborou no sentido da formação e educação militantes.

A leitura dos clássicos do pensamento libertário, a formação de círculos de cultura, a organização de bibliotecas do pensamento social, as traduções, o rastreamento de estudos com vistas a organizar um pioneiro índice da história operária e dos movimentos sociais no Brasil, o apego à matéria das memórias exemplares, a disseminação dos ritos e símbolos da luta social, como já referido, se constituem em estratégias no meio operário, como prática da educação libertária27. Aqui entendida como aquela advinda das teorias educacionais e experiências educativas baseadas na liberdade, solidariedade e autogestão entre indivíduos e grupos, com vistas a sua autoformação e autonomia28.

O jornal, o opúsculo lido em voz alta e o livro são artefatos que ampliam o horizonte do mundo vivido. Passo seguinte é a Escola. O Sindicato de resistência já é uma escola. As greves são argumento de educação da solidariedade e da revolta. A luta pela jornada de oito

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horas é outro exemplo que carrega forte sentido pedagógico. Em muitos escritos de militantes socialistas, nas primeiras décadas do século XX, é evidente o sentido conferido à luta pelas oito horas “como uma escola, na qual o proletariado faria sua aprendizagem da revolução social”. O estudo de Josué P. Silva apresenta vários indícios confirmadores de que “a conquista da jornada de oito horas não é a jornada curta em si, mas a função pedagógica da ação operária, o aprendizado que esta ação possibilita aos trabalhadores”429.

O Teatro também é escola de representação de suas práticas sociais. Os hinos e a poesia repercutem marselhesas e novas bastilhas30. A literatura social fala de andrajos e farrapos que um dia foram homens e mulheres. As comemorações e os protestos de Primeiro de Maio são outra escola de reinvenção das tradições. O exemplo dos “sábios e grandes pensadores”, entre os quais Ferrer, é modelo para sua ação. Das conferências de seus divulgadores no Brasil e dos artigos que circulam nos jornais e revistas surgem as idéias de formação das primeiras escolas modernas. No Rio Grande do Sul, em São Paulo, no Rio de Janeiro são vários os exemplos. No Ceará, a semente brota com as escolas Renascença e Humanidade Nova31.

Ressalte-se que, desde sua fundação, a União Geral dos Trabalhadores fixa como diretriz organizativa fundamental “propagar a instrução literária e científica e o aperfeiçoamento profissional do trabalhador cearense”. Nesta linha, em fevereiro de 1921 a União dos Operários Ferroviários Cearenses comunica, através das páginas de Voz do Graphico, a fundação de uma Escola Noturna, em sua sede na rua Santa Isabel, “para educação sua e de seus filhos”. A criação da Escola é justificada nestes termos pelos dirigentes da União dos Ferroviários Cearenses:

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Libertários: educação de solidariedade e educação de revolta

“(…) Este acontecimento, para nós de suma relevância, vem patentear mais uma vez que o homem do trabalho já se convenceu de que só pelo estudo, só pela educação moral, intelectual e social poderá chegar ao pináculo da posição que lhe assiste no seio da sociedade; só aperfeiçoando o seu espírito científico e racionalmente, tendo por norma a base de ensino da Escola Moderna, de Ferrer, poderemos chegar ao ponto de desfrutar sobre a terra o que aspiramos para a humanidade: liberdade, igualdade e fraternidade. Enquanto não, viveremos sempre escravos, porque a ignorância é uma espécie de escravidão para o nosso espírito, e a liberdade quer luz, quer expansão, quer gênio.

Que os trabalhadores de todos os matizes e todas as escolas sociais encontrem neste exemplo dado pelos camaradas Ferroviários um caminho a delinear no futuro dos seus dias é tudo quanto esperamos, é tudo quanto queremos, é tudo quanto exigimos! … Esperamos, sim, porque o exemplo é sempre um desejo a manifestar outro desejo; queremos, sim, porque é nosso desejo ver toda a falange dos trabalhadores conscientemente educados nos princípios de uma sociedade perfeita; exigimos sim, porque ao cumprimento do dever não se espera nem se quer que se manifeste quando a inconsciência, a ignorância reina no meio daqueles de quem exigimos.”32

Observe-se que o enunciado enfatiza o princípio da liberdade, em contraponto à ignorância, tomada como a “escravidão do espírito”. Para o articulista, a base da formação militante estaria na educação moral, intelectual, social e no aperfeiçoamento científico e racional, em suma, recolhendo em Ferrer as idéias-força para seu discurso. Ao jugo da escravidão a arma que se poderia contrapor era a educação da solidariedade/educação da revolta.

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Notas

1 Ver, por exemplo: Flávio Venâncio Luizetto. Presença do anarquismo no Brasil: um estudo dos episódios literário e educacional – 1900/1920. São Carlos, USP, 1984, tese de doutorado; Paulo Ghiraldelli Jr. Educação e movimento operário. São Paulo, Cortez, 1987; Regina Célia Mazoni Jomini. Uma educação para a solidariedade. Campinas, Pontes, 1990.

2 Voz do Graphico e O Combate estão apresentados em versão integral em Adelaide Gonçalves e Jorge E. Silva. A imprensa libertária no Ceará, 1908-1922. São Paulo, Imaginário, 2000.

3 Pedro Augusto Motta, trabalhador gráfico, foi um dos nomes de maior destaque na militância libertária no Ceará. Participou da fundação da União Geral dos Trabalhadores, em 1920. Foi redator do Voz do Graphico e d’O Combate. Em São Paulo, em inícios dos anos 1920, é um dos redatores de um dos mais importantes periódicos anarquistas do Brasil, A Plebe. Em 1924, foi deportado para a colônia penal da Clevelândia (Oiapoque), juntamente com outros “perigosos anarquistas”, onde faleceu. Mais informações sobre Motta ver: Adelaide Gonçalves e Jorge E. Silva. A imprensa libertária do Ceará (1908-1922). São Paulo, Imaginário, 2000.

4 Voz do Graphico, ano I, nº 1, 25/12/1920. Fortaleza.

5 Idem.

6 Ibidem.

7 Voz do Graphico, ano I, nº 7, 12/03/1921. Fortaleza.

8 Voz do Graphico, ano I, nº 14, 26/11/1921. Fortaleza.

9 Voz do Graphico, ano I, nº 1, op. cit. ..

10 Sílvia Regina Ferraz Petersen. “Cruzando fronteiras: as pesquisas regionais e a história operária brasileira” in Ângela M. C. Araújo (org.). Trabalho, cultura e cidadania, op. cit., p. 90.

11 A Voz do Trabalhador, ano VI, nº 23, 15/01/1913. Rio de Janeiro.

12 Voz do Graphico, ano I, nº 14, 26/11/1921. Fortaleza.

13 Voz do Graphico, ano I, nº 3, 30/01/1921. Fortaleza.

14 Voz do Graphico, ano I, nº 12, 29/10/1921. Fortaleza.

15 Panfleto distribuído pela Associação Graphica do Ceará, transcrito do jornal A Liberdade, ano I, 1ª quinzena de set/1918. Rio de Janeiro.

16 A Voz do Graphico, ano I, nº 7, 12/03/1921. Fortaleza.

17 Idem.

18 A Voz do Graphico, ano I, nº 4, 05/02/1921. Fortaleza.

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Libertários: educação de solidariedade e educação de revolta

19 Idem.

20 Dora Barrancos. “As ‘leituras comentadas’: um dispositivo para a formação da consciência contestatória entre 1914-1930" in Cadernos AEL – Anarquismo e anarquistas, arquivo Edgard Leuenroth/IFCH, nº 8 e 9. Campinas, UNICAMP, 1998, pp. 151-161.

21 Émile Pouget (1860-1931). Anarquista e sindicalista francês, fundador da CGT e um dos formuladores do sindicalismo revolucionário que influenciou os sindicatos anarco-sindicalistas. Émile Costa (1877-1952). Intelectual, pedagogo e militante libertário português, autor de várias traduções de textos anarquistas e sindicalistas.

22 O grupo Clarté brasileiro pretendeu ser uma seção brasileira da Liga Internacional para o Triunfo da Causa Internacional, formada em Paris por intelectuais, simpatizantes da Revolução Russa e editores da revista Clarté. O grupo brasileiro, formado em 1921, por Nicanor do Nascimento e Maurício de Lacerda, reuniu intelectuais e alguns líderes operários simpatizantes do comunismo, socialistas, ex-anarquistas, mas sem uma grande definição ideológica. Para o estudo da formação do grupo Clarté no Brasil, ver Paulo Sérgio Pinheiro & Michael Hall. “O Grupo Clarté no Brasil: da revolução nos espíritos ao Ministério do Trabalho” in Antônio Arnoni Prado (org.). Libertários no Brasil. memória, lutas, cultura. São Paulo, Brasiliense, 1986, pp. 251-287.

23 Martyn Lyons. “Os Novos leitores do século XIX: mulheres, crianças e operários”. in Guglielmo Cavallo & Roger Chartier. História da leitura no mundo ocidental II. São Paulo, Ática, 1999, p. 187.

24 A Voz do Graphico, ano I, nº 11, 16/10/1921. Fortaleza.

25 Edilene Teresinha Toledo. “Em torno do jornal ‘Amigo do Povo’: os grupos de afinidade e a propaganda anarquista em São Paulo nos primeiros anos deste século” in Cadernos AEL – Anarquismo e anarquistas, arquivo Edgard Leuenroth/IFCH, nº 8 e 9. Campinas, Unicamp, 1998, pp. 89-113.

26 Jean Maitron. Le mouvement anarchiste en France. Paris, FM Fondation, 1983, p.

22. 27 Sobre as idéias pedagógicas dos pensadores libertários europeus, informando o projeto educacional anarquista, sua difusão e práticas no Brasil, desde o final do século XIX, consultar, entre outros, Leila Floresta de Oliveira. “A Educação libertária: defesa de um ensino racionalista” in História e Perspectivas,

v. XVI-XVII, jan.-dez. Uberlândia, UFU, 1997, pp.103-119; Leila Floresta de Oliveira. “Educação libertária: reflexões teórico-pedagógicas de Bakunin” in Cadernos de História, nº 7. Uberlândia, UFU, 1998, pp. 91-105; Sílvio Gallo. Pedagogia do risco. São Paulo, Papirus, 1995; e Wagner Gonçalves Rossi. Pedagogia do trabalho. Raízes da educação socialista. São Paulo, Moraes, 1981. 28 Grande parte dessas experiências resultaram da formulação teórica de Proudhom, Bakunin, Kropotkin, Malatesta e Reclus e da ação de militantes

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libertários, em sua crítica às instituições hierarquizadas e autoritárias. As experiências mais destacadas são inspiradas por Paul Robin, Sebastién Faure, Leon Tolstoi e Francisco Ferrer. O pensamento libertário teve influência nas reflexões de pensadores e educadores contemporâneos, como Paul Goodman, Herbert Read, Illitch e Neill. Para maiores informações, ver Jorge E. Silva. Dicionário da anarquia. Idéias e personagens do movimento libertário (versão preliminar). Florianópolis, Edição do autor, 1999.

29 Josué Pereira da Silva. Tempo e trabalho em São Paulo (1906-1932). São Paulo, Annablume/FAPESP, 1996, p. 90.

30 Para um levantamento, em âmbito nacional, da propagação do anarquismo através desses múltiplos suportes, ver: Edgar Rodrigues. O anarquismo na escola, no teatro e na poesia. Rio de Janeiro, Achiamé, 1992.

31 A escola Humanidade Nova é instalada em dezembro de 1911, por Moacyr Caminha, Boanerges Facó, Francisco Irineu de Araújo Filho, Clóvis Vasconcelos e Valdevino Tabosa Freire. Apresenta-se como sendo voltada “à educação integral do indivíduo, baseada nos métodos experimentais da Pedagogia Moderna”. A escola Renascença era ligada à União Geral dos Trabalhadores, sob a direção de Pedro Augusto Motta. Ambas atestam a circulação em Fortaleza das idéias de Francisco Ferrer, preconizador do Ensino Racional. Outras associações dos trabalhadores mantinham, igualmente, escolas, como é o caso do Sindicatos dos Trabalhadores do Porto que em 1921 abrigava a Escola Proletária, funcionando à noite e que contava com freqüência inicial de 28 alunos.

32 A Voz do Graphico, ano I, nº 6, 06/03/1921. Fortaleza.

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Libertários: educação de solidariedade e educação de revolta

RESUMO

A educação como prática anarquista, nas primeiras décadas do século XX, no Brasil, possui características próprias que a distinguem da educação limitada à escolarização hoje oferecida, de maneira impositiva, pelo Estado. Os anarquistas brasileiros fizeram da educação um complexo que envolvia escolas, imprensa, propaganda, atos de protesto, bibliotecas populares, centros operários, além de teatro e outras manifestações artísticas: uma educação independente do Estado e de suas instituições, baseada na autogestão, autoformação e em ações livres de leis e de dogmas.

ABSTRACT

The education as anarchist practice, in the first decades of the 20th century in Brazil, has specific characteristics that distinguish it from the education that is limited by school parameters and imposed today by the state. Brazilian anarchists have transformed education in a system that involved schools, the press, propaganda, protests, popular libraries, worker’s centers, theater and other artistic expressions: an education that is conceived apart from the state and its institutions, based on self governance, on self capacity building and on actions free of laws and dogmas.

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o papel do cooperativismo no desenvolvimento da economia social em portugal

José Maria Carvalho Ferreira * Nas sociedades atuais, pelas incidências dos efeitos perversos da crise do Estado-Nação e das atividades econômicas reguladas pelo mercado, o conceito de Economia Social revela-se cada vez mais pertinente. No entanto, quer do ponto de vista científico, quer do ponto de vista pragmático, subsistem várias interpretações e experiências em relação à profundidade e extensão desse conceito que importa sobremaneira salvaguardar. Na verdade, segundo alguns autores anglo-saxônicos,

o conceito de Economia Social não é o mais apropriado para explicar o conteúdo e as formas das atividades econômicas, sociais e culturais que não são reguladas pelos mecanismos normativos do Estado nem pelo mercado. Em termos conceituais, geralmente quando nos referimos ao conjunto das ONG’s é usual denominá-las, * Professor no Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa e editor da revista Utopia. verve, 2: 88-122, 2002

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quer organizações de trabalho social, quer como organizações não-lucrativas. Nos países francófonos, e até na Europa do mediterrâneo, a utilização do conceito de Economia Social tem maior visibilidade social. Nestes países, é usual denominar de Economia Social não só as atividades econômicas das cooperativas, mas também as atividades das mutualidades, das associações privadas sem fins lucrativos e as das fundações.

Ao circunscrever a análise do cooperativismo em Portugal no âmbito de um conceito mais amplo, que é a Economia Social, não quero de modo algum participar de uma querela epistemológica e metodológica, cujos contornos e fronteiras são sempre difíceis de determinar. Assim sendo, a minha análise incidirá sobre o conteúdo e as formas do cooperativismo em Portugal, desde mea- dos do século XIX até a atualidade. Para simplificar e tornar mais claros os aspectos mais significativos dessa evolução, debruçar-me-ei sobre quatro períodos históricos distintos: 1) o que decorre da revolução liberal de 1820 a queda da monarquia em 5 de Outubro de 1910; 2) o que abrange a primeira República de 1910 a 1926; 3) o que engloba o período ditatorial de Salazar e Caetano entre 1926 e 1974; 4) o que se desenrola desde a revolução de 25 de abril de 1974 aos nossos dias.

As conexões, as causas e os efeitos entre o cooperativismo e a Economia Social decorrerão de um objeto de observação e de um objeto científico, a partir do qual prevalecerão as formas de associação operária, as formas de resistência e de luta do operariado contra o capitalismo, as características da organização do trabalho, os objetivos, as formas de participação e de decisão nas cooperativas e as relações destas com o mercado e com o Estado.

1. Da revolução liberal de 1820 a queda da monarquia em 1910 2 2002

Como parte integrante dos países da Europa ocidental, Portugal não escapou aos efeitos provocados pela primeira revolução industrial na Inglaterra e pela Revolução Francesa de 1789. Cada um destes fatores teve repercussões manifestas na emergência e desenvolvimento das sociedades modernas, eliminando progressivamente as bases econômicas, políticas, sociais e culturais das sociedades tradicionais. Se bem que os efeitos da primeira revolução industrial se tivessem manifestado tardiamente em Portugal, a revolução liberal de 1820 veio desbloquear alguns condicionamentos jurídicos e políticos que não permitiam que os setores da burguesia industrial e comercial acumulassem e investissem os seus capitais de uma forma adequada.

Portanto, numa primeira fase, a revolução liberal de 1820 e o período subseqüente ao fim da guerra civil em 1834, consubstanciaram-se na produção de legislação e numa política econômica incipiente, que permitiram destruir progressivamente os laços do feudalismo no setor agrícola, os laços corporativos das artes e ofícios que subsistiam nos setores industrial e comercial e eliminar progressivamente a hegemonia das ordens religiosas em múltiplas atividades econômicas, sociais e culturais. Como resultado desse processo, começou a formar-se um operariado fabril nos distritos de Lisboa e Porto, ainda sem grande expressão social e profissional, e também no distrito de Coimbra, mas em menor grau. Como aconteceu em outros países, assistiu-se à estruturação de relações sociais de produção capitalistas, com uma organização do trabalho rudimentar, um processo de decisão assente no poder despótico e discricionário dos patrões e dos capatazes, salários baixos, jornadas de trabalho de 12 e 14 horas diárias e inexistência de direitos laborais e sindicais.1

Face a uma realidade perpassada pela exploração e dominação de um capitalismo pouco desenvolvido e de

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um Estado incipiente, com pouca capacidade de intervenção e de expressão legislativa, executiva e jurídica nos domínios da política econômica, da saúde, da educação e da segurança social, não admira que o operariado português dos maiores centros industriais urbanos tivesse que enveredar por um tipo de ação coletiva contra a exploração e opressão de que era vítima. Nessa ação coletiva predominavam formas de luta assentes na resistência e nas reivindicações sociais tendentes a melhorar os salários e as condições de trabalho, com o intuito de minorar a pobreza e a miséria das famílias e a dignificar a sua condição socioeconômica. Nesse período histórico, a influência ideológica dos partidos políticos e dos sindicatos junto ao operariado português eram irrelevantes. O fator preponderante que esteve na origem da ação coletiva do operariado português deveu-se sobretudo ao fenômeno associativo. Na sua gênese estiveram a abnegação e a militância de operários mais esclarecidos e a filantropia de alguns intelectuais. Segundo Goodolphim2, a primeira associação genuinamente operária nasceu em 1838, com a criação da Sociedade dos Artistas Lisbonenses. Este autor, embora considere que o movimento associativista do operariado em Portugal só tivesse algum significado a partir de 1850, admitia, no entanto, segundo dados estatísticos por ele compilados, que na década de 40 existiam já cerca de 260 associações operárias, congregando cerca de 40.000 membros.

Este movimento associativo operário circunscreviase a iniciativas centradas num associativismo mutualista difuso, em relação ao qual predominavam as associações de ensino popular, as associações de socorro mútuo, relacionadas com a saúde, acidentes de trabalho, auxílio aos desempregados e pagamentos de funerais, os montepios voltados para assistência à velhice e à pobreza, as caixas econômicas e as caixas de

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crédito, voltados a pensões de reforma, seguros e empréstimos. As cooperativas de consumo e as cooperativas de produção incidiam a sua ação nas atividades de compra, venda e produção de mercadorias, que eram relevantes para a sobrevivência do operariado de então.

Nesse período histórico, o movimento associativo do operariado português era essencialmente mutualista. Várias razões estão na origem dessa evolução. Em primeiro lugar, a revolução industrial em Portugal não tinha desenvolvido um sistema fabril baseado na manufatura e na organização racional do trabalho e a maioria da população camponesa ainda estava subordinada ao jugo da dominação feudal e do poder da Igreja. Em segundo lugar, o movimento associativo mutualista era o que mais se aproximava de uma cultura e costumes de organização e solidariedade que tinha sido legada pelas corporações e pelas ordens religiosas. Por outro lado, ele era a única forma de resistir e de, simultaneamente, construir uma alternativa credível face ao desemprego, à miséria e à pobreza do operariado que trabalhava extenuadamente nas fábricas e vivia pauperrimamente nos grandes centros urbanos. Para combater estas perversões, o mercado e o Estado ainda não estavam suficientemente estruturados para intervirem com a proficiência devida nestes domínios. Nestas circunstâncias, ainda que recorrendo à experiência e ao patrocínio das ordens religiosas, à ação solidária e filantrópica de militantes e intelectuais que se sentiam indignados pela situação de indigência a que tinha chegado o operariado em Portugal, as experiências associativas de caráter mutualista revelaram-se muito importantes na estruturação de um movimento social importante. Para lutar contra as arbitrariedades de um patronato despótico e um Estado atávico, para reivindicar os seus direitos e resistir contra a exploração desenfreada de que eram vítimas, ao operariado português, de então, só

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restava assegurar as condições de existência mínimas de trabalhadores assalariados e garantir as condições de sobrevivência para o futuro dos seus filhos e dos demais membros da família.

Entretanto, a partir de 1850, o movimento associativo operário é objeto de algumas mudanças em relação à sua orientação ideológica. Como ocorreu na França, Espanha, Inglaterra, Itália e Alemanha, também em Portugal as idéias de Saint-Simon, Fourier, Proudhon e de outros socialistas foram assimiladas e difundidas. Como o grau de alfabetização do operariado era muito baixo, não admira que essas idéias e experiências associativas afins fossem previamente elaboradas e publicizadas por alguns intelectuais: Alexandre Herculano, Sousa Brandão, Andrade Corvo, José Frederico Laranjo, Costa Goodolphim, Antero de Quental, José Fontana, etc…3 A ação destes homens traduziu-se na divulgação do associativismo mutualista junto ao meio operário, e já com alguma expressão teórica e prática na sua articulação com a especificidade do cooperativismo. Entre as várias realizações que estiveram na origem do desenvolvimento associativista em Portugal, destaque-se o início da publicação do jornal Eco dos Operários em 1850, a criação do Centro Promotor do Melhoramento das Classes Laboriosas em 1852, e a Associação dos Trabalhadores da Região Portuguesa em 1873. Desde esta data, embora pesem as divisões e as diferenças ideológicas entre as opções mais reformistas e revolucionárias, o sentido e a orientação destas estruturas associativas tinham como objetivos principais a emancipação social do operariado e a realização de uma sociedade socialista4

O Estado e o mercado, se bem que continuassem a persistir para alguns dos militantes do associativismo mutualista e do cooperativismo, não eram contudo considerados como estruturas fundamentais para desen

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volver esse processo histórico. Por outro lado, alguns autores (Antero de Quental, José Fontana), consideravam que os antagonismos de classe e os interesses do operariado se sobrepunham a qualquer projeto de conciliação entre o capital e o trabalho. Outros (Alexandre Herculano, Sousa Brandão, Costa Goodolphim, José Frederico Laranjo) viam no cooperativismo o método mais racional da organização social da economia que iria estabelecer a paz entre a classe trabalhadora e o patronato e conciliar de vez a luta entre entre o capital e o trabalho.

Não obstante a existência destas diferenças sobre os princípios e as práticas que deveriam consubstanciar a emergência histórica do cooperativismo em Portugal, no período do associativismo mutualista foram criadas 12 associações entre 1834-1839; 21 entre 1841-1849; 70 entre 1850-1859; 88 entre 1860-1870; e 107 entre 18701880.5

Com a criação da Associação Internacional dos Trabalhadores em 1864 e a ocorrência da Comuna de Paris em 1871, o sentido da ação coletiva do operariado português radicaliza-se. Como resultado da deterioração da situação do trabalho assalariado, os movimentos sociais passaram a ser liderados pelas opções mais revolucionárias do proletariado dos países da Europa ocidental e dos EUA. Deste modo, a partir dos finais do século XIX assistiu-se à formação e desenvolvimento de partidos socialistas e de sindicatos de cariz revolucionário. Em confronto com esta postura ideológica surgiram também as opções de caráter mais reformista, embora estas não tivessem ainda adquirido a visibilidade social que passaram a deter mais tarde.

A partir do momento em que o movimento social do operariado passa a ser orientado no sentido da realização da sociedade socialista, as tréguas na conflitualidade e a conciliação entre os interesses do capital e do traba

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lho revelam-se progressivamente irredutíveis. Desde então, parte importante das reivindicações e da propaganda revolucionária dos partidos e dos sindicatos é baseada no pressuposto da extinção imediata da exploração e da opressão do capitalismo sobre as massas trabalhadoras. Neste período histórico, em Portugal, as atividades de militância revolucionária dos sindicatos que integravam o movimento associativo do operariado português tornam-se progressivamente mais relevantes do que as ações militantes desenvolvidas pelo Partido Socialista Português, criado em 1875. Este partido, apesar de nos primeiros anos da sua criação manter uma relação privilegiada com o associativismo mutualista e o cooperativismo, a partir da década de 80 do século XIX dividido pelas lutas internas, passa quase exclusivamente a lutar pelo poder político, fazendo com que as suas forças militantes se concentrem no processo eleitoral tendente a derrubar a monarquia que ainda perdurava em Portugal.

O aparecimento dos sindicatos em Portugal, na maioria dos casos, foi a expressão da luta das Associações Operárias que tinham sido criadas desde meados do século XIX.6 Vários fatores contribuem para sua formação. Em primeiro lugar, a força estruturante da identidade coletiva conseguida pela congregação de interesses contra as condições de trabalho, os salários baixos e as outras consequências negativas, geradas pela perversidade do trabalho assalariado. Em segundo lugar, o sentido e a orientação política e ideológica construída em volta da realização de uma sociedade socialista como modelo de emancipação social. Em terceiro lugar, os ensinamentos, a aprendizagem e a cultura cívica resultantes das experiências do associativismo mutualista, tendo presente os pressupostos que este desenvolveu no campo da solidariedade e da auto-organização do operariado português.

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Nestas condições, não admira que a propaganda e ação militante do operariado em Portugal fosse cada vez mais orientada por opções de índole revolucionária. O socialismo, o anarquismo e o sindicalismo revolucionário tornaram-se, por tais motivos, as forças mais representativas do movimento social das massas trabalhadoras. Como consequência, desde então o estímulo e a motivação para criar e dinamizar associações e cooperativas foi, em certo sentido, reduzido. No essencial, os objetivos da sua luta passaram a ser a extinção do capitalismo e do Estado. Embora a pertinência histórica da luta pelo associativismno mutualista e o cooperativismo se mantivessem intactos, na conjuntura da época, era muito mais importante lutar pela revolução socialista do que por reivindicações pontuais de sobrevivência e melhorias das condições socioeconômicas, daí que todo

o dispêndio de energias militantes do operariado mais consciente fosse focalizado na ação sindical, na greve, na edição de jornais, revistas, livros, na criação de es- colas, teatros, bibliotecas, associações recreativas e culturais, na realização de conferências, palestras e outras iniciativas de caráter revolucionário.7 Para os mentores deste processo histórico, todos estes meios de luta deveriam ser radicais, porque só eles viabilizariam a emancipação social do operariado. 2. A primeira república (1910-1926) Como tinha ocorrido noutros países, os resultados econômicos, sociais, culturais e políticos da governança da monarquia constitucional em Portugal foram extremamente negativos para uma parte substancial da sua população, nomeadamente para o campesinato pobre, o operariado e os trabalhadores dos serviços. Os efeitos práticos da revolução industrial ainda eram pouco significativos, quer ao nível das infra-estruturas, do apa

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relho administrativo do Estado, quer ao nível do desenvolvimento das forças produtivas, da ciência e da técnica. Por outro lado, as colônias portuguesas — Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor, Goa, Damão e Diu — funcionavam mais como válvula de escape de uma burocracia estatal e uma burguesia patrimonial e rentista, do que como fatores de desenvolvimento do capitalismo em Portugal. Neste contexto, a dinâmica do capitalismo não podia ser estruturada pelos mecanismos de uma racionalidade instrumental, no qual o papel da ciência, da tecnologia, da organização científica do trabalho e a inovação empresarial tinham um papel crucial. O desenvolvimento capitalista dos setores industrial, comercial e agrícola viam-se, desse modo, condicionados.

Na origem desta realidade estava a inexistência de uma burguesia com capacidade de inovação e intervenção empresarial e um Estado-Nação pouco interventivo e idôneo nos domínios legislativo, executivo e jurídico. Como consequência, a pobreza, a miséria e o desemprego alastravam-se nos campos, fábricas e oficinas, provocando uma situação socio-econômica paupérrima no seio das massas trabalhadoras. Nos finais do século XIX e princípios do século XX a emigração para o Brasil8 ainda funcionou como uma tentativa de superar essa situação, todavia, foi manifestamente insuficiente para contrariar a realidade negativa que o campesinato e o operariado viviam.

Como alternativa, poder-se-ia pensar que o operariado e o campesinato pobre iriam integrar o movimento associativista mutualista e, particularmente, criar novas cooperativas de produção e de consumo, de modo a garantirem a sua sobrevivência. Mas, o cooperativismo em Portugal não evoluiu nesse sentido. Pelo contrário, durante a primeira república denota-se um decréscimo

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da intervenção do movimento operário no seio das cooperativas.

No período da primeira república, foram vários os fatores que estiveram na origem do decréscimo da visibilidade social do cooperativismo em Portugal.

Um primeiro fator reporta-se à frustração do operariado face as políticas dos governos democráticos e republicanos que governaram Portugal depois da queda da monarquia em 1910. Ainda que se tivessem realizado algumas mudanças nos domínios legislativo e jurídico, em termos do executivo, as políticas com incidência na economia, na saúde, na educação, na segurança social, etc., não conseguiam inverter as condições sócio- econômicas paupérrimas da classe trabalhadora. Todavia, esta classe trabalhadora tinha ajudado de forma decisiva a derrubar a monarquia em Portugal. Grande parte das suas energias e motivações revolucionárias tinham-se congregado para implantar o regime republicano em Portugal. Entretanto, como as mudanças prometidas pelos diferentes governos republicanos e democratas não surgiam e as reivindicações do movimento sindical não eram satisfeitas, não admira que desde 1911/1912 se assistisse a um grande desenvolvimento da prática da greve em Portugal.9 A ação individual e coletiva dos trabalhadores assalariados dos setores industrial, agrícola e do comércio, a partir de então passou a ser determinado por uma luta reivindicativa e revolucionária, sem tréguas, contra o capital e contra as políticas dos diferentes governos.

Um segundo fator decorre da radicalização das práticas e dos princípios do sindicalismo revolucionário e do anarco-sindicalismo que emergiu no período da primeira república em Portugal. Quando se cria a União Operária Nacional em 1914, a maioria dos sindicatos portugueses era liderada por militantes sindicalistas com uma forte adesão ao sindicalismo revolucionário e

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ao anarquismo.10 Estas correntes sindicais, embora divergissem em alguns pontos programáticos e orgânicos, primavam, no entanto, por uma ação militante convergente e identitária. Ambas lutavam pela abstenção eleitoral e política. Ambas achavam que a emancipação das massas trabalhadoras era de sua exclusiva responsabilidade. E ambas achavam que existia uma premente necessidade histórica de abolir o Estado e o capitalismo, de modo a extinguir-se a exploração e a opressão do homem pelo homem, de uma forma definitiva. Esta postura da ação sindical revolucionária levou a que a grande maioria do movimento social operário se mostrasse contrária a integrar as ações reformistas sindicais e não a pactuar com as múltiplas ideologias partidárias que aspiravam, através do voto, ascender ao exercício do poder político.

Um terceiro fator radica nos efeitos provocados pela primeira guerra mundial de 1914-1918 e a revolução russa de 1917. De fato, Portugal, embora não fosse uma potência econômica e militar, no contexto dos aliados, teve, no entanto, uma função importante pelo grande número de soldados que disponibilizou para a frente de batalha. Constrangidos a lutar por uma causa que lhes escapava, serviram de “bucha para canhão” de desígnios e interesses imperialistas que resultaram no enriquecimento de alguns países e na ruína de outros. Participando nesta guerra, Portugal conseguiu manter o seu império colonial intacto, mas não evitou que se degradassem as condições sócio-econômicas do operariado. Entretanto, com a ocorrência da revolução russa, o espectro ideológico dos partidos e sindicatos portugueses sofre uma mudança. Uma parte do operariado português vê no modelo soviético dos bolcheviques a grande hipótese histórica de realização da sociedade socialista pela qual há muito aspirava. Pela primeira vez na história, o socialismo era viabilizado na prática e não

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pertencia mais ao universo da utopia. Não admira assim que o Partido Comunista Português fosse criado em 1921 e alguns sindicatos passassem a servir de correias de transmissão desse partido com vista à instauração de uma sociedade socialista semelhante àquela que tinha sido implantada na Rússia. Por outro lado, a influência do anarco-sindicalismo em Portugal, que tinha atingido o seu apogeu em 1919 com a criação da Confederação Geral do Trabalho e a edição do jornal diário A Batalha, começa a enfraquecer, a partir desse momento, ao ver alguns dos seus militantes integrarem

o Partido Comunista Português e os sindicatos articulados ideológica e estrategicamente com este partido. Partindo da análise dos fatores que considerei como pertinentes para explicar a perda de influência do associativismo mutualista e do cooperativismo em Portugal, poder-se-ia pensar que existe muita pouca correlação entre ambos. Não é essa a minha opinião. Para fundamentar a minha análise basta recorrer à incapacidade manifesta do capitalismo e do Estado em Portugal para desenvolverem os seus pressupostos reformistas que permitiam a integração do operariado na sua lógica normativa. Por outro lado, terá de se perceber até que ponto a situação de crise endêmica da sociedade portuguesa e o imaginário coletivo decorrente do impacto da revolução russa contribuíram para alimentar as esperanças da realização de uma sociedade socialista em Portugal.

Quer uma quer outra realidade, condicionaram objetiva e subjetivamente a ação das massas trabalhadoras portuguesas no sentido da criação e desenvolvimento do cooperativismo e do associativismo mutualista em Portugal. Em primeiro lugar, a incapacidade do patronato português em desenvolver os pressupostos da organização científica do trabalho e otimizar racionalmente a ciência, a tecnologia e a inovação empresarial não per

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mitiu que fosse gerado o desenvolvimento das forças produtivas. Através destas poder-se-ia aumentar a produção de riqueza social e melhorar a distribuição de rendimentos, de modo a apaziguar o conflito entre o trabalho e o capital e, assim, satisfazer as reivindicações pelas quais o operariado português há muito vinha lutando. A impossibilidade de conciliar os interesses entre o capital e o trabalho e as energias que este desenvolvia para lutar pelos seus direitos e interesses, no quadro do mercado e do Estado, condicionava enormemente a ação do movimento social operário no senti- do dos princípios e das práticas que o cooperativismo exigia. Em segundo lugar, ainda que o anarcosindicalismo e o sindicalismo revolucionário fossem opções revolucionárias que se baseavam num modelo de sociedade identificado com o projeto emancipalista dos trabalhadores assalariados, não é menos verdade que para ambos o papel das cooperativas de produção e de consumo, assim como o associativismo mutualista, eram extremamente relevantes para a emancipação social do operariado. Não admira assim que nos seus objetivos principais e modalidades de ação privilegiassem todo o cooperativismo e o associativismo mutualista que servia como forma de auto-organização e de auto-governo do operariado, de forma que este pudesse subtrair- se à ação negativa do mercado e do Estado.

Posição contrária tinha o Partido Comunista Português e os sindicatos que faziam parte da sua estratégia de conquista do poder. Para estes, o objetivo crucial da ação do operariado consistia em derrubar o capitalismo e instaurar a ditadura do proletariado, como forma de nacionalização dos meios de produção e estatização da economia. Neste âmbito, não havia lugar para qualquer veleidade no sentido das opções de atividade econômica, política, social e cultural que implicasse um processo de decisão e de participação estruturado pela auto

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organização e interesses dos trabalhadores. Também neste caso, quando quase toda a militância partidária e sindical se orienta para a realização de uma sociedade socialista de tipo soviético, não admira que faltassem as energias e a motivação para implementar o cooperativismo em Portugal nesse período histórico.

3. O fascismo em Portugal (1926-1974) A experiência histórica da primeira república portuguesa não foi de modo algum positiva. Para esse fato muito contribuiu a fragilidade do desenvolvimento capitalista em Portugal e a manifesta incapacidade política dos diferentes governos que presidiram os destinos do país durante 16 anos. O caos econômico e financeiro, assim como o constante conflito e agitação no mundo laboral e na sociedade civil punham em pânico a grande, pequena e média burguesias, como inclusive a burocracia estatal e os militares. A classe trabalhadora nas fábricas, nos transportes, nos serviços e na agricultura sofria as vicissitudes da crise, com salários baixos, com desemprego, pobreza e miséria.

Perante este contexto, foi extremamente fácil realizar o golpe militar de 28 de maio de 1926. Começando como Ministro das Finanças do governo instituído, António de Oliveira Salazar revelou-se, desde logo, o mentor e o estrategista de uma ditadura de tipo “fascista” que perdurou durante 48 anos em Portugal. No início da instauração da ditadura ainda houve algumas tentativas de sublevação que procuraram inviabilizar os seus propósitos. Toda e qualquer contestação ou greve passa desde então a ser objeto de repressão, ao ponto de quase sempre originar o desemprego ou a prisão. Os sindicatos foram progressivamente fechados, os partidos, a imprensa, edição de livros, outros tipos de manifestações culturais que contrariavam os desígnios

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estratégicos da implementação da ditadura eram pura e simplesmente silenciados.

Todos esses tipos de contestação se revelaram infrutíferos. O medo e a repressão instalam-se definitivamente, com a promulgação da Constituição de 1933 e o pa- pel repressivo da Polícia Política na sociedade portuguesa. Esta, que teve várias designações, foi historicamente mais conhecida como PIDE (Polícia de Intervenção e Defesa do Estado). A fascização dos sindicatos com a criação dos Sindicatos Nacionais em estreita consonância e na dependência do Ministério das Corporações e, mais tarde, a Lei do Condicionamento Industrial criaram as condições necessárias e suficientes para que este tipo de ditadura “fascista” em Portugal pudesse perdurar.

Perante este contexto de atomização da sociedade civil e de cerceamento da liberdade de associação sindical e partidária, a ação individual e coletiva do operariado português foi sendo progressivamente condicionada. Sem exagero, pode-se afirmar que a greve geral de 18 de janeiro de 193411 foi o último fôlego de uma hipotética ação coletiva revolucionária do operariado português contra a ditadura de António de Oliveira Salazar.

Tendo presente as dificuldades que o associativismo mutualista e o cooperativismo já tinham tido durante a primeira república, com a instauração da ditadura de tipo “fascista” em Portugal, a margem de manobra do movimento social operário e de outros grupos sociais para prosseguir os seus princípios e práticas é drasticamente reduzida.

Para o regime ditatorial, as relações entre o capital e

o trabalho deveriam ser pacificadas e controladas pelo Estado corporativo. A Constituição de 1933, e mais particularmente o Decreto-Lei nº 22513, de 12 de maio de 1933, são bem explícitas nos seus propósitos econômi 2 2002

cos, sociais e políticos. No intuito de responder às exigências dos comerciantes retalhistas, as cooperativas de consumo passaram a ser sujeitas a um conjunto de restrições nas suas atividades, nomeadamente com a introdução da contribuição industrial nas suas transações comerciais no mercado, só ficando excluídas des- sa contribuição aquelas que eram realizadas entre os seus membros. As atividades das cooperativas de produção no setor industrial foram impedidas de prosseguir a sua ação, porque toda a legislação corporativa não permitia qualquer veleidade de autonomia do operariado face ao Estado e ao capital e porque poderiam, na ausência de liberdade de associação sindical e partidária, funcionar como um meio alternativo de iniciativas contrárias à estabilidade normativa do salazarismo.

Por razões específicas concernentes ao sentido corporativo da política ruralista de Salazar, este não deixou de promover o cooperativismo agrícola, estimulando a criação de cooperativas e caixas de crédito agrícolas, em estreita dependência e articulação com a Federação dos Grêmios da Lavoura.12 No entanto, não obstante esta iniciativa ter encontrado algum eco nos pequenos proprietários agrícolas, devido aos condicionalismos impostos pela política econômica do Estado, o cooperativismo inscrito nos planos ruralistas de Salazar entrou progressivamente em crise. Após a Segunda Guerra Mundial, e sobretudo com o início da guerra colonial em 1961, o regime ditatorial de Salazar é constrangido a evoluir no sentido de uma maior abertura ao exterior, sendo portanto confrontado com as vicissitudes da concorrência e da competição da atividade empresarial e do mercado internacional. Contra esta nova realidade, de nada serviu a lei do condicionamento industrial e a política ruralista que já perdurava há várias décadas. Perante um contexto adverso, o movimento cooperativista, se bem que estivesse mergulha

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do numa relativa letargia, conseguiu sobreviver. No ano de 1955 havia cerca de 200 cooperativas de produção e de consumo e no ano de 1974 passam a existir quase 500 cooperativas.13

Ainda que não houvesse um cooperativismo em Portugal com uma visibilidade social semelhante a alguns países europeus, deve-se, no entanto, destacar o papel de alguns defensores do cooperativismo que se opunham à ditadura de Salazar, como foram os casos de António Sérgio e Henrique de Barros. António Sérgio foi, sem dúvida alguma, um expoente na defesa de um cooperativismo integral, que em última análise correspondia, na sua essência, a uma sociedade socialista libertária, equidistante do socialismo de Estado e do capitalismo de mercado.14 No meio de um contexto adverso, António Sérgio lutou sempre pela defesa de um ideal cooperativista que tinha as suas raízes nas obras de Charles Gide, Ernest Poisson e Bernard Lavergne. Como última obra sua em prol do desenvolvimento do cooperativismo em Portugal, sublinha-se a publicação do Boletim Cooperativista que teve o seu início em 1951 e perdurou até finais da década de 50 do século XX.

Não obstante a ditadura de tipo “fascista” nos ajudar a compreender as razões que estiveram na origem da fragilidade do movimento cooperativo em Portugal, que aliás já tinha começado no período da primeira república, subsistem outras causas que também tiveram influência nesse processo e que não podemos prescindir de as analisar: por um lado, a emergência histórica do taylorismo e do fordismo e, por outro, o Estado providência.

Como foi fato notório nos países capitalistas mais desenvolvidos, embora tivesse surgido tardiamente em Portugal, com a introdução dos princípios e das práticas da organização científica do trabalho através do

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taylorismo e do fordismo, nomeadamente a partir da década de 60 do século XX, os mecanismos restritivos da concorrência e de competitividade no mercado de trabalho e nas empresas começaram a ser progressivamente eliminados. O conflito interno e externo ao local de trabalho aumenta, ao mesmo tempo em que as hipóteses de mobilidade social e de contestação da ditadura de Salazar passam a orientar o sentido das reivindicações e das greves do movimento social do operariado português. Em articulação estreita com essa realidade e perante as contingências da abertura ao mercado internacional, a emigração portuguesa para a Europa ocidental cresce notoriamente.

A partir do momento em que o taylorismo e o fordismo se implantam com a proficiência devida, a produtividade do trabalho e a criação de riqueza crescem de modo gigantesco. O modelo de produção e de consumo em massa de mercadorias torna-se, por tais motivos, cada vez mais representativo na vida quotidiana das massas trabalhadoras em Portugal. Por outro lado, na medida em que o mercado não conseguia regular eficientemente a repartição de rendimentos e a justiça social, o Estado, em Portugal, viu-se obrigado a preencher essas funções. Desse modo, a política econômica, assim como todas as políticas relacionadas com a saúde, a segurança social, a educação, a assistência social, não se coadunavam mais com os ditames de um Estado corporativo em crise.

A partir do final da década de 60 do século XX, com a substituição do governo de Salazar pelo de Marcelo Caetano, as reformas do Estado foram realizadas no sentido da sua aproximação ao modelo de Estado providência que subsistia na Europa ocidental. É evidente que não foi um Estado providência com opções legislativas, executivas e jurídicas, cujas raízes radicavam num tipo de liberdade democrática burguesa, mas,

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mesmo assim, o Estado português passou a intervir nos domínios da saúde, da segurança social, da educação e da política econômica.

Conjugando a influência do taylorismo e do fordismo com algumas das funções do Estado providência em Portugal, verifica-se que esses dois fatores vão, em certa medida, reduzir as necessidades históricas de desenvolver o cooperativismo em Portugal no período da ditadura de tipo “fascista” que perdurou de 1926 e 1974.

Como tínhamos verificado no período da primeira república, o associativismo de tipo mutualista decresceu. Na ditadura ele foi simplesmente silenciado e quase extinto. O cooperativismo, no entanto, perdurou. Por essa razão, e não obstante todas as condicionantes que já foram descritas no período da ditadura, nos finais da década de 60, as iniciativas culturais tiveram um relativo desenvolvimento no movimento cooperativo português. Este tipo de cooperativismo abalou, em certa medida, os alicerces da abertura reformista que o governo de Marcelo Caetano tinha introduzido. Na verdade, em- bora pesem as restrições existentes, o sistema corporativo permitia que ainda se realizassem certas atividades nas cooperativas que não se cingiam exclusivamente a atividades de produção e de consumo de bens e serviços. Tal fato permitiu que alguns estudantes, intelectuais e outros grupos sociais desenvolvessem iniciativas no âmbito do cooperativismo, criando cooperativas cujas atividades se reportavam aos domínios político e social. Pela sua inserção no espaço editorial, político e cultural, conseguem dinamizar um processo de contestação à ditadura de tipo “fascista”. Apercebendo- se do perigo que essas atividades geravam, o governo de Marcelo Caetano publica o Decreto-Lei 520/ 71, em 24 de Novembro de 1971, com a finalidade de extinguir todas as atividades culturais e políticas desenvolvidas nesse tipo de cooperativas. Estas deveri

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am, segundo esse decreto-lei, cingir-se exclusivamente a atividades de produção e de consumo de cariz econômico. Para as atividades de caráter cívico e social foram criadas outras instituições para o efeito, passando a denominar-se simplesmente associações com caráter cívico e cultural.

4. Da revolução de 25 de abril de 1974 a atualidade Quando se deu o golpe militar de 25 de abril de 1974, desde então até a ocorrência de um outro golpe militar em 25 de novembro de 1975, a sociedade portuguesa foi atravessada por uma série de mudanças econômicas, sociais, políticas e culturais de extrema importância. 15 O seu impacto teve consequências em todos os domínios, mas foram também de capital importância para compreender a evolução do cooperativismo em Portugal.

Numa primeira fase, assistiu-se à queda dos símbolos e das práticas políticas que constituíam a ideologia da ditadura de tipo “fascista”. Como corolário lógico, o MFA (Movimento das Forças Armadas) que detinha o poder político e militar, limitou-se a devolver as liberdades cívicas, políticas e sindicais do modelo democrata das sociedades capitalistas à sociedade civil e, por outro lado, a determinar que o poder legislativo, executivo e jurídico adstrito às funções do governo e do Estado evoluísse no mesmo sentido.

A implementação das liberdades de associação política e sindical, como era de prever, depois de estarem cerceadas durante 48 anos, deram origem a uma erupção de reivindicações que se corporizou na criação e desenvolvimento de um grande movimento social espontâneo. As reivindicações fizeram-se sentir fundamentalmente no mundo do trabalho, mas também na educação, na saúde, na habitação e na cultura. Passados

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poucos dias da ocorrência do golpe militar de 25 de abril de 1974, o aumento de salários, a regularização dos horários e das condições de trabalho, a exigência de participação e decisão na organização do trabalho e, sobretudo, a ação sindical e política, incrustrados por um leque ideológico assente nos pressupostos políticos da esquerda e do esquerdismo, passaram a determinar sobremaneira a evolução da sociedade portuguesa.

Todas as energias, interesses e motivações do movimento social espontâneo começaram, rapidamente, a ser estruturados com base num dilema histórico de escolha e de participação na construção de modelos de sociedades contrastantes: comunismo de diferentes matizes, socialismo ou social-democracia. Na medida em que o modelo de sociedade da ditadura de tipo “fascista” deixou de funcionar como “válvula de escape”, todo o imaginário coletivo dos que tinham sido reprimidos e explorados estruturou-se na sua negação e na criação de uma sociedade socialista poliforme, cujo conteúdo e formas eram simbolicamente expressas num discurso e práticas assentes na liberdade, na fraternidade e na igualdade.

Numa segunda fase, que começou em 28 de setembro de 1974 e foi até 11 de março de 1975, como o poder instituído e o capitalismo português não foram capazes de responder positivamente ao surto reivindicativo grevista do movimento social da classe trabalhadora, com a entrada em funções do 3º governo provisório radicalizaram-se as transformações econômicas, sociais e políticas no sentido de um socialismo de tipo democrático. A esta altura, porque o MFA estava mais ligado à ideologia de esquerda e de extrema esquerda e porque ainda o PCP (Partido Comunista Português) pas- sou a ter uma maior importância nas estruturas do Estado e dos sindicatos, as opções de instauração de uma

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sociedade socialista em Portugal começaram a ter alguma pertinência.

Entretanto, dá-se uma tentativa de um novo golpe militar em 11 de março de 1975, o que originou não somente a formação do 4º governo provisório, mas sobretudo possibilitou o início das hipóteses da “transição para o socialismo” segundo os princípios e as práticas já seguidas em inúmeros países, pelo socialismo de tipo soviético. A nacionalização e a estatização dos setores fundamentais da economia, dos meios de comunicação, dos transportes e da saúde passaram a estar na ordem do dia. Esta força estruturante não foi inclusive invertida pelas eleições da Assembléia Constituinte, realizadas em 25 de abril de 1975. Não obstante o PS (Partido Socialista), que conquistou o primeiro lugar, e o PPD (Partido Popular Social-Democrata) que ficou em segundo lugar, terem conseguido a maioria dos votos, o PCP e outros partidos esquerdistas continua- ram a ter uma influência preponderante junto dos 4º e 5º governos provisórios e do MFA.

A terceira fase, iniciada com a tentativa de golpe militar frustrado em 11 de março de 1975, vai até 25 de novembro de 1975 e foi o período da experiência de “transição para o socialismo”. A partir de então, o movimento social operário deixou de ter um cariz espontâneo. A força hegemônica da militância sindical e partidária dos partidos de esquerda e de extrema esquerda arregimentou todo o processo reivindicativo e de transformação revolucionária. Todo e qualquer aspecto reivindicativo e revolucionário que não se enquadrasse nos grandes objetivos da “transição para o socialismo” era pura e simplesmente marginalizado. Todavia, existiam várias concepções e práticas de “transição para o socialismo” que procuraram influenciar o poder hegemônico da força das armas que ainda continuava nas mãos do MFA. Esta situação é de tal forma

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estruturante, que mesmo os partidos de direita, como eram os casos do CDS (Centro Democrático Social) e PPD (Partido Popular Social-Democrata) fizeram os seus congressos com estratégias e programas baseados no dilema da “transição para o socialismo”.

Neste contexto, desenvolveu-se ao extremo o conflito ideológico e político. As greves e as manifestações sucediam-se em catadupa nas ruas, nas fábricas, nos campos e nos quartéis. A articulação entre o poder político e militar atingiu o seu auge no verão quente de 1975. O 5º governo provisório formado em agosto de 1975, foi extinto em setembro. Com o êxito do golpe militar de 25 de novembro, liderado pela corrente moderada do Grupo do Nove do MFA, foi encerrada a primeira tentativa histórica de instaurar a “transição para

o socialismo” em Portugal, segundo os padrões do modelo soviético da revolução russa de 1917. Como é lógico equacionar, devemos agora tentar explicitar qual foi o papel do cooperativismo no processo revolucionário em Portugal, que decorreu entre 25 de abril de 1974 e 25 de novembro de 1975.

Na primeira e segunda fase desse processo não houve efetivamente espaços de intervenção que permitissem uma orientação do movimento social espontâneo no sentido da criação e desenvolvimento do cooperativismo na sociedade portuguesa. As contingências das reivindicações econômicas, sociais, culturais e políticas eram adversas aos seus princípios e práticas, na medida em que o conflito que determinava a ação coletiva do movimento social operário estava confinado a reivindicações de caráter político e econômico que se enquadravam no quadro das relações sociais de produção e do trabalho assalariado inerentes à sociedade capitalista. Quando as reivindicações e as mudanças do movimento social das massas trabalhadoras não se enquadravam ou não eram cingidas a esses objetivos

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cruciais, a militância sindical e política encaminhava-o para uma aprendizagem de uma luta circunscrita à construção de uma sociedade socialista poliforme. Criar novas cooperativas de produção e de consumo ou cooperativas relacionadas com atividades cívicas e culturais, na altura, era um contra-senso, na medida que eram logo iniciativas consideradas como manifestações ideológicas “pequeno-burguesas”, que dividiam e sabotavam a identidade coletiva revolucionária do operariado que tinha por missão construir a sociedade socialista.

Na terceira fase do processo revolucionário que se enquadrava na “transição para o socialismo”, o cooperativismo passa a ter um papel instrumental importante face à crise econômica e política que a sociedade portuguesa atravessava. Com o medo da nacionalização e da estatização da economia, muitas empresas fecharam as suas portas e muitas multinacionais fugiram com os seus capitais para outros países. As dificuldades financeiras e econômicas e a agitação política não eram propícias ao investimento na criação de novas empresas. Por outro lado, a grande finalidade do governo e do MFA resumia-se em garantir a nacionalização dos grandes setores da economia. Assim sendo, não admira que as pequenas e médias empresas entrassem em falência, porque não tinham capacidade de concorrência para sobreviver no mercado ou porque o patronato tinha medo que as suas empresas fossem expropriadas pelo Estado.

Nestas circunstâncias, a grande maioria das pequenas e médias empresas que entrou em crise ou tinha pura e simplesmente sido abandonada pelos seus patrões, ou foi ocupada pelos trabalhadores e entrou num processo de autogestão. Na maioria dos casos, uma parte substancial das empresas entrou em autogestão como resultado lógico dos constrangimentos das necessidades de emprego e de salário dos trabalhadores que ne

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las laboravam. Claro que houve outros casos em que a consciência da autogestão tinha um sentido de emancipação social para os trabalhadores dessas empresas, todavia eles foram pouco representativos.

Enquanto que para os 4º e 5º governos provisórios, o cooperativismo das pequenas e médias empresas dos setores industrial e de comércio tinham pouca relevância para o seu programa de “transição para o socialismo”, o mesmo não se poderá afirmar relativamente ao papel estratégico das UCP’s (Unidades Coletivas de Produção) na Reforma Agrária, que teve a sua expressão máxima na província do Alentejo. Claro que na ideologia do PCP essas UCP’s eram consideradas como se fossem cooperativas agrícolas. Porém, na prática, não eram mais do que um mero estratagema de organização da estatização da economia no setor agrícola. No cômputo geral, durante este período muitas UCP’s e algumas cooperativas agrícolas que não se enquadravam na estratégia do PCP foram criadas, tendo sido legalizadas 540 no ano de 1975 e princípios de 1976.

Após o 25 de novembro de 1975, com a institucionalização e normalização do regime democrático em Portugal, os mecanismos de regulação do mercado e do controle do Estado passam a funcionar segundo a lógica dos modelos democráticos da Europa ocidental e dos EUA. O cooperativismo ligado a atividades de produção, de consumo, cultura e habitação, que já tinha tido alguma expressão em 1975, atinge o seu auge em 1978, perfazendo na época, em Portugal, cerca de 3000 cooperativas. Embora o seu número não tenha crescido, atualmente existem cerca de 3000 cooperativas em Portugal.16

Na atualidade, ao referirmos o papel do cooperativismo no desenvolvimento da Economia Social em Portugal, descurando outros tipos de organizações que também podem ser incluídos no conceito de

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Economia Social, devemos ter em conta certos aspectos que nos ajudam a compreender as suas hipóteses de expansão no futuro.

Cientes das contingências que a revolução tecnológica e a globalização têm nas atividades econômicas e na organização do trabalho, devemos ter presente a substantividade das mudanças em curso com repercussões no cooperativismo em Portugal e no resto do mundo.

A informática, a robótica, a telemática, a microelectrônica, assim como a biotecnologia e os novos materiais, pelas incidências instrumentais que assumem no quadro da racionalidade econômica do capitalismo, potenciaram enormemente a produtividade do trabalho. A codificação e a descodificação das linguagens do “saber- fazer” do operariado da segunda revolução industrial, que se articulavam com o taylorismo e fordismo, estão esvaziadas de sentido para as atuais funções e qualificações que são exigidas ao fator de produção trabalho. A energia, o conhecimento e a informação que este antes protagonizava no processo de produção de mercadorias têm sido progressivamente deslocados para os mecanismos automáticos das máquinas-ferramentas de comando numérico assistidas por computadores. Embora saibamos que subsistem grandes diferenças no desenvolvimento deste processo entre os países capitalistas desenvolvidos e os de frágil desenvolvimento, a dualização das condições do trabalho assalariado generaliza-se à escala mundial. A tendência aponta para uma enorme massa de trabalhadores assalariados que não terão chances de arranjar emprego e para uma outra parte muito menor que terá acesso a um emprego. Por outro lado, haverá uma parte de trabalhadores assalariados que possuirá grande qualificação e auferirá salários altos, enquanto, numa situação oposta, haverá uma enorme massa de trabalhadores assalariados que

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será desqualificada e terá salários baixos. Finalmente, assistir-se-á a uma terceira dualização com base na precariedade dos vínculos contratuais para a grande maioria dos trabalhadores assalariados, com trabalho em tempo parcial, com a introdução da flexibilidade e a polivalência nos locais de trabalho, enquanto que outros mais privilegiados, por estarem inseridos na estrutura hierárquica da autoridade formal das empresas e por possuírem maior qualificação, terão alguma estabilidade dos seus vínculos contratuais.

Para sobreviver neste contexto, a trajetória, as expectativas e a motivação individual e coletiva da massa dos trabalhadores assalariados centra-se na competição e na concorrência. Todos os esquematismos comportamentais que apelam para uma maior participação e decisão no quadro da organização do trabalho estão determinados pela lógica da racionalidade instrumental do capitalismo. Por tudo isso, a eficiência e a eficácia da produtividade do trabalho instituídas recentemente como paliativos das novas formas de organização do trabalho são um mero instrumento dessa racionalidade e não um fim para dignificar e promover socialmente o trabalho assalariado. Portanto, a força estruturante da competição e da concorrência induzida pelas novas tecnologias e a organização do trabalho não estimulam uma ação individual e coletiva que se identifica com os princípios e as práticas do cooperativismo: identidade coletiva, auto-organização, cooperação e solidariedade entre trabalhadores que integram uma dada organização.

A descaracterização dos princípios e das práticas que atravessa a realidade do cooperativismo em Portugal é explicável, em grande medida, pelas contingências negativas da ação do Estado e do mercado. A novas tecnologias e a globalização são fatores que ajudam a agravar ainda mais essa situação. No entanto, há várias

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décadas que o cooperativismo em Portugal tem servido de meio para as grandes cooperativas usufruírem de benefícios fiscais e de crédito bonificado por parte do Estado. O fato de neste tipo de cooperativas não existirem patrões nem haver a distribuição de lucros, não impede que as perversões do trabalho assalariado, da estrutura hierárquica, da autoridade formal e da divisão do trabalho nas atuais cooperativas sejam as mesmas que subsistem numa empresa capitalista qualquer. As diferenças salariais entre quadros técnicos, administração, gestores e trabalhadores assalariados indiferenciados e sem qualificações é notória. O processo de decisão e de liderança continua a ser determinado pelo topo da pirâmide hierárquica, enquanto aqueles que trabalham no processo direto de produção e distribuição de mercadorias se limitam a receber ordens e executar tarefas mecanicamente, sem qualquer poder de decisão e de participação. As Assembléias Gerais, na grande maioria das cooperativas portuguesas, são episódicas e são um mero simulacro para legitimar o seu funcionamento normativo e as decisões anterior- mente programadas pelos dirigentes das cooperativas.

Esta constatação é visível nas 100 maiores cooperativas portuguesas. Estas, no total empregam 11.842 trabalhadores assalariados. Cinqüenta e oito cooperativas estão integradas no setor agrícola (com especial incidência na distribuição de leite); 23 dedicam-se às atividades de comercialização de mercadorias (a grande maioria está relacionada com o comércio atacadista de produtos alimentares, bebidas, tabacos e produtos farmacêuticos); 7 integram a área do ensino (fundamentalmente universidades privadas); 5 estão no setor do consumo (comércio varejista em supermercados e hipermercados); 4 na área da habitação (promoção imobiliária); e finalmente 1 cooperativa na área da cultura,

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1 na área da produção operária e outra na área dos serviços. 17

Nestas condições, ainda que o cooperativismo em Portugal possa progredir no sentido do seu crescimento — devido à crise provocada pela globalização em relação às incapacidades manifestas de regulação do mercado e à crise do Estado-Nação — terá imensa dificuldade em projetar-se no contexto do desenvolvimento da Economia Social em Portugal.

5. Conclusão Como ocorreu noutros países, o nascimento e o desenvolvimento do cooperativismo em Portugal foi o resultado genuíno do movimento associativo operário que, desde meados do século XIX, procurou resistir contra as vicissitudes negativas criadas pelo trabalho assalariado e a organização do trabalho capitalista.

Perante um contexto histórico adverso personificado por um capitalismo pouco desenvolvido e um Estado pouco interventivo nos domínios legislativo, executivo e jurídico, para contrariar a situação de desemprego, miséria e pobreza em que a classe trabalhadora estava mergulhada, o movimento associativo operário português criou associações de socorro mútuo, caixas econômicas, montepios, caixas de crédito, escolas, cooperativas de produção e de consumo, como forma de poder sobreviver e criar condições históricas para a sua emancipação social.

Entretanto, a partir do final do século XIX e princípio do século XX, a influência das idéias socialistas, do sindicalismo revolucionário e do anarquismo orienta a ação individual e coletiva do operariado português no sentido da extinção do Estado e do capitalismo. A preocupação fundamental e os objetivos desse movimento social operário durante a primeira república, que per

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durou entre 1910 e 1926, circunscreveram-se ao desenvolvimento de um processo reivindicativo e revolucionário, que culminou em tentativas de insurreição social e em vários surtos grevistas. A ênfase da ação do operariado português neste tipo de ação coletiva e o impacto da revolução russa de 1917 vieram em parte desmobilizar a sua luta e reivindicações, no sentido da criação e desenvolvimento do associativismo mutualista e do cooperativismo.

Com a instauração da ditadura de tipo “fascista” em Portugal, em 28 de maio de 1926 até 25 de abril de 1974, as condicionantes inerentes à criação e desenvolvimento do cooperativismo aumentam significativamente. O Estado corporativo — com a Constituição de 1933, a criação da PIDE (Polícia de Intervenção e Defesa do Estado), a Lei do Condicionamento Industrial, etc — extingue todas as hipóteses de liberdade de associação política e sindical, e de associação relacionadas com qualquer tipo de atividade econômica. O fato da política ruralista de Salazar permitir a criação de cooperativas no setor agrícola, não obsta a que essa iniciativa fosse enquadrada nos ditames do Estado corporativo e na identidade entre o capital e o trabalho. A dependência das cooperativas agrícolas em relação ao crédito concedido pelo Estado e à Federação do Grêmio da Lavoura é bastante elucidativa.

Durante o período da ditadura de tipo “fascista” foi difícil desenvolver o cooperativismo. No entanto, e apesar da inexistência de liberdade de associação política e sindical, no final da década de 60, emergiu um movimento composto por estudantes, intelectuais e profissões liberais que se consubstanciou na criação de algumas cooperativas nos domínios social, cívico e cultural. O que se tornava difícil realizar pela via da militância política e sindical contra a ditadura, foi desse modo

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possível através do cooperativismo nos últimos anos da vigência do governo de Marcelo Caetano.

Pelas características da revolução realizada pelo golpe militar em 25 de Abril de 1974, poder-se-ia pensar que estavam criadas as condições históricas para uma grande expansão das práticas e dos princípios do cooperativismo em Portugal. Não foi isso que se pas- sou. Várias razões podem ajudar-nos a compreender essa evolução.

Em primeiro lugar, numa primeira fase da revolução, não houve efetivamente espaços de intervenção que permitissem uma orientação do movimento social espontâneo no sentido da criação e desenvolvimento do cooperativismo na sociedade portuguesa. De fato, antes de mais, para esse movimento social espontâneo, tratou-se de derrubar todos os vestígios econômicos, sociais, políticos e culturais que simbolizaram o fascismo em Portugal durante 48 anos. Por outro lado, a militância política e sindical invadiu a sociedade civil, os locais de trabalho e o aparelho de Estado. A ideologia comunista e socialista de vários matizes depressa se apoderou do imaginário coletivo das massas trabalhadoras em Portugal, ao ponto das iniciativas com incidência nos princípios e práticas do cooperativismo serem relegadas para posições secundárias.

Em segundo lugar, no período de 11 de março a 25 de novembro de 1975, ao se iniciar o processo de “transição para o socialismo”, não obstante ter havido um acréscimo significativo de criação de cooperativas no setor agrícola, as UCP’s (Unidades Coletivas de Produção) estavam submetidas à lógica de estatização da economia que o programa dos 4º e 5º governos provisórios tinham desenvolvido.

Em terceiro lugar, na estratégia do PCP, conducente ao processo de “transição para o socialismo”, o interesse prioritário resumia-se à nacionalização dos setores

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vitais da economia. Nesta assunção, as milhares de pequenas e médias empresas que entraram em falência ou foram abandonadas pelos seus patrões, obrigaram a que os trabalhadores que nelas trabalhavam entrassem em autogestão. O poder político instituído, na altura limitou-se a tolerar essa situação conjuntural, mas pouco ou nada fez para institucionalizar essa realidade no sentido da expansão do cooperativismo em Portugal.

Com o golpe militar de 25 de novembro de 1975, Portugal evolui para uma estabilidade normativa, adotando, para tal efeito, os mecanismos estruturais e institucionais do modelo de sociedade capitalista democrática. A entrada para a CEE em 1986 veio solidificar essa opção.

Na atualidade, os dilemas do cooperativismo com expressão no desenvolvimento da Economia Social em Portugal são, em certo sentido, muito semelhantes àqueles que existem na Europa ocidental e noutros países capitalistas desenvolvidos. Por um lado, a sua criação e desenvolvimento decorre muito da crise da economia de mercado e do Estado-Nação. Perante o desemprego e a exclusão social provocados pela globalização e pelas novas tecnologias, para todos aqueles que podem subsistir exclusivamente como trabalhadores assalariados não lhes resta outra solução a não ser encontrar uma alternativa de emprego e de rendimento para poderem sobreviver. Enveredar pela criação de cooperativas é uma solução possível, desde que os princípios e práticas da auto-organização, da solidariedade e da emancipação social estejam presentes.

Embora existam cerca de 3.000 cooperativas em Portugal, se persistir a tendência que gerou a sua descaracterização em termos de princípios e práticas, para qualquer trabalhador assalariado é indiferente trabalhar numa cooperativa ou numa empresa capitalista. Para os seus dirigentes, as causas dessa descarac

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O papel do cooperativismo no desenvolvimento da economia ...

terização são devidas às regras de concorrência e de competição impostas pelo mercado. Para serem produtivas e eficientes têm que utilizar o mesmo tipo de trabalho assalariado, a mesma estrutura hierárquica de autoridade e a mesma divisão do trabalho. Desta forma, não se pode afirmar que o cooperativismo é uma alternativa ao capitalismo e ao Estado, e assim dificilmente poderá potenciar uma Economia Social pautada pela solidariedade, pela liberdade e pela cooperação conducentes à emancipação social dos trabalhadores assalariados.

Notas

1 Manuel Joaquim de Sousa. O sindicalismo em Portugal. Porto, Afrontamento, 1974; e Campos Lima. O movimento operário em Portugal. Porto, Afrontamento, 1972.

2 Costa Goodolphim. A associação – história e desenvolvimento das associações portuguesas. Lisboa, Seara Nova, 1974.

3 Fernando Ferreira da Costa. Doutrinadores cooperativistas portugueses. Lisboa, Livros Horizonte, 1978.

4 César Oliveira. O socialismo em Portugal (1850-1900). Afrontamento, Porto, 1973.

5 Costa Goodolphim, op. cit. .

6 Alexandre Vieira. Para a história do sindicalismo em Portugal. Lisboa, Seara Nova, 1970.

7 J. M. Gonçalves Viana. A evolução anarquista em Portugal. Lisboa, Seara Nova, 1975.

8 Joel Serrão. A emigração portuguesa: sondagem histórica, 2ª edição. Lisboa, Livros Horizonte, 1974.

9 Costa Júnior. Movimento operário português. Lisboa, Editorial Verbo, 1964.

10 César Oliveira. A criação da União Operária Nacional. Porto, Afrontamento, 1973.

11 Acácio Tomás de Aquino, et al. O 18 de Janeiro de 1934 e alguns antecedentes. Lisboa, Regra do Jogo, 1978.

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12 Fernando Ferreira da Costa. As cooperativas na legislação portuguesa. Lisboa, Livaria Petrony, 1976.

13 Carlos Pestana Barros. “Cooperativismo e Economia Social em Portugal – caracterização e análise” in Carlos Pestana Barros e J. C. Gomes Santos. Cooperativismo, emprego e economia social. Lisboa, Vulgata, 1999.

14 António Sérgio. Sobre o sistema cooperativista. Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1984.

15 J. M. Carvalho Ferreira. Portugal no contexto da transição para o socialismo – história de um equívoco. Blumenau, FURB, 1977.

16 Manuel Canaveira Campos. “As razões de um congresso” in Cooperativas & Desenvolvimento, nº1, Ano II. Lisboa, 1999.

17 INSCOOP. As 100 maiores empresas cooperativas. Lisboa, INSCOOP, 1998.

RESUMO

Com a crise do emprego e do Estado-providência, com o aumento da precariedade dos laços contratuais e da exclusão social, denota-se a emergência de um Terceiro Setor ou, mais concretamente, de tipos embrionários de Economia Social que possuem a tendência de suprir as insuficiências da intervenção do Estado e do mercado. A partir desses elementos, analisa- se o papel do atual cooperativismo em Portugal e sua influência sobre a estruturação e o desenvolvimento da Economia Social.

RESUMO

With the employment and welfare state crisis, along with the increase of flexibility of work contracts and social exclusion, it is seen the rise of a third sector or, more concretely, of new types of Social Economy, which tends to supply the insufficiencies of state and market interventionism. Based on these elements, the article analyzes the role of today’s cooperativism in Portugal and its influence on the structure and development of the Social Economy.

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da filosofia do progresso

natalia montebello * Primeira carta

Praga, um gelado fim de tarde de janeiro de 1904, e o jovem Franz, então com vinte anos, escreve a seu ami- go Oskar sobre a leitura, uma atividade para ele vital, nessa sua vida solitária. Para o jovem e solitário Franz, a leitura não é uma saída ou um efeito da solidão: ele lê avidamente, compra livros avidamente. Sua vida, frugal e singela em tantos aspectos, torna-se exuberante quando se trata de livros. Ao ler não está só, não está doente. Franz gosta de ler Goethe, Thomas Mann, Hermann Hesse, Dickens, Flaubert, Kierkegaard, Dostoievski. Desde a infância, e por toda sua vida, lerá contos de fadas. Enfim, Franz quer prolongar, nesta carta, uma conversa que tivera com Oskar alguns dias atrás, e lhe escreve: “De modo geral, penso que só devemos ler livros que nos mordam e nos aguilhoem. Se o livro que estamos lendo não nos desperta numa sacudidela, como uma pancada na cabeça, para que perder tempo em lêlo? (...) Para que nos faça felizes, como diz você? Deus meu, ficaríamos igualmente felizes se não tivéssemos livro algum; os livros que nos tornam felizes, nós mes

* Mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP e pesquisadora no Nu-Sol. verve, 2: 123-131, 2002

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mos poderíamos escrevê-los. Precisamos é de livros que nos atinjam como um infortúnio extremamente doloroso, como a morte de alguém a quem amássemos mais do que a nós mesmos, que nos façam sentir como se tivéssemos sido desterrados para os bosques, para longe de qualquer presença humana, como um suicídio. Um livro deve ser o machado com que se rompe o mar congelado dentro de nós. É nisso que acredito.”1

Da sua janela, Kafka desenhava com o dedo dois ou três círculos no ar. Sua vida toda, dizia, tinha transcorrido nesses círculos. Sua vida toda, e mais um mês: quarenta e um anos. De qualquer maneira, viver depois dos quarenta, como lera nas memórias de outro funcionário público, é indecente. Que seja! Alguns círculos da janela, pouco mais de quarenta anos: há vida onde não há tempo ou espaço. O que percebemos em Kafka leitor não é uma saída para a doença ou a tristeza ou a solidão: é um confronto com a dor e com a morte. Ler, só para romper o mar congelado dentro de nós. Livros não devem ensinar-nos a viver, devem desterrar-nos, como um suicídio. Para que ler? Se quisermos encontrar a felicidade, nos diz Kafka, então que cada um escreva seus próprios livros; livros não resolvem nossos problemas. Então, de novo, para que ler? Certamente não resolveremos o mundo, assim como não resolveremos a nossa própria vida, mas talvez mordidas e aguilhoadas nos incomodem o suficiente como para abandonar a boa intenção, a magnificência, de querer salvar a humanidade — não sei do quê. Essa história tão antiga: as grandes idéias, as grandes gestas, campanhas, projetos, sistemas, teorias. Tudo em nome da felicidade.

Interessa-me, por ora, a leitura, não leitores atrás de soluções, leitores caçadores de fórmulas. Leitores explicativos, interpretativos, leitores etcétera. A leitura de Kafka não desperta uma consciência, mas morde,

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Da filosofia do progresso

pica, arranha num corpo. Mas poderíamos pensar que existem livros que foram escritos para nos ensinar a viver, livros que nos prometem a felicidade — na mesma medida em que nos avisam sobre a desgraça. E existem leitores para eles — e seguramente esses leitores escrevem e continuarão a escrever justamente esses livros —, e existem tantas outras coisas. Interessa-me, porém, a leitura-suicídio de Kafka, os livros que cor- tam. Mais ainda, escritos inconformados. E claro que não falo dos livros, nem me interessa uma crítica literária neste sentido; falo de minha leitura, e nada de neutralidade axiológica. Lê-se um livro porque ele se circunscreve a uma época ou lugar? Lê-se um livro no seu departamento histórico e teórico? Deixando-o lá, no seu lugar? Para conhecer as épocas e seus relatos? Lemos livros, ou lemos retalhos — ou frangalhos — da história das idéias?

Não sei se há textos que nos impõem um tempo ou um lugar, ou um caminho e sua chegada — ou mesmo desvios, que são outros caminhos. Parece-me que não devemos menosprezar o leitor e, talvez, na maior parte das vezes, leituras assim resultam de leitores empenhados em solucionar qualquer coisa: suas próprias vidas, a humanidade, tanto faz. Sei que há textos que dificilmente podem ser lidos como fórmulas para a felicidade, e sempre me surpreende algum comentário sobre eles neste sentido. Sei de vários, mas não é de todos eles que quero falar aqui.

Outras cartas

Por exemplo, definir um livro como anarquista porque nele se ensina a viver sem governo, me parece, no mínimo, um comentário descuidado e sem a menor importância. Já a intenção ou a necessidade de definir um livro como anarquista me parece alguma coisa bas

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tante complicada, assim como a necessidade de definir

o anarquismo. Enfim, definir, a necessidade de definir, exige sérias considerações, que sempre me levam ao problema da conceituação e das teorias. Digo que definir não é o tipo de verbo que dá conta nem do pensar nem da anarquia. A própria palavra anarquismo não resume nem o pensar nem a anarquia, ou melhor, resume, mas talvez apenas isto. Para aqueles que se conformam com uma palavra, não há o menor problema na catalogação, e não que esta resguarde um erro — do tipo “será que este livro é realmente um livro anarquista?” —, mas não há problema porque a catalogação resguarda um cômodo ponto final. Bem, e se o anarquismo se resume a alguns livros e outro tanto de anedotas, todos mais ou menos românticos, mais ou menos humanistas, então não há necessidade alguma de pensá-lo, e a memória, a famosa memória coletiva, se encarregaria do álbum de recordações. Não diria que um texto é anarquista, mas que há anarquia nele, quando, longe de me mostrar o caminho da felicidade, ele me incomoda até romper meu próprio mar congelado. E diria que essa anarquia não se explica ou se define em nenhuma geografia teórica.

Para quê ler os chamados livros anarquistas? não para salvar a humanidade, não para descrever como o mundo poderia ser perfeito. Para quê? Não se trata disto: o anarquismo — uso a palavra para não me demorar mais em considerações — não nos ensina a viver. Lê-se um livro destes como um golpe no crânio, a menos que, ao ler, exista o interesse de pacificar as épocas passadas e tomar notas para desvendar as próximas, e daí tanto faz se o livro é anarquista ou o que for, depende só do gosto do leitor.

Para ser atingido por uma leitura, não há outro momento que não o presente. E a história deve deslizar-se para a superfície, não para desaparecer, mas para tor

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Da filosofia do progresso

nar-se ferramenta, e deixar de ser santuário. Quase quarenta e um anos ou o século XIX: não são caixinhas de cristal, mas movimento, tempos de superfície, no qual combinamos idéias, tempos que nos atingem com suas palavras, mas que também atingimos, ao combinar idéias e palavras de outras maneiras, porque a nossa vontade assim o quer, porque pensamos. Assim como Praga ou Paris, ou tantos lugares, são lugares que visitamos, que reconhecemos entre as palavras, mas que são círculos que fazemos no ar.

Outras leituras: em carta a Villaumé, de janeiro de 1856, descreve Proudhon o resultado de suas leituras, entre 1839 e 1852, sobre as idéias, seu significado e seu alcance: “(...) encontrei quase em tudo e por tudo, que nem as teorias estão de acordo com seus próprios elementos, nem as instituições em harmonia com seu objeto e seus fins, nem os autores com suficientes dados, nem com suficiente independência e lógica.”2. Proudhon inventa seu olhar: o olhar, de uma maneira geral, perece-lhe estático, falta ao olhar, ao pensamento, a noção de movimento. O movimento ele imprime no pensamento com a noção de progresso. Mas a palavra progresso nos parece uma daquelas palavras tão carregadas de sentido, tão pesadas, que seguramente não deveríamos nos dar o trabalho de pensá-la, a não ser para erguer alguma estátua. Enfim, nada mais apressado do que ver numa palavra uma época, um sistema, um sentido. Não se trata de novas estátuas: não me detenho na palavra para encontrar e desvendar mistérios, numa suposta profundidade, mas para evitar a pressa de nossa tão contemporânea leitura de acumulação e catalogação.

Certo: falar de progresso, quanto mais de filosofia do progresso, findo o século XX, pode sugerir muito mais um saudosismo inconseqüente do que qualquer interesse no pensamento, em sua força, que está em seu

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movimento. Relutei em escrever estas linhas justamente por não raro suspeitar a necessidade de um esforço titânico na intenção de dimensionar, na atualidade de um pensar radical, uma palavra que está mais próxima, a primeira vista, do passado que ela resguarda do que de alguma possibilidade de vida ou significado no presente. Pior ainda: meu receio dirigia-se também à possibilidade de provocar um significado presente a partir da simbologia que hoje descreve, como em um museu a céu aberto, não mais do que a cristalização do grande sentido da palavra no século XIX.

O símbolo: o trem, a estrada de ferro. O sentido cristalizado: o caminho certeiro, se dentro dos trilhos, da humanidade em direção ao seu aperfeiçoamento, a estágios cada vez mais superiores do que pode ser entendido como evolução social. Os séculos XVIII e XIX nos brindaram fartamente estas teses, deste ou daquele ponto de vista, e considero que o humanismo que as inspira as distingue, no máximo, em nome da boa intenção que leituras bem-intencionadas possam desenterrar nelas.

Se meu interesse fosse mostrar, num museu a página aberta, o sentido da palavra para reviver, por algumas linhas, o símbolo, certamente este texto reclamaria por um cuidado ritualístico em relação à história e à teoria. E não haveria o receio de provocar significados quaisquer, já que estaria descrevendo uma figura, concentrando- me em suas formas, suas cores, sem mais, no mais puro rigor da observação plástica. Enfim, depois de duvidar sobre como escrever sobre as idéias deste livro, gostaria de escrever um pouco sobre a leitura a que ele me leva, que ele me provoca.

Ao ler as duas cartas que compõem a edição aqui referida da Filosofia do Progresso3, uma de 1851 e a outra de 1861, não estou interessada em preservá-las, no formol da história das idéias, para a posteridade.

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Da filosofia do progresso

Proudhon se interessa pelo movimento das idéias, movimento de pensar que é condição sine qua non do pensamento afirmativo de liberdade, este também como ponto de vista crítico, não só de relações absolutistas mas, também, e ao mesmo tempo, do absolutismo do próprio pensamento, que adormece as vontades, mesmo que sempre em nome do bem e da felicidade geral. A noção de movimento em Proudhon nos distancia tanto de afirmações categóricas acerca da verdade quanto nos aproxima da noção de série, um pensar que não exige de nós nem teorias, nem épocas, nem símbolos, nem sentidos históricos. A série é uma intencionalidade de pensamento que mostra apenas combinações possíveis de unidades, segundo pontos de vista. Não há totalidade, não há nada a ser preservado.

Assim, detenho-me aqui na palavra progresso: “(..) é a afirmação do movimento universal e por conseqüência a negação de toda forma e de toda fórmula imutáveis, de toda doutrina de eternidade, de imobilidade, de impecabilidade, etc., aplicada a um ser qualquer; de toda ordem permanente, sem excetuar nem mesmo a do universo; de todo sujeito ou objeto, empírico ou transcendental, que não seja suscetível de mudança”. Ao investir numa filosofia do progresso, Proudhon descreve um pensar que prescinde “(...) do eterno, do imutável, do perfeito, do definitivo, do não suscetível de transformação, do indiviso (...)”, daquilo que é, “(...) o status quo em tudo e por tudo.”4

Se relacionada à lógica, a noção de progresso, diz Proudhon, refere-se à noção de série. Série: formam-se séries ao libertar o pensamento de categorias absolutistas, de conceitos ou de vetores, do tempo e do espaço. A série reclama nosso olhar, nossa história: quem combina as unidades não desaparece pelo esforço, ingênuo esforço, da neutralidade. A noção de movimento dissolve, como filosofia do progresso, a separação entre

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vida e pensar. Proudhon pensa o pensamento como a vida, como transformação constante, imprevisível. Qual a qualidade deste pensar? Pensa-se o presente.

Tentar definir o anarquismo parece-me apenas um gesto daquilo que, umas quantas linhas atrás, me provocava receio: aprisionar idéias em datas ou em teorias. Descrevê-lo em sua multiplicidade é uma interessante cartografia que cabe a muitos, em diferentes lugares e momentos; interessante porém titânica (agora sim), se o que se pretende é dar conta de toda sua extensão — diria que impossível, se considero, como prefiro considerar, esta extensão como movimento constante. Como pensar, há uma anarquia que reúne o pensamento com a vida, que dá ao pensar a força das vidas que o pensam, e às vidas um pensamento que não as preserva, que não as ensina a viver, nem as torna felizes, e assim inventa olhares libertários.

Ao ler a Filosofia do Progresso, pouco me importa, a pertinência da metáfora do trem, ou coisa que o valha, leio o anarquismo como idéias que nos aguilhoam. De qualquer maneira, leituras são sempre possíveis: nisto, é claro, também não há recomendação. Trata-se de um ponto de vista. Prefiro ler em Proudhon e sua filosofia do progresso uma problemática sobre o pensamento, que nos incita a pensar em “ismos” e outras definições como superfícies nas quais podemos combinar idéias em movimento, movimentando séries para perpassar dúvidas com incômodos, nunca com certezas. Mesmo assim, pensar e anarquia continuam em movimento, sem explicações.

Notas

1 Ernst Pawel. O pesadelo da razão: uma biografia de Franz Kafka. Rio de Janeiro, Imago, 1986, p. 156

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Da filosofia do progresso

2 Nesta carta, Proudhon retoma sua famosa afirmação: a propriedade é um roubo. Quer responder a Villaumé que, ao escrever seu Novo tratado de Economia Política, interrogara-o a respeito do que considerava sua proximidade oscilante do socialismo e seu incongruente distanciamento do comunismo. A leitura de O que é a propriedade? parece-me fundamental para entender os efeitos, no pensar econômico, da noção de movimento, ou da analítica proudhoniana como pensar em movimento. Pierre-Joseph Proudhon. Filosofia del progresso. Madrid, Libreria de Alfonso Darán, s/d, p. 134.

3 Idem, p. 24.

4 Ibidem, p. 24.

RESUMO

O artigo sinaliza possíveis problematizações sobre a noção de progresso, tendo por ponto de vista o pensar de Proudhon e impressões sobre a leitura, para afirmar a palavra, prescindindo de confinamentos históricos e ideológicos.

ABSTRACT

This article presents possible critical understandings on the notion of progress, based on Proudhon’s thought and on impressions from his writings, in order to assert the word, without historical and ideological confinements.

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reflexões acerca da moral anarquista1

Jean Barrué2 A moral, segundo os dicionários, é a ciência que projeta as regras a seguir para fazer o bem e evitar o mal. Ela é, assim como o direito, uma ciência normativa, pois “ela formula regras e preceitos”. Tal definição evita responder questões que o simples bom senso impõe: a moral é considerada aqui como uma “ciência”, mas podemos afirmar que as “regras” que ela formula têm o caráter imperativo das leis científicas? Quem definirá o bem e o mal? Quem fixa — ou fixou — essas regras e esses preceitos: um deus, uma religião, a tradição, o consenso universal? Trata-se aí de uma moral imposta que tem para os indivíduos um caráter obrigatório e que precisa cuidadosamente o que é proibido e o que é permitido: a sanção será, então, o complemento natural da obrigação. Um caso extremo — mas banal, hoje — é esse de populações inteiras submetidas a uma “moral” que serve aos interesses de uma classe social, de uma oligarquia, de uma ideologia. O bem, é o que é conforme a vontade do poder; o mal, é o que poderia enfraquecer

o poder. Em tal moral, existe uma oposição absoluta verve, 2: 132-140, 2002

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Reflexões acerca da moral anarquista

entre o que é proibido e o que é permitido: a perfeição é atingida quando o que é permitido confunde-se com o que é obrigatório!

Uma moral única, conforme diz Guyau com muita justeza, é opressiva por essência. Só a diversidade das morais pode salvaguardar a liberdade e a personalidade dos indivíduos: morais não impostas, mas livremente aceitas por um grupo social cujos membros estão de acordo quanto a regras de vida no interior do grupo e de comportamento em relação aos indivíduos exteriores ao grupo. Pôde-se, assim, falar de moral estóica ou de moral epicurista. Podemos, igualmente, falar de moral anarquista?

***

Moral anarquista: parece haver uma contradição entre esses dois termos. A idéia de moral está, com efeito, associada — não apenas nos dicionários, como também no espírito de muitas pessoas — à idéia de obrigação e sanção. Ora, quem diz obrigação, diz autoridade amiúde injustificada e poder abusivo, o que é contrário ao pensamento anarquista. Mas se os anarquistas estão de acordo em relação a alguns princípios essenciais que os guiarão em suas relações entre si e com o resto da sociedade, poder-se-á, então, falar de uma moral anarquista: uma moral livre de toda obrigação opressiva e de toda sanção repressiva. Essas precisões autorizam- nos a associar a palavra “moral” à palavra “anarquista”, sem que seja necessário susbstituir o latim pelo grego e “moral” por “ética”.

Como os anarquistas concebem uma sociedade na qual os indivíduos e os grupos de indivíduos viveriam e trabalhariam segundo a moral anarquista? Tudo o que foi escrito acerca da moral anarquista mostra muito bem que se trata de uma moral do futuro, e a adaptação das

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idéias anarquistas a uma sociedade conduz a descrever uma sociedade dos tempos futuros. Não se trata de escrever um romance fantástico, nem de se entregar a profecias imprudentes, e seria ridículo entrar em detalhes inúteis. Limitar-nos-emos, portanto, a extrair idéias diretivas da moral anarquista e a mostrar que a nova sociedade surgiria de sua aplicação. Alguns censurarão a moral anarquista por suas lacunas e sua imprecisão, mas ela é o testemunho de um esforço construtivo com vistas a uma sociedade livre, igualitária, fraternal, que devolverá aos produtores e aos cidadãos a gestão direta da economia da cidade.

Sociedade livre? Defender antes de tudo — e em to- dos os âmbitos — a liberdade do indivíduo e suprimir os poderes arbitrários. Reconhecer no trabalho a autoridade fundada na aptidão e na competência, não pode justificar o poder de um indivíduo sobre outros indivíduos, nem a legalização desse poder. Isso acarreta o desaparecimento do Estado autoritário, centralizado, onipresente e dos organismos — exército, polícia, justiça — que são os auxiliares do Estado. A liberdade de cada indivíduo só pode existir na liberdade dos outros indivíduos.

Sociedade igualitária? Igualdade não significa identidade: a diversidade dos indivíduos, de suas vocações, de suas aptidões, de suas capacidades, é indispensável à divisão do trabalho. Quando indivíduos contribuem utilmente a uma tarefa coletiva, eles merecem a mesma consideração, o mesmo tratamento e — se a situação se apresentar — a mesma remuneração. Os anarquistas opõem-se, então, a essas hierarquias que criam classes privilegiadas e instauram desigualdades que nada justificam senão a tradição, o desprezo pelo trabalho manual julgado “inferior”, e a manutenção das situações adquiridas.

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Reflexões acerca da moral anarquista

Sociedade fraternal? Não basta suprimir a violência organizada e sistemática do Estado e de seus auxiliares; também é preciso — o máximo possível — eliminar toda violência nas relações humanas. A sociedade anarquista deve estar fundada na cooperação, na solidariedade e no apoio mútuo. Viver em sociedade acarreta uma certa alienação da liberdade individual, mas a perda da “liberdade absoluta” é compensada pelas vantagens que a vida coletiva proporciona. Sob uma condição: a vida “social” deve respeitar as liberdades essenciais do indivíduo e sua personalidade.

Gestão direta? Os anarquistas não concebem a organização da economia e da comuna senão gerida diretamente pelos interessados: por aqueles que participam da produção ou da vida da comuna. As diretrizes e as decisões partem da “base” e os responsáveis em todos os níveis dos organismos de coordenação têm mandatos precisos, são controlados por seus mandatos e não são em nenhum caso irremovíveis. Assim, a estrutura federalista das unidades de produção e das comunas evita o autoritarismo e a burocratização de um aparelho permanente.

***

Tal sociedade fundada na moral anarquista provoca naturalmente muitas críticas. Eis a mais corrente: “É um sonho bem sedutor esse de uma sociedade que traria mais justiça e harmonia... mas quando pensamos na natureza humana e na estrutura do mundo atual, é apenas uma construção do espírito, um sonho irrealista, uma utopia.” É preciso reconhecer que, desde há um século, as conferências, os meetings, as discussões, nossas brochuras e nossos jornais não fizeram o anarquismo progredir. O único resultado obtido foi susbstituir na mente das pessoas a imagem do anar

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quista terrorista e sanguinário pela imagem do anarquista sonhador, repleto de boas intenções... mas que não tem os pés no chão! E a questão essencial que se coloca aos anarquistas é a seguinte: “Admitindo que sua sociedade seja realizável, como passar do sonho à realidade? Com que meios esperam transformar o mundo?”

Não se pode edificar uma nova sociedade senão sobre as ruínas da antiga sociedade. Transformar o mundo supõe a destruição radical do passado. Os anarquistas que sempre combateram o ludíbrio do sufrágio universal e a farsa eleitoral, não podem certamente pensar que uma nova sociedade nascerá de algumas reformas anódinas custosamente arrancadas no âmbito da democracia parlamentar. O socialismo “no poder” não pode modificar as estruturas profundas da sociedade, mudar o sistema de propriedade, pôr um termo definitivo à política de armamento e ao militarismo.

Se a via reformista não leva a nada, devemos concluir ingenuamente: “Basta fazer a revolução”? Que revolução, com quem e por quê? A época do romantismo revolucionário e das barricadas passou. Desde 1917 todas as revoluções fracassaram (Ucrânia, Espanha) ou serviram a minorias dizendo-se de “vanguarda” para tomar o poder, e para conservá-lo por todos os meios opressivos próprios aos Estados e aos exércitos. O proletariado, em nome do qual se dizia exercer a ditadura, escapou de uma servidão para cair numa outra ainda pior. O novo poder conservou todas as taras do antigo, com mais mentira e hipocrisia. Os anarquistas nunca aspiraram a tomar o poder, e os exemplos da Ucrânia e da Espanha mostram muito bem que se associar aos futuros ditadores é um autêntico suicídio. Nessas pretensas revoluções, os anarquistas só podem ser contra- revolucionários.

Mas então, nem socialismo “à francesa”, nem comunismo “à russa”? A sociedade anarquista só pode nas

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Reflexões acerca da moral anarquista

cer por um amplo sobressalto popular — uma revolta e não uma revolução, para retomar a terminologia de Stirner —, por ocasião de uma grave crise econômica e política que colocará a questão: sobreviver ou desaparecer. Diante das falências sucessivas do liberalismo, do socialismo reformista e do pretenso comunismo, só restará a solução anarquista, e talvez os anarquistas sejam capazes de engajar — e não dirigir — uma cor- rente popular que se beneficiará da neutralidade da massa dos indiferentes e dos resignados. Se essas condições forem realizadas, será necessário fazer frente à feroz resistência dos privilegiados do antigo regime e de seus cães de guarda. Como parecem ridículos os debates teóricos sobre a violência e a não-violência! Tão logo os anarquistas representaram um perigo, mesmo mínimo, para o Poder, eles foram perseguidos e massacrados. Diante da violência organizada do Estado, a violência revolucionária nada mais é que o exercício do direito de legítima defesa. Nesse confronto inevitável — e que será decisivo — todos os meios de luta podem ser aplicados, sob uma dupla condição: 1o que eles sejam eficazes; 2o que eles não estejam em contradição com os próprios fins do anarquismo. Os anarquistas não podem praticar nem desculpar a tomada de reféns, as chantagens dizendo respeito à vida ou à morte de alguns inocentes, a tortura, as violências inúteis, o terrorismo cego, tudo o que tende a aviltar e a desonrar o adversário. A violência — quando ela é necessária — nada tem de comum com a fria crueldade das “repressões legais”!

Assim, uma sociedade fundada na moral anarquista não parece realizável senão num futuro bem impreciso. Que isso não seja pretexto ao desencorajamento! Houve no passado anarquistas, sempre haverá, e no espírito de muitas pessoas existe um anarquismo latente que pode um dia passar à ação. Continuar a propaganda

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escrita e oral, participar de todas as lutas cotidianas e parciais sem sectarismo, mas sem conformismo, e assim manter-se pronto para toda eventualidade: tal é o dever dos anarquistas nesses tempos de incerteza.

***

Também seria preciso, talvez, livrarmo-nos de certas fórmulas que repetimos por hábito, sem nos darmos conta de sua estupidez. Sobretudo, esta: “Combatemos as idéias e não os indivíduos.” Há algo de mais imbecil que esta solene afirmação... a menos que seja um procedimento grosseiro e hipócrita, de “desvincular-se” do terrorismo? É verdade, não se mata uma Idéia, mas ao suprimir os indivíduos que a representam, ela perde suas sustentações e torna-se sem força. Assim operam os Estados que, para entravar ou romper o possível desenvolvimento do anarquismo, massacraram impiedosamente os anarquistas. Crê-se realmente que, permanecendo no campo das idéias, pode-se combater com sucesso o Capitalismo, o Nacionalismo, o Militarismo, sem atacar os capitalistas, os nacionalistas, os militaristas, que são para nós inimigos bem vivos, bem “reais” e mais perigosos que vagas abstrações? O Militarismo é uma palavra que se presta a justas oratórias; o militarista é um adversário a quem não se desarma com discursos.

***

Os anarquistas não crêem que a mentira e as promessas que nunca poderão ser cumpridas possam servir a suas idéias. Eles não são mercadores de ilusões na feira da política e não se gabam dos méritos de remédios miraculosos, tais como o socialismo do sr. Mitterrand ou

o comunismo dos senhores do Kremlin. Mas quando combatemos as ilusões perigosas, devemos evitar ser, nós verve

Reflexões acerca da moral anarquista

mesmos, vítimas de novas ilusões: os anarquistas escaparão das seduções da ilusão pacifista? Guerra à guerra, nunca mais a guerra, amo a paz... são palavras de ordem “mobilizadoras”. Elas reuniram antes de 1914 multidões imponentes sem impedir a Primeira Guerra Mundial. Elas animaram antes de 1939 a União Pela Paz — logo desnaturada e corrompida pelos elementos stalinistas

— e a Segunda Guerra Mundial aconteceu. E hoje, em 1983, os movimentos pela paz tornam a nos pregar a mesma peça: união bem heteróclita com uma maioria anti-EUA, uma minoria anti-URSS, e um pequeno número de pessoas que colocam os dois Grandes no mesmo saco, e, lá dentro, ao lado de uma multidão de pessoas de boa vontade, os amigos da burocracia soviética disfarçados de pacifistas. A quem se fará crer que os desfiles, as manifestações, as petições, os cartazes, as correntes humanas, todo esse blá-blá-blá irrisório, todo esse folclore batido, poderão impedir os Estados de declarar a guerra onde e quando eles quiserem? Se os anarquistas recusam participar desse circo, eles também deveriam renunciar a essa cômoda explicação que torna responsáveis pelas guerras o Capitalismo, o Comércio de armas, o Imperialismo e outros “ismos” tão anônimos quanto inapreensíveis. A realidade é mais simples: a guerra supõe exércitos, fábricas de armas — nuclear ou não — e quadros especializados fortemente hierarquizados que organizam e dirigem fábricas e exércitos. O simples bom senso indica que, para impedir a guerra ou para realizar o desarmamento unilateral que alguns pacifistas preconizam, o único meio não-utópico, é colocar as fábricas de armas fora de funcionamento e os quadros dirigentes fora do estado de nocividade. Todo o resto é apenas ilusão para enganar os outros e enganar a si mesmo. Dirão que tal tarefa é impossível. Então, não vivamos num sonho, não acreditemos em Papai Noel, saibamos nos preparar para o inevitável, mas não esqueçamos essa 2 2002

regra — imperativa! — da moral anarquista: quaisquer que sejam os acontecimentos, os anarquistas não devem ser nem parvos nem cúmplices.

Nota

1 Tradução e nota de Plínio A. Coêlho, de “Réflexions sur la morale anarchiste”, in Jean Barrué. Morale san obligation ni sanction et morale anarchiste. In Les Cahiers du Vent du Ch’min, Paris, vol.8, 1986, pp. 21-31.

2 “Jean Barrué nasceu em 16 de agosto de 1902, em Bordeaux. Militante comunista depois sindicalista revolucionário e anarquista. Após estudos superiores de matemática, torna-se, em 1926, professor de matemática na região Aquitânia. Seu engajamento militante data de 1919, com sua participação numa manifestação revolucionária contra as cerimônias guerreiras da “Vitória”. Adere, em seguida, ao grupo dos estudantes socialistas, , tomando parte, em seguida, em 1920, da criação do Partido Comunista Francês do qual será um militante ativo antes de romper definitivamente. Em 1925, volta-se para o sindicalismo revolucionário e milita no seio da Federação do Ensino (C.G.T.U.). Em 1936 (após a reunificação) será nomeado secretário da seção girondina da C.G.T. Colabora no jornal Le Cri du Peuple, depois retoma em 1934 A Ação Sindicalista, que defende as teses sindicalistas revolucionárias. Sem ilusão quanto ao Front Populaire e às eleições de 1936, e em face das ameaças de conflitos, adere à Liga dos Combatentes da Paz. Após a guerra, retoma sua atividade sindical na C.N.T. francesa, depois adere à Federação Anarquista da qual se torna importante membro do Grupo Sébastien Faure de Bordeaux. Responsável pelas relações internacionais com os outros movimentos anarquistas europeus, colabora no Le Monde Libertaire, na revista La Rue ou na revista alemã Befreiung. Ele é igualmente o tradutor (do alemão) de várias obras como: A Reação na Alemanha, de Bakunin; Anarquismo e marxismo na revolução russa, de Arthur Lehning e de diferentes textos de Stirner sobre a educação. No início dos anos 1980, em desacordo com a Federação Anarquista, aproxima-se da União dos Anarquistas em torno do jornal Le Libertaire. Morre em Bordeaux, em 26 de agosto de 1989". Éphéméride Anarchiste.

RESUMO

Relação entre moral e anarquia e implicações sobre sua projeção sobre uma sociedade futura.

ABSTRACT

Relation between moral and anarchy and implications on its projection over a future society.

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heterotopias anarquistas

edson passetti * Não há como negar que uma das mais belas utopias contemporâneas é a dos anarquistas. Ela busca a superação da desigualdade social preservando as diferenças entre os iguais, evitando a uniformidade. Constróise fundada nas relações de afinidade entre os componentes das diversas associações voluntárias. É uma utopia libertária que não se alimenta de absolutos e não cessa ao instituir uma sociedade. Sua vitalidade está em sempre provocar incômodos onde houver autoridade.

Os anarquistas agitam por meio de movimentos sociais ao mesmo tempo que constróem suas relações livres em associações no interior da própria sociedade desigual. Para eles não é uma revolução que institui a nova sociedade e os trabalhadores não são vistos necessitando de um comando superior que oriente suas consciências. Inventam soluções para a abolição da pro

* Coordenador do Nu-Sol, Professor no Departamento de Política e no PEPG- Ciências Sociais, PUC-SP. verve, 2: 141-173, 2002

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priedade, do Estado, do tribunal. Criam estilos de vida que não separam lazer de trabalho, arte do objeto, liberam o sexo e se interessam por uma educação libertária. Os anarquistas criam costumes anti-hierárquicos fundados na abolição do castigo e do medo.

No século XIX ficaram conhecidos no interior do discurso socialista como anarquistas, libertários, coletivistas, comunistas libertários, terroristas, anarcosindicalistas. Mas, também, acabaram identificados como o criminoso monstro moral antropofágico, o perigoso. Eles foram e são desestabilizadores da ordem capitalista e da socialista que dominaram o século XX.

Sendo utópicos mas não crentes na instituição de uma nova sociedade após a tomada do Estado, como os socialistas científicos, os anarquistas, pacificistas ou revolucionários, constróem heterotopias, lugares de contra- posicionamentos no interior dos desvios insuportáveis para a nossa sociedade. Eles se diferenciam radicalmente dos socialistas científicos estatistas.

As verdades afirmadas pelos anarquistas alojam-se no interior do discurso humanista e outrossim encerram lutas para afirmar suas veracidades. Tais embates descrevem arcos não só no interior do discurso socialista mas também entre os anarquistas, expondo combates e adversividades entre os diversos grupos de afinidade. Utópicos e heterotópicos, críticos da sociedade hierarquizada, analíticos e científicos, são estilistas da existência libertária. Amam, dançam, embriagam-se.

Os anarquistas não abrem mão de sua bela utopia, até mesmo quando entre eles aparecem os sentinelas, os vigias das escrituras. Os anarquismos, cada um sabe, somente permanecem vivos quando não se transformam em doutrina. Por isso, quando as forças reativas decidem registrar o atestado de óbito do anarquismo, o desaparecido anarquista surpreende. Ele é um perigo para a sociedade!

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1. Verdades A verdade mais eficiente é a que se mostra desinteressada, gestora da vontade coletiva, do bem para a polis, do melhor para o povo, do universal Estado, da melhor e justa sociedade. A verdade verdadeira precisa de sentinelas, vigias do espólio, porteiros que zelam pelas sagradas escrituras. A verdade depende de sacerdotes, de reis, de elites, vanguardas e tiranos. Em seu nome erguem- se justiças, medos, castigos, esclarecimentos e certezas.

Um dos grandes equívocos dos defensores de verdade — na luta pela afirmação da mais verdadeira ou da derradeira verdade —, é crer que a continuidade depende da sua preservação. Escrituras, tratados, proposições e utopias não se preservam apenas pelo zelo que suas sentinelas procuram demonstrar por meio de atos que garantem a inviolabilidade da palavra ou do objeto. Decerto, muito das escrituras sofrem alterações significativas segundo o registro escrito ou tradição oral. Ainda que a modernidade afirme a capacidade de restaurar em definitivo o que poderá ter sido a verdade inicial, a atitude dos sentinelas é a de procurar reativamente preservar a possível origem, a infalibilidade na sua formulação e longevidade. É preciso respeito. Donos e sentinelas exigem obediência.

A devoção não é somente efeito sagrado. Ela corresponde a uma continuidade na racionalidade moderna. Deus e Homem formam um duplo indissociável, pelo qual razão e fé, ética da responsabilidade e da convicção, certezas no Estado ou na sociedade, permanecem guiando os defensores da superação da injustiça e da desigualdade.

Os anarquismos têm investido em justiça, confronto com verdades da ordem e procuram, quer por meio de análise, a partir do método serial de Proudhon, quer da

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teoria, desde a formulação do anarquismo científico por Kropotkin, apontar possibilidades e determinações para a futura sociedade igualitária. Orientados pela busca de potencialização de liberdades, os anarquistas diferenciaram- se no interior do discurso socialista por se situarem no campo adversário do socialismo autoritário e do reformista, dimensionados a partir das proposicões de Marx e Engels. Diante do Estado como meio a ser ocupado pela ditadura do proletariado, os anarquistas mobilizam para o fim do Estado e sua abolição.

Durante muitos anos, ou até séculos, esta distinção se resumiu ao campo meramente ideológico, ou quando muito relativo à materialidade da autoridade, atitude necessária, segundo Marx e Engels, para haver planejamento, economia e justiça1. Sem uma conspiração organizada e estruturadora da verdadeira consciência seria impossível construir a sociedade igualitária. Do ponto de vista materialista histórico, sem a tomada do poder de Estado, subordinando a propriedade privada à estatal — processo já em adiantado estágio promovido pelo monopólio sobre o capitalismo privado de livre-concorrência — e sem a direção pelo partido da revolução no exercício legítimo do uso das armas pelo proletariado representado no Estado, jamais se chegaria à sociedade igualitária e justa.

Os anarquismos na Comuna de Paris, de 1871, foram massacrados pelas forças reativas da Europa. Abriase assim a possibilidade de um novo percurso a ser trilhado com o socialismo científico apontando para uma nova alvorada igualitária? Os movimentos de trabalhadores responderam afirmativamente às forças socialistas no final do século XIX e começo do XX, século que se encerrou desesperançado diante do discurso neoliberal de vitória do mercado sobre o Estado e de celebração da democracia como definitiva materialização

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da igualdade política. Ainda que o mercado permanecesse monopolizado, exigindo não só benesses de Estado mas sua atuação direta onde o capital não se dispõe a fazê-lo, decretou-se o fim do socialismo. De maneira semelhante, após os efeitos da Revolução Russa e da dizimação dos anarquistas na Guerra Civil Espanhola, os socialistas tinham emitido o atestado de óbito dos anarquismos.

Os feitos da derrocada soviética e os ajustes com a ditadura chinesa, fizeram com que liberais, democratas e sociais-democratas decretassem, no final do século XX, o fim do socialismo estatal. De maneira análoga, totalitários fascistas e nazistas, entre os anos trinta e quarenta, imaginavam estar liquidando os superados democratas. Liberais democratas, por sua vez, viam estes totalitarismos como um perigo menor diante do socialismo, e por isso, os apoiaram naquelas circunstâncias. Os democratas-cristãos, enfim, eram mais ágeis que os sociais-democratas para saudarem a cooperação de classes, muitas vezes legitimando tiranias. Ciclo interminável de vida, morte e ressurreição de verdades e forças políticas no Estado e diante do Estado.

Na história, segundo as épocas, utopias de diversos matizes justificam o melhor para a humanidade. Mesmo levando a genocídios e monstruosas demonstrações de vingança nos campos de concentração e extermínio, ou surpreendendo pelos ares, pela instantaneidade da morte e da devastação, atirando bombas atômicas. Em nome da ordem, do Estado, do melhor regime político e da propriedade, do povo, em nome da verdade, da verdade verdadeira o poder de dizimar está no centro da política. A conversação internacional se restringe à atitude diplomática esperada entre adversários em tempos de paz, até formalizarem suas inimizades. A conversação interna, em cada Estado, espera ter no parlamento o ponto de convergência e equilíbrio capaz de

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conter iminentes guerras civis. Estado, aliados e amizade efêmera entre povos e etnias representadas no Estado, em nome da propriedade privada ou coletiva — mas sempre representadas por sistemas de partidos políticos ou tiranos, elites ou vanguardas —, reiteram a obediência à hierarquia, à ordem, à lei. Cada pessoa deve nascer e morrer sob leis, sejam elas boas ou más. Importa que as leis permaneçam, conservando a vida dos ancestrais como força no presente, na aclamação de um contrato para a paz eterna.

Os anarquistas provocam múltiplos abalos às leis, à ordem, à hierarquia. Buscam potencializar liberdades alheias às formalidades, diante dos costumes fundados em pacificações pelo alto e na perfectibilidade de uma consciência superior. Entretanto, suas críticas contundentes não os eximem de terem gerado seus sentinelas, defensores de tábuas sagradas, intérpretes mais corretos, e pelo avesso, autoritários juízes saudando e condenando. Os anarquismos contestam a continuidade das desigualdades, a propriedade e o Estado, mas não estão isentos de sacerdotes e sentinelas.

Uma aproximação entre os diferentes anarquismos desestabiliza a sedimentada noção de que estão unidos pacificamente por meio das relações de afinidades. De início, tal formulação sugere que entre os anarquistas existe um a priori pacificista: onde quer que eles estejam ou se aglutinem, as afinidades os tornam parceiros indissociáveis e prepondera a conversação. A vida é menos condescendente e os expõe a lutas por verdades. A luta faz da afinidade nada mais que o nome da política entre anarquistas.

2. Forças A tensão entre anarquistas e marxistas, ou entre comunistas e coletivistas, não se estabeleceu em de

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corrência do conflito de personalidades, ainda que na International Workingmen’s Association (IWA), estabelecida em 1864, em Londres, até 1872, Marx e Bakunin tenham se acusado mutuamente de cesaristas.

O embate não deixou de ser entre centralismo e federalismo, transição por meio do Estado dirigido pelo proletariado organizado em partido, e destruição simultânea da propriedade privada e do Estado pelo movimento anarquista. Marx e Bakunin expressam, na IWA,

o momento da reviravolta. Até 1871, com o massacre da Comuna de Paris, os anarquistas seguiam adiante como força e intensidade capazes de desestabilizar, enquanto as demais partes componentes do socialismo oscilavam sem despreenderem-se do Estado — desde Saint- Simon e Fourier, passando por Victor Considérant e o seu Principes du socialisme, Manifeste de la Démocratie du XIX Siécle, apontado por Kropotkin, como a referência fundamental para Marx e Engels escreverem o Manifesto comunista.2 O massacre da Comuna de Paris abriu as portas para que no combate entre as forças socialistas Marx e Engels tomassem a vanguarda revolucionária diante da ampliação da influência das teses reformistas. De uma coisa Marx assim como Bakunin estavam convencidos: apenas a revolução seria capaz de gerar a reviravolta justa e necessária da desigualdade para a igualdade social. O pacifismo de Proudhon, a longínqua referência libertária de Willian Godwin, do final do século XVIII, e o desassossego gerado pelo O único e sua propriedade, de Max Stirner, estavam ultrapassados. Tão ultrapassados que Kropotkin, apesar de encontrar referências ao anarquismo em Godwin, Stirner e principalmente Proudhon, não hesitará em definir Bakunin como o verdadeiro criador do anarquismo. De uma coisa o discurso socialista de anarquistas e comunistas tinha se convencido: a guinada revolucionária era inevitável.

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Bakunin procurava se distinguir de Marx, reforçando suas procedências intelectuais em Proudhon, notório adversário de Marx, afirmando-se anti-comunista, pois comunismo sempre fôra visto por Proudhon — de O que é a propriedade? a O princípio federativo — como

o regime mais autoritário da história. O anti-comunismo de Bakunin tinha um nome: coletivismo. Ainda que o termo possa ser remetido aos estudos de Constantin Pecquer e François Vidal, de 1848, a penetração das idéias coletivistas na Internacional diziam respeito à propriedade coletiva, supressão da moeda, o mutualismo proudhoniano com base no bônus trabalho tratado pelo Banco do Povo. Era um coletivismo fundado na federação de comunas, em oposição ao centralismo, ao estatismo. Mutualismo econômico e federalismo político eram as duas faces indissolúveis do regime de igualdade, suplantando o da propriedade e o da comunidade, havendo poucas variações de Proudhon a Bakunin, ainda que este último não deixasse de expressar suas simpatias pela crítica da economia política elaborada por Karl Marx3.

Contudo, a designação coletivista aos poucos foi cedendo vez à de comunista anarquista, defendida por Kropotkin, ou mesmo de comunista libertário, a partir de sua formulação pelo anarquismo científico em oposição ao socialismo científico de Marx. A designação coletivista acabou suplantada; entretanto, manteve-se usual somente entre os espanhóis até a Guerra Civil.

A reviravolta, então, da intensa influência dos anarquistas, para os efeitos dos embates com os marxistas, a tensão entre federalistas e centralistas, no interior das lutas operárias do século XIX e início do XX, expressa um grande instante histórico. Foi o limiar da revolução, como diria Proudhon, que se consolou nos limites de um outro progresso. Para o anarquista francês, da mesma maneira que a democracia é a vontade do povo di

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ante da vontade do rei, colocada pela Revolução Francesa, uma revolução socialista centralista seria a outra face do progresso que expressaria a passagem da vontade do povo à vontade do proletariado? Com a Revolução Francesa, em nome do povo, efetivou-se o domínio burguês; com a revolução socialista dirigida pelo partido, em nome do proletariado, se efetiva o domínio da burocracia. Estamos diante de uma idéia de progresso linear suplantada pelo fato histórico. A revolução socialista seria, como foi, um retrocesso.

Desta reviravolta se expandiu um dos mais eminentes confrontos entre políticas da verdade no interior do discurso socialista. Ainda que alguns se afirmem revolucionários, duas coisas chamam a atenção. No caso dos anarquistas a oscilação entre o pacifismo e o revolucionarismo ocorre no interior de uma política conciliadora articulada entre as forças por meio da noção de grupos de afinidade. No caso do marxismo, o revolucionário e o pacifista viverão conflitos abertos e de guerra na intimidade da mesma matriz.

É das teses desenvolvidas por Marx que aparece, progride e sedimenta-se o reformismo socialista, tão explicitamente centralista e devedor da democracia burguesa. Se os anarquistas pretendem garantir a diversidade com a noção de grupos de afinidades, os herdeiros do centralismo exigem, pela via autoritária ou democrático-parlamentar, o predomínio, o comando único, o extermínio dos oponentes de fora de seu próprio discurso ou mesmo de suas ramificações. Aqui, está em jogo, a uniformização. A pacífica democracia é o meio para a supressão futura de qualquer adversário, após a conclusão da socialização dos meios de produção. Trata- se de um uso utilitário da democracia, mas que não se esgota nesta prática. Entre os revolucionários, Rosa Luxemburg chamou a atenção, em seu ensaio Revolução russa, de 1919, para a importância da democracia

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como forma de educação política do proletariado urbano e do campesinato durante a revolução. Alertou os bolchevistas para o perigo do totalitarismo, da ditadura do proletariado transformar-se em ditadura sobre o proletariado, mas continuou sendo considerada por Lenin como apenas uma anarquista. Teve suas idéias e críticas arquivadas até a segunda metade do século XX, depois da morte de Stalin e do notório massacre das comunas húngaras, em 1954.

Anarquistas e comunistas se opõem no interior do discurso socialista, com tensão semelhante à que move as forças nos interstícios do marxismo. Em ambos os casos, para os comunistas, só há vitória com a aniquilação dos adversários tomados como inimigos de guerra, dentro e fora.

Seria, entretanto, satisfatório compreender que o debate entre anarquistas se encerra na convivência pacífica fundada na noção de grupos de afinidades? Há tensão, também, na vida dos anarquistas e muitas vezes ela faz aparecer donos e sentinelas, fazendo crer que os adversários jamais se tornarão inimigos, que entre eles não há inimizades.

3. Os anarquistas também nasceram utópicos Não há duvidas que o marxista é aquele que precisa ser localizado, depende do partido da revolução, conspira e necessita de sociedade secreta com respeito ao comando hierárquico e obediência dos adeptos e subordinados. Os anarquistas, segundo Jean Maitron4, são fluidos, de difícil sistematização, movimentando-se constantemente.

George Woodcock, caracteriza o anarquista como o “indivíduo que se propõe a criar uma sociedade sem Estado”, uma sociedade como “rede de relações voluntárias”, fundada na “autodisciplina e cooperação volun

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tária”5. O anarquismo é um movimento, não é um partido. Para o criador do termo, Pierre-Joseph Proudhon, “ser governado é ser cuidado, inspecionado, dirigido, legislado, regulamentado, identificado, doutrinado, aconselhado, controlado, avaliado, pesado, censurado, mandado por homens que não têm nem o direito, nem os conhecimentos, nem valor para fazê-lo”6. O anarquista é um crítico da sociedade e criador de uma nova sociedade. Ele, como expôs William Godwin, no Justiça política, sem nomear-se anarquista, procura a justiça abolindo o Estado, a propriedade e o tribunal. Ao inventar uma nova sociedade no presente, educa a si mesmo, parceiros e filhos de maneira anti-autoritária, suprimindo a herança material e cultural ocidental da autoridade centralizada e de seus poderes com base no medo e no castigo.

O anarquista quer uma outra sociedade, sem castigo, medo, propriedade privada, tribunal, hierarquia e procura fazê-la cotidianamente. Não quer saber de idéias, mas de fatos gerados no dia a dia. Quer liberdade, ousadia, mutualismo, federalismo. A sociedade contra

o Estado é seu mote. É preciso, inclusive, como lembrava Kropotkin, estar atento para com as leis da natureza, e como alertava Bakunin, desconfiar dos homens de ciência, os novos sacerdotes. Segundo Kropotkin a cooperação no interior da espécie antecede à competição ou à moral institucional da evolução pela força dos mais fortes. De Godwin a Kropotkin, do final do século XVIII ao início do XX, os anarquistas acreditam ser pela moral que são criadas as instituições autoritárias, atrofiando a cooperação, a ajuda mútua. As instituições desmembram guerras e lutas violentas ao divulgarem pretender a paz diante de uma natureza violenta. Os anarquistas recusam centralidades, vivem a vida a partir de associações dis

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tanciadas do Estado, mas não deixam de estar alertas para as forças que compõem o Estado.

Para os anarquistas a máquina estatal, burocrática, administrativa e poderosa, com funcionamento regular, é um grande empecilho à liberdade. Uma assembléia convocada diante do extraordinário ou das exigências circunstanciais é suficiente. Ela fortalece a descentralização por não possuir local fixo, representantes com mandatos por prazo determinado e reuniões regulares. Falar anarquismo, coletivismo, mutualismo, federalismo, é falar de generosidade, de reciprocidade e de crítica à administração das coisas.

Vida descentralizada, a partir da moradia, trabalho, amores, sem vontade de maioria — o que implica algo oposto à minoria como vontade de ser maioria ou como designação de confinamento para a maioria quantitativa — mas como devir minoria em processo. Vida apartada da unanimidade e que não prescinde do consenso. Está em discussão a própria discussão, a conversação,

o desmembramento dos argumentos para que an-arquia (ausência de governo) seja viável, real, atuante e liberadora. Os anarquistas jamais deixaram de se ver como utópicos. Sua utopia de sociedade igualitária e diversificada é a de uma sociedade que jamais haverá, pois sua existência seria a negação da própria anarquia. Do ponto de vista de Proudhon, trata-se de um percurso para o infinito libertário, repleto de novos conflitos e soluções temporárias. A utopia provoca um deslizamento intranqüilo, mas sem reversão. Faz emergir o inevitável por meio da demonstração científica, como argumentaram Kropotkin e Élisée Reclus.

A utopia anarquista pode ser reconfortante quando alardeia, pela analítica ou ciência libertária, a força da crítica contundente e atual à autoridade centralizada. Isso, por si só, amplia a idéia-força de afinidade. Mas é

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também o anarquismo em repouso. A dinâmica é dada pelo próprio movimento anarquista e é dentro dele que cada um deve resguardar-se do determinismo científico. Este gera a imobilidade e a descrença na utopia7. Esta é a trava que intercepta o voluntarismo anarquista, alertava Errico Malatesta, pois anarquismo é querer sobre saber. Serenado pela ciência, o anarquismo vira doutrina e jaz. Em instantes, em nome do movimento, cientificamente, herdeiros e sentinelas ocupam o terreiro. Este é um dos efeitos aterradores da crença na utopia e na transformação da análise em teoria, em doutrina. Segundo Proudhon os elementos da série não estão em descanso, na história, nem pelo artifício conceitual das teorias. Mas não há como negar que a utopia, na análise ou na teoria, consola os agentes no percurso. Se Bakunin estava correto, seguindo Proudhon, ao afirmar que nada é fixo, constante e imutável, não haverá ciência capaz de comandar o movimento e este, por sua vez, jamais se deixará apanhar por herdeiros ou sentinelas, estejam eles na vanguarda ou na retaguarda. Revolucionários e pacificistas anarquistas inventam suas utopias, seus consolos, seus incômodos, diante das desigualdades.

Max Stirner, avesso à utopia, à justaposição do Homem a Deus — apresentado pelo iluminismo como superação e afirmação da humanidade —, considera a luta da sociedade contra o Estado sendo apenas produto de uma nova inversão de sinais. Se Proudhon nos alertava diante dos perigos de um anarquismo científico, Stirner oferece um sobreaviso. Em lugar da ditadura do Estado, a proposição de Proudhon remete à ditadura da sociedade sobre o indivíduo, à crença na autonomia do indivíduo pela igualdade coletiva, uma igualdade idealista, transcendental, própria da autoridade e das utopias. Não há horizonte, nem utopia a ser construída ou perseguida. O anarquismo seria a faceta mais radical

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do humanismo. Mais uma doutrina, outra utopia, nova ilusão com cara de verdade verdadeira. Stirner, antes de ser classificado como um anarquista individualista, solipsista, São Max, etc. e tal, não se presta a tipologias. Se há algum proveito em tê-lo entre os anarquistas é pela sua atitude intolerável diante de qualquer pacificação, a de ser um anarquista no anarquismo8. Se Proudhon é o desestabilizador do revolucionarismo cientificista que sucedeu sua analítica serial pacifista, Stirner é o incômodo para os anarquistas, desestabilizando a monotonia que contemplam para si com o refúgio na noção de grupos de afinidade.

4. Do método serial ao anarquismo científico Proudhon, sabemos, não nasceu em família abastada. À maneira de muitos jovens de hoje em dia, teve de recorrer ao auxílio de bolsas de estudos, muitas vezes trabalhando ao mesmo tempo. Proudhon sempre duvidou da filosofia de Kant, que subordina o sujeito empírico ao sujeito transcendente. Para ele, a Idéia continha o universal e contra este era preciso rebelar-se. Sabia desde criança o que eram as religiões e aprendera o que era ser governado pela Idéia e rebelar-se contra ela. Jovem ainda, avistava com temor o que poderia ser o mundo comandado por uma ciência universal. Contra o transcendente de qualquer natureza, Proudhon afirmava a existência presente, o fato, a negação de um pensamento ou governo pelo alto. Nem Deus, nem Ciência: ambas são formas de conhecer que procuram governar as consciências.

De Proudhon vem não só a expressão moderna anarquia. Ele também procurou designar por anarquia, um regime de liberdade como superação das injustiças da propriedade, assim como esta procurou sanar as injustiças do regime da comunidade. Proudhon pouca aten

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ção deu aos aspectos históricos do capitalismo, mesmo porque se preocupava com as características essenciais da propriedade. Essência que não supunha profundidade da verdade de onde decorreria uma síntese. Sua dialética não tinha parentesco com a de Hegel e muito menos com a de Marx. Ele pretendia pensar a série propriedade encontrando seu esgotamento.

Anarquia é ordem de outra grandeza. Supõe abolição da propriedade que rouba a força coletiva, da religião que desvia a consciência e do Estado que dirige as forças sociais. A sociedade é caracterizada por ele sendo composta de forças em luta. A vida contra as desigualdades e injustiças depende da luta contra o Estado, lugar privilegiado para a conservação da hierarquia, no passado longínquo romano, no passado recente feudal, no presente capitalista. As forças livres investem em abolição simultânea de Estado, religião e propriedade e não em ocupação do Estado e transformação da propriedade. Dizer propriedade é sempre falar de roubo praticado contra as forças de outro. Para ele, propriedade socialista nada mais é do que propriedade estatal, outra forma do roubo.

A analítica serial elaborada como método por Proudhon procura acolher os fatos, exige observação e investe na antítese da unidade. Evita a síntese, o absoluto e a finalidade. Diante da ciência universal fundada em substância e causa, opõe o fato, as forças em luta. A maioridade da humanidade, tão cantada pelos kantianos quanto à emancipação humana definitiva esperada pelos marxistas, é apenas uma nova forma de perpetuar a escravização. Em nome desta racionalidade, esperam que sejamos comandados pelas ciências, as mesmas que em nome do particular determinam universais. Desta maneira, lá onde as teorias sobre os homens contemplam pensamentos hierárquicos, na magnitude das

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melhores intenções, havendo hierarquia, não cessarão impedimentos à liberdade.

De outra sorte, o anarquismo científico de Kropotkin, conectado a Élisée Reclus e inspirado por Bakunin, sustenta um duplo desfecho. De um lado, expressa a luta no campo científico com o socialismo de Marx, ainda que esbarrando na mesma determinação finalista. De outro lado, interpõe diante da análise serial causas que afirmam a inevitabilidade da revolução violenta. Assim sendo, por meio das leis da natureza identificadas pela ciência, papel a ela confiado desde Bakunin, cabe ao pensamento científico investir na afirmação da ajuda mútua interceptada pela moral. De maneira análoga, William Godwin, escorado no utilitarismo inglês, chegou à mesma conclusão, potencializando produtividades como forma de evitar a revolução. Para ele, revolução era sinônimo de autoritarismo.

Kropotkin, em especial, orientado pelo método indutivo-dedutivo, na esteira de Darwin, procurou mostrar a interceptação da moral que afirma a competitividade e a superioridade dos mais fortes por meio da revolução. Diante de um certo relativismo de Bakunin em relação ao saber científico, que exigia a expressão de opiniões livres entre os envolvidos para a tomada de decisão, a ciência sob o comando do anarquismo científico de Kropotkin assume o plano central. A verdade é científica, o anarquismo também é científico e Bakunin passa a ser a referência principal, como justificativa ao revolucionarismo, o verdadeiro anarquismo.

Se até os anos 40 do século XIX o discurso socialista foi se afirmando pacifista, após a ruptura Proudhon/ Marx ampliou-se a possibilidade revolucionária, ainda que as críticas referentes aos efeitos da Revolução Francesa não deixassem de ser sublinhadas. Da mesma maneira, os desdobramentos da Revolução Russa não

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deixaram de expor problemas semelhantes durante a aproximação e depois distanciamento entre bolchevistas e mahknovistas. Em nome da revolução as forças tendem a somar. Contudo, lembrava Maquiavel, toda conquista depende das condições para a sua conservação. E neste ponto, numa revolução, não há lugar para forças militares e administrativas menos fortes, como não há democracia que se sustente. Uma revolução violenta expõe forças em guerra, exige aniquilamento sob a forma de morte, encarceramentos ou banimentos. Na Rússia diante de Lenin e Trotski, a Mahkno restou o exílio.

O anarquismo científico pretende o fim da história com igualdade e pacificação, da mesma maneira que o socialismo científico. Ledo engano. A anarquista Emma Goldman9 chamava a atenção para o fato que os meios não são os mesmos para finalidade semelhante. Segundo ela, meios autoritários não servem a fins libertários. A distinção então aparece. O anarquismo científico, ao investir em direção à abolição do Estado aos moldes dos sovietes, com ênfase nas comunas, distingue-se, enquanto meios, do método serial de Proudhon.

Sob este ponto específico a proposta federativa de Proudhon e de Bakunin são similares e orientam a continuidade da Anarquia, por meio do mutualismo econômico. A liberdade se faz socialmente a partir do momento em que a posse individual for a condição da vida social, com direito de ocupação a todos, abolição da moeda e da administração. Daqui para frente os anarquismos convergem, eis suas afinidades. Contudo, até este ponto não há tanta afinidade assim.

As distinções são necessárias para que fiquem claros os distanciamentos no interior do discurso anarquista. Não seria difícil associar semelhanças entre o socialismo científico e o anarquismo científico. As considerações de Emma Goldman, como vimos, são neces

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sárias mas não suficientes. Elas apenas alertam para o sentido da aliança entre comunistas e coletivistas na Revolução Russa e para o desfecho trágico dos anarquistas. Mas a pergunta por ela formulada não cessará de ecoar: meios revolucionários levam a uma finalidade que não seja autoritária? Segundo Frank Harrison10, a crítica à economia política no anarquismo, desde Bakunin, escorada na teoria marxista, fortalece o revolucionarismo. Desta forma socialismo científico e anarquismo científico se apartam apenas no plano político com as idas e vindas científicas capazes de afirmar a predominância de uma sobre a outra, segundo a ocupação ou não do Estado. Em linhas gerais, o saldo desta política aponta para um socialismo libertário, como base científica que consagra ao mesmo tempo a crítica da economia política de Marx e a abolição do Estado de Bakunin.

Em nome do movimento social, do anarquismo como movimento, quer gostem ou não, sob tanta cientificidade estamos diante do mais conceituado academicismo. A massa, guardadas as proporções, permanecem dispostas como tal pela consciência superior, condutora e iluminada formuladora da razão científica. Bakunin estava certo ao pedir para que se desconfiasse dos novos sacerdotes; ele só esqueceu de dizer que se devia desconfiar inclusive dos sentinelas disfarçados de satã.

Os anarquismos, portanto, não vivem e convivem com afinidades. Eles se aproximam segundo a crítica à sociedade fundada na propriedade, à cultura autoritária, aos socialismos estatistas. Mas se distanciam segundo as maneiras de superar a sociedade capitalista e socialista divididos em pacifistas e revolucionários, analistas e teóricos, espontaneítas e cientistas, guardiães das escrituras e iconoclastas, acadêmicos e inventores de vida.

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Heterotopias anarquistas

Nos anarquismos há, também, aqueles que investem na conservação da vida e os que desejam sua expansão. Não há lugar específico para o anarquista. Kropotkin estava redondamente equivocado quando afirmou que na academia não se produzia anarquismo. Parece que ele não reparou na imagem que projetava dele próprio no espelho. Pelo contrário, somente pode haver anarquismos onde não há estado civil para o acolher. O anarquista não teme, mas também não acolhe os bem intencionados. Anarquistas inventam existências, provocam enfrentamentos, desalojam os estabelecidos. Não há como domesticá-los com ciência, polícia ou afinidades.

Onde há anarquismo há descontinuidades, na história dos homens e entre os próprios libertários. Eles não são capturados pela ciência (de Proudhon a Stirner), não reduzem suas utopias à substituição do Estado pela sociedade (de Stirner contra Proudhon), não dependem de análise ou ciência (de Proudhon a Kropotkin), não são acadêmicos ou anti-acadêmicos. Eles são isso e aquilo. Acontecem, conduzem desejos, realizam prazer, fazem tremer as hierarquias quando não as demolem. São mais que palavras ou elogios a atos. São acontecimentos inventados por forças em luta. Libertários, sim, uniformes não; nem gigantes, nem anões.

Os anarquistas entre si são adversários, sim, em diversos momentos. Mas não são inimigos de guerra. Os inimigos em seu interior são seus melhores amigos, os lançam para fora, abalam a endogamia. Não toleram guardiães ou herdeiros porque eles, bem intencionados sentinelas ou policiais transvestidos, nada mais são do que forças reativas.

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5. Associar Os anarquismos não temem a crítica à democracia representativa. Ela investe no seqüestro da vontade em nome do representante, de maneira análoga ao sistema penal. Parlamento e tribunal são partes indissociáveis, resguardados pela constituição, e no limite pelo poder militar do próprio Estado. É preciso seguir as tábuas da verdade e por isso é a democracia moderna religião do rebanho, como não cansaram de afirmar os socialistas de Proudhon a Marx e os filósofos contundentes desde Stirner a Nietzsche.

A democracia despreza a pessoa. É uma arbitrariedade constitucional afirmava Proudhon, e pela teoria da soberania leva à destruição do próprio povo. Se o povo fosse mesmo soberano não haveria governantes e governados. Povo, massa e indivíduo são conceitos encarceradores no interior de teorias que os distribuem em espaços disciplinares, do partido da revolução ao partido da ordem, da fábrica à escola, para produzirem e obedecerem, em espaços disciplinares para conspirarem e resistirem.

Para Bakunin a democracia é uma maneira de perpetuar a aristocracia governamental. Proudhon, por sua vez, não se cansava de afirmar que diante do voto a única atitude condizente de um libertário era o absenteísmo11. Contudo, eles também sabiam que a democracia pouco a pouco eleva o povo à vida pública. É um regime de progresso diante da vontade do rei e mais livre do que qualquer comunismo por se fundar na separação de poderes. A democracia propicia descobertas a cada um, minuciosas pequenas coisas que vão sendo pouco a pouco compreendidas: como o fato da corrupção administrativa ser inerente à política, à hierarquia, à burocracia e ao Estado; como a continuidade, na história, do regime da propriedade funciona e depende do Esta

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do e das hierarquias; como a vida do Estado depende da obediência, da morte da vontade das pessoas livres, porque dos escravos cada proprietário e o próprio Estado se livra quando bem lhe convier; como a representação política garante a propriedade, a burocracia e o universal em nome dos interesses particulares; como a verdade desinteressada nada mais é do que expressão do interesse. É sob a democracia que o povo tem condições de ampliar a série liberdade. Assim como passamos do regime monárquico, da vontade do soberano, para o das constituições, passaremos ao das federações, abolindo o Estado pela via das associações livres.

Para os anarquistas a democracia é mais valiosa do que o socialismo autoritário. Neste regime, o desprezo pelo Eu da democracia representativa se transforma em supressão do Eu. É o regime mais autoritário, segundo Proudhon, em que o poder é indiviso, a centralização absorvente, a destruição do pensamento individual iminente e não sobrevive sem polícia inquisitorial.

Anarquia é solidariedade, reciprocidade, generosidade. É também desobediência, desconfiança da tirania e rebeldia. Anarquismo é sempre tensão entre individualismo e coletivismo, entre mutualismo e federalismo. Os anarquismos, portanto, provocam coexistências.

Os anarquistas se reúnem em assembléias, como vimos, que não têm lugar fixo, mandatos ou reuniões regulares. São convocadas segundo as necessidades do momento e envolvem pessoas interessadas na decisão, supondo que cada caso é um caso específico, em defesa da pessoa, da associação, da federação. É preciso haver

o anarquista, a associação, a federação para saber de onde se extraem os princípios, não há a priori. Anarquia é invenção da vida como educação, desassossego aos costumes, às instituições, às certezas. Os anarquismos são incômodos, rebeldias. Se a sociedade anarquista é uma contradição, um alvo que seria a ne

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gação do próprio anarquismo, a vida por sua vez se en- contra nas associações que incomodam ao mesmo tempo, sociedade e Estado. É preciso rebelar-se para inventar a associação tanto quanto não evitar a rebeldia em seu interior. Por isso mesmo é que para o anarquista o direito de secessão é o mais importante.

Educação de pessoas e crianças com ênfase na solidariedade, reciprocidade, generosidade, desobediência, desconfiança da tirania e na rebeldia, não pode atuar com base numa autonomia possível do indivíduo a ser conquistada. Só pode falar e inventar pessoas em cada pessoa, nos diversos lugares, extensões e posicionamentos, condutores de desejos, realizadores de prazeres, demolindo hierarquias e afastando-se, enfim, da assembléia centralizada em função da descentralização e da federação.

Não será tão cedo que os anarquistas deixarão de ouvir que são arruaceiros.

No século XIX a palavra anarquia foi sendo identificada com desordem e terrorismo, maneiras das políticas de centralidade e de Estado procurarem anular ou dissipar o anarquismo. Primeiro o próprio Proudhon substituíu anarquia por federalismo, em 1863. Mais tarde Sébastien Faure, segundo Guérin 12, tomou a palavra criada por Joseph Déjacque, em 1858, e criou seu periódico Le libertaire. Era um tempo em que falar anarquia era explicitar que o governo é desordem. Assim, libertário e anarquista passaram a designar a mesma pessoa13.

Os tempos da IWA, opuseram os anarquistas como coletivistas a comunistas. Mais tarde com o anarquismo científico passou-se a opor socialismo libertário ou comunista libertário à socialista autoritário ou comunista. Então, o anarquista que tinha virado federalista no interior da mesma obra de Proudhon, agora era coletivista, depois será socialista ou comunista

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libertário. Não tardou para que também viesse a ser terrorista, ao final do século XIX, expressão de isolamento e contundência diante do domínio social-democrata parlamentar. Anos mais tarde, foi Kropotkin quem instalou novamente o querer anarquista, alertando para o papel dos sindicatos e a mobilização nos moldes da Internacional. Encontrou em Fernand Pelloutier, em artigo publicado em 1895, no Les Temps Noveaux, a reflexão mobilizadora que faltava, rearticulando os anarquistas aos trabalhadores. Não demorou muito para que o anarquista passasse a ser visto como anarco-sindicalista. E foi daqui que proveio grande parte do anarquismo brasileiro.

Os anarquistas vivem em associações, como pessoas livres para delas saírem quando bem entenderem, inventando formas de vida livre, na casa, no amor, na amizade, com os filhos, os amigos, os que chegam e os que vão. Os anarquismos expressam existências, vidas e suas próprias obras dissolvendo lazer e trabalho, privado e público. O anarquista não vive da utopia, inventa heterotopias.

6. Palavra O anarquista no século passado era visto como um criminoso. Estava inscrito no regime da economia da medida, que correspondia a uma pena com objetivo de fazer cessar o crime. Definia-se uma nova postura perante o direito clássico. O criminoso não era mais o indivíduo monstruoso como manifestação natural da antinatureza. A punição não era mais a vingança do soberano como excesso de punição para o excesso de crime. Era “a manifestação ritual do poder infinito de punir”14. No século XIX, mas já no XVIII, desde a Revolução Francesa e a reversão jacobina, a suspeita da monstruosidade passou a deslizar para qualquer indi

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víduo. A nova legislação e a teoria penal, segundo Michel Foucault, girarão entorno da razão do crime ou do interesse do crime como razão do crime: “o crime tem uma natureza”15. É preciso reconstruir a história natural do criminoso como tal. Ele é o indivíduo que rompe o contrato; é o egoísta contrário ao interesse de todos; é um monstro; é a doença no corpo social. O criminoso pode ser um doente. Como tal, ele será julgado, mas não sem antes ser avaliado, apreciado e medido em termos do normal e do patológico. É a aparição de um novo monstro, o monstro moral.

Está posta a condição teórica e legal para dar conta do criminoso político ou monstro político, visto como um déspota. É aquele que rompeu o contrato original e que portanto regressa ao estado de natureza. É o hobbesianismo revolucionário na revolução francesa ou a pertinência da razão do soberano16. Apesar da Revolução Francesa ter identificado o monstro moral com o rei tirano, aquele que infringe o pacto fundamental, não se abandonou o esquadrinhamento do assassino e do estuprador que infringem as leis da natureza. A distinção, agora, é que o rei tirano é identificado como inimigo público.

Depois das revoluções de 1848 e da Comuna de Paris, o rei e o revolucionário aparecerão lado a lado como inimigos. Foucault irá apresentar este último como a imagem invertida do monarca sanguinário, figura exposta inicialmente pela literatura monarquista e católica, do indivíduo que expressa a natureza antinatural do criminoso.

O rei era o monstro que rompia o pacto de cima para baixo. Na literatura podia ser o príncipe, o senhor, o mau padre. Era um monstro incestuoso. O revolucionário seria aquele que rompe o pacto de baixo para cima. Na literatura aparece como o bandido, o homem da flo

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resta, o bruto. É o monstro antropófago, o canibal dos famintos.

Foi depois destas revoluções que se passou a utilizar como discriminantes a psiquiatria e a psicologia. Tomemos ao lado de Foucault o exemplo de C. Lombroso, pesquisador republicano, anticlerical, positivista e nacionalista. Ele procurava estabelecer a distinção entre movimentos com os quais se identificava dos que não se identificava e que desqualificava. Para ele a antropologia dava os meios para diferenciar a verdadeira revolução e os verdadeiros revolucionários. Dentre estes destacavamse Mazzini, Paoli, Garibaldi, Marx, “que tinham uma fisionomia maravilhosamente harmoniosa”. Os anarquistas de Paris e Turim, por ele pesquisados, entretanto, eram ativistas de um movimento “que merece ser histórica e politicamente desqualificado”17. O monstro político chama-se anarquista. É o sujeito perigoso do qual a sociedade deverá se libertar, não só confinando, mas também desqualificando. De certa maneira trata-se da repetição do processo movido contra as bruxas no final da Idade Média. Primeiro, combatia-se matando, queimando, supliciando. Depois se contrapunha com os efeitos científicos uma verdade superior. Não era mais preciso matar, apenas desqualificar. Neste intenso mundo de discriminações, identificações, qualificações e defesa do contrato com base na cidadania e ampliação de direitos, tudo o que não for expressão do contrato será criminoso, quando não monstruoso.

O socialismo autoritário, ao não abolir o direito, nada mais fez, na Rússia, na China ou em Cuba que redimensionar os monstros; essa é uma necessidade moderna do Estado e da soberania popular ou proletária, representado por aquele escolhido pelo voto ou pelos preferidos do partido da revolução. Não estando abolida a representação, não estará abolido o tribunal,

o contrato e o monstro18. 2 2002

O anarquista pode ser visto de outro ângulo. Tomemos o mesmo Michel Foucault, agora em um pequeno artigo escrito em 1967, chamado “Outros espaços”19, elaborado logo após a publicação, no ano anterior, de As palavras e as coisas, em que na introdução ele estabelece a controvertida distinção entre utopia e heterotopia.

Em poucas palavras utopia é consolo, uma superfície lisa. Heterotopia é o estancar das palavras, é a abolição do lirismo nas frases, é o que faz estremecer20. Do ponto de vista do autor, diante da calma o desassossego, da estabilidade o incômodo, do sonho o sono. Duas coisas que se opõem, mas que não se justificam pela negação. Há um espaço, mostrará Foucault neste pequeno artigo, onde se experimenta o mundo; outros espaços, em que um conjunto de relações definem posiocionamentos. Foucault está falando daqueles espaços que se encontram no meio, como o espelho que expressa um posicionamento sem lugar real (a minha imagem no espelho) e um contra-posicionamento, uma espécie de utopia efetivamente realizada. Estão ao mesmo tempo os míticos irreal e ideal contrapostos ao real representado, contestado, invertido, lugar fora de todos os lugares, real e virtual simultâneos.

Foucault mostra diversas heterotopias como história do espaço localizado (Idade Média), extenso e infinito (Renascimento) e de posicionamento (o atual). Diante da dessacralização do tempo, o espaço ainda não o foi, permanecendo as oposições intocáveis como público e privado, familiar e social, cultural e útil, lazer e trabalho. Ele se interessa pelo espaço de fora, aquele espaço que nos atrai para fora de nós mesmos, um espaço heterogêneo que nos corrói, sulca. O que contradiz o posicionamento esperado são justamente os espaços de utopias e heterotopias, estes outros lugares onde ocorre a “contestação simultaneamente mítica e real do espaço em que vivemos”21.

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Da mesma maneira como Foucault esteve atento aos anarquistas, como monstros morais da nossa sociedade, é possível vê-los também no interior desta realização heterotópica. O anarquismo como heterotopia é expansão da vida. É invenção de lugares, de existências, demandando crítica à sociedade e gestação da nova sociedade.

Dentre as diversas heterotopias descritas por Foucault neste texto — e que mais tarde poderá ser acrescentada a da estética da existência decorrente das últimas pesquisas sobre o cuidado de si, vida sem estar apartada da sociedade e do Estado na qual pessoas se associam com base na razão do outro —, estão as heterotopias de crise das sociedades primitivas e as de desvios da nossa sociedade. As de desvios em relação ao espaço restante têm uma função de ilusão (que denuncia como mais ilusório qualquer espaço real, como os antigos bordéis) ou de compensação (criando espaço real, perfeito, meticuloso e arrumado, enquanto o nos- so é desarrumado, maldisposto e confuso, como as colônias puritanas ou as jesuíticas na América do Sul). As associações anarquistas são heterotopias, mas não de compensação.

As associações voltadas para a vida como trabalho, arte e educação, investem em trabalho com base na ajuda mútua, autogestão em oposição à heterogestão, ocupando espaços por meio de atividades de lazer, arte e educação. É uma reinvenção da escola, o lado de fora da escola estatal, a escola moderna, para citarmos um exemplo, inspirada na experiência de Francisco Ferrer y Guardia, fuzilado pelo Estado espanhol por subversão, e com repercussões no Brasil, do início do século

XX. A escola moderna não era dirigida pela disciplina visando obediência, distribuindo as crianças segundo idade e sexo, fomentando credos e conhecimentos diri

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gidos para governar ou ser governado. Nela adultos e crianças, analfabetos de ambos os sexos, recebiam instruções mínimas e ao mesmo tempo tinham atenções voltadas para seus talentos. Era a dessacralização do espaço de educação pois não se limitava à instrução, obediência à hierarquia e domínio de conhecimento alheio. Escola como educação e instrução se apresentava como maneira complementar da vida anarquista, forma de revelar e propagandear a utopia anarquista, tanto quanto o teatro (escrito, representado, produzido por pessoas em múltiplas tarefas, algo semelhante ao que mais tarde o Living Theater virá a propor e realizar), cooperativas, formas de ajuda mútua diante de greves. O anarquista inventa espaços dessacralizados segundo sua luta enquanto sujeito da sociedade contra o Estado.

Os anarquistas inventam espaços de contraposicionamentos. Diante da escola pública como utopia dos socialistas autoritários como uniformização do ensino, os anarquistas realizam o lado de fora da escola pública ou estatal. Ela é propaganda, efeito da crítica à sociedade e meio para projetar a utopia. Geralmente dizimada pela ação da força do Estado a escola moderna foi parte da heterotopia anarquista, uma utopia efetivamente realizada. E é isso que exigem os anarquismos. Invenção diante da realidade imediata, dessacralização da vida pública e de seus escritos, aquilo que abala, funda e desafia sem o compromisso com a eternidade. Não há lugar para sentinelas.

Para os anarquistas está em jogo o poder da palavra que exige ordem, obediência e que domina. Segundo Pierre Clastres, “toda tomada de poder é também uma aquisição da palavra”22, e nas sociedades de Estado a palavra é direito de poder. E de tanto poder, deve-se acrescentar que o Estado se transforma em proprietário da língua, além de ter o monopólio legítimo da coa

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Heterotopias anarquistas

ção física sob qualquer regime. Nas sociedades primitivas há o dever da palavra por parte do chefe. O curioso é que este dever vem esvaziado de poder, funciona como heterotopia da crise, lugar sagrado, privilegiado, reservado para os estados de crise. O chefe precisa mostrar que tem domínio sobre as palavras: “falar é para o chefe uma obrigação imperativa, a tribo quer ouvi-lo: um chefe silencioso não é mais um chefe” 23. Não só é importante ouvir e não escutar a palavra do chefe como ouvi-la fingindo desatenção. O chefe celebra as normas da vida tradicional, sua fala é vazia. Se num momento ele pretender ter sua palavra seguida pelos demais será abandonado. A sociedade primitiva é a recusa de um poder separado: o dever da palavra do chefe é a garantia que ele não se torne homem de poder.

Da mesma maneira, para os anarquistas, os sentinelas são aqueles que se arvoram em homens de poder, que têm o direito da palavra, que sabem e seguem doutrinas. Dominam a sintaxe. Precisam ser arruinados, dessacralizados. Os anarquismos vivem pela expansão da vida. Um dia são anarquistas, outro libertários, ontem terroristas, hoje uma nova surpresa. Respondem ao domínio do Estado, aos soberanos disseminados pela sociedade, procriam subversões e realizam suas utopias por meio de construção e desconstrução de vidas. Abominam os donos das palavras, mas sabem de seus poderes e deles se precavêm e inventam heterotopias.

Os anarquismos são heterotopias. Abalam a sociedade e a política. E são abalados do lado de fora pela existência stirneriana. Não basta a luta da sociedade contra o Estado. É preciso mais que zona de conflito gerada por utopias e heterotopias modernas. Diante da criação, a invenção.

Os anarquismos são heterotopias de crise, estão lá na fronteira com a sociedade primitiva, sociedade contra o Estado. Da mesma maneira, diante da sociedade,

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como a nossa, demolem heterotopias de ilusão e compensação. Fazem existir, e aqui soa a diferença, não mais a imagem paradisíaca dos puritanos ou dos jesuítas, mas das próprias pessoas.

O único dever que se tem para com a palavra é fazêla ouvir. É criar o ruído na escuta e arruiná-la. A cada pronunciamento aos desatentos integrantes da associação se reitera a impossibilidade da chefia, a nocividade dos sentinelas. A criança deixa de ser o precioso objeto de arte no qual a sociedade investe ordem, respeito e obediência. Ela passa a ser vida em expansão, vida como obra de arte.

Notas

1 Em especial, Karl Marx & Frierich Engels. O anarquismo. São Paulo, Ediora Acadêmica, 1987.

2 “Com efeito, basta compulsar os dois ‘Manifestos’ para se ter a prova inconcussa de que não só as idéias econômicas, mas a própria contextura, foram extraídas por Marx e Engels da obra de Victor Considérant. Quanto ao programa de ação prática que se lê no ‘Manifesto comunista’ de Marx e Engels, é ele o mesmo, como demonstrou o professor G. Adler na edição crítica desta obra, do programa das organizações secretas comunistas francesas e alemãs que continuaram a obra das sociedades secretas de Babeuf e Buonaroti”. Piotr Kropotkin. Humanismo libertário e ciência moderna. Rio de Janeiro, Cooperativa Editora Mundo Livre, s/d, pp. 111-112.

3 É importante destacar que a crítica de Proudhon à propriedade é radical. Não há estágio intermediário em direção ao regime da Liberdade ou Anarquia. Este é a suplantação do regime da propriedade. Trata-se então do regime da posse coletiva a partir de condições igualitárias de acesso, que contempla diferenças e institui um direito com base na proporcionalidade. Este direito não é fixo, não se encontra consagrado na constituição. Ele se faz e refaz segundo os contratantes. Estabelece um contrato bilateral em que as partes não cedem a uma autoridade superior, nem ao outro mais do que podem. Neste sentido, mutualismo econômico está relacionado a federalismo político. O direito é de sair e não de ficar. A propriedade é um roubo, dizia Proudhon. Revolução é superação da propriedade pela anarquia.

4 Jean Maitron. Le movement anarchiste en France — des origes à 1914. Paris, Maspero, 1775, 2 vols.

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5 George Woodcock. Grandes escritos anarquistas. Porto Alegre, LP&M, 1981, pp. 13-14.

6 Pierre-Joseph Proudhon. O que é a propriedade?. São Paulo, Martins Fontes, 1995.

7 Élisée Reclus pensava que o tempo das revoltas expontâneas ficara para trás. A evolução dependeria da revolução armada pela ciência: “em todos os tempos”, dizia Reclus, “o animal e a criança gritaram quando os espancaram e retrucaram com gestos ou com golpes; a sensitiva também fecha suas folhas quando um toque as ofende; mas há uma grande distância destas revoltas espontâneas para a luta metódica e certa contra a opressão. (...) A ciência social, que ensina as causas da servidão e, por conseqüência , os meios da libertação, libera-se pouco a pouco do caos de opiniões conflitantes”. Élisée Reclus. A evolução, a revolução e o ideal anarquista. São Paulo Imaginário/Expressão e Arte, 2002, p. 43.

8 Tanto a definição de Kropotkin identificando-o como metafísico do anarquismo é precipitada, quanto confiná-lo ao niilismo filosófico. Chamá-lo de transcendente e metafísico é apenas assegurar o lugar de testemunha no tribunal que julga o verdadeiro anarquismo. Diante da ciência e do método serial, Stirner revira os instintos insubordináveis à razão centralizadora. Diante de uma reflexão adulta ou madura dos cientistas e analistas, Stirner propõe a surpresa e volatilidade de crianças e jovens.

9 Emma Goldman. “O indivíduo, a sociedade e o Estado” in Goldman & Tolstoi. O indivíduo, a sociedade e o Estado. São Paulo, Imaginário, 1995.

10 Frank Harrison.The modern state. Montréal, Black and Roses Books, 1983.

11 Sobre Proudhon e a política ver Paulo Resende e Edson Passetti. Proudhon. São Paulo, Ática, 1984.

12 Daniel Guérin. El anarquismo. Buenos Aires/Montevidéo, Editorial Altamira/ Nordan Comunidad, 1992, p. 17.

13 Mais tarde, parte dos conservadores estadunidenses passarão a se autodefinir libertários, com base nas teorias do livre-arbítrio e do livre mercado, chegando a fazer aparecer, na segunda metade do século XX, uma nova corrente neoliberal com o nome de anarco-capitalismo. Vê-se por aí que o anarquista desconcerta a sociedade capitalista e a democracia representativa simultaneamente. Procura-se combatê-lo não só por meio de polícia e tribunais, mas, também, pela atuação das academias universitárias que procuram dividir, confundir e suprimir as práticas.

14 Michel Foucault. Os anormais. São Paulo, Martins Fontes, 2001, p. 105.

15 Idem, p. 111.

16 Contudo, o que mais surpreende é ver nos dias de hoje, no início do século XXI, teóricos e legisladores continuarem a defender a tese da necessidade de

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se refazer o contrato, rompido, obviamente pelos perigosos habitantes das periferias. O argumento da construção e combate ao monstro moral permanece inalterado entre tiranos e defensores da soberania. É apenas um argumento de Estado, segurança e propriedade.

17 Idem, p. 194.

18 Após os ataques às torres do World Trade Center, em 2001, em Nova Iorque,

o governo dos Estado Unidos, em nome da liberdade, da razão e da defesa planetária, encontrou argumentos e aliados políticos para atacar populações em seus territórios e desenvolver caça a suspeitos, gerando prisões e julgamentos arbitrários. O Estado afirma que são necessárias ações preventivas contra os inimigos externos (a facção Al Qaeda, o governo do Iraque, os agentes do narcotráfico, etc). Em certa medida trata-se de uma política exterior de tolerância zero. Não há direitos civis, políticos, humanos que se sustentam diante das políticas de segurança. Isto estava posto na Declaração de 1793. 19 Michel Foucault. “Outros espaços” in Ditos e escritos III. São Paulo, Forense, 2001, pp. 411-422. O artigo veio a público somente em 1984.

20 Procurei anteriormente, seguindo a formulação de As palavras e as coisas, elaborar uma primeira aproximação à noção de heterotopia por meio da análise do pensamento de Max Stirner como um anarquista no anarquismo (Edson Passetti. “A utopia e a atitude limite” in Margem, n° 13. São Paulo, Faculdade de Ciências Sociais/ Programas de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais e História, junho 2001, pp. 135-142). Naquela ocasião estava interessado em afirmar a importância da supressão da utopia como liberação.

21 Foucault, op. cit. , 2001, p. 416.

22 Pierre Clastres. “O dever da palavra” in Sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro, Francisco Alves Editora, 1978, p. 106.

23 Idem, p. 107.

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Heterotopias anarquistas

RESUMO

As diversas designações de anarquista (coletivista, libertário, comunista libertário, socialista libertário, anarco-sindicalista) surgidas a partir dos confrontos com as forças socialistas e de sua identificação como monstro moral, no século XIX, pelas forças de Estado e de conhecimento científico. Os anarquistas eram tidos como perigosos. Não confortavam suas propostas em utopias. Realizavam suas heterotopias afirmando práticas libertárias. Continuam abalando a sociedade menos pelo que propõem para o futuro, mas pelo que desestabilizam no presente.

ABSTRACT

The various designations of anarchist (collectivist, libertarian, libertarian communist, libertarian socialist, anarcho-syndicalist) that emerged from the struggle with socialist forces and from its identification as a moral monster by scientific knowledge and state forces, in the 19th century. The anarchist were considered dangerous. They did not ease its proposals in utopias. They have accomplished its heterotopias affirming libertarian practices. They keep on shaking society, less for what they propose for the future, but mainly for the instability they generate in the present.

A estrela chorou rosa ao céu de tua orelha. O infinito rolou branco, da nuca aos rins. O mar perolou ruivo em tua teta vermelha. E o homem sangrou negro o altar dos teus quadris.

Arthur Rimbaud

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a delinqüência acadêmica

maurício tragtenberg * O tema é amplo; abrange a relação entre a dominação e o saber, a relação entre o intelectual e a universidade como instituição dominante, ligada à dominação, a universidade antipovo.

A universidade está em crise e isso ocorre porque a sociedade está em crise. Através da crise da universidade é que os jovens funcionam, detectando as contradições profundas do mundo social refletidas na universidade, que não é algo tão essencial como a linguagem; é simplesmente uma instituição dominante ligada à dominação. Ela não é uma instituição neutra; mas sim de classe, onde as contradições aparecem. Para obscurecer esses fatores, a universidade desenvolve uma ide

* Foi professor no Departamento de Política da PUC-SP, na Unicamp e na FGV. O presente artigo foi publicado em A deliqüência acadêmica: o poder sem saber e o saber sem poder. São Paulo, Editora Rumo, 1979, pp. 15-23, que se encontra esgotado. “Este livro foi editorado durante o mês de junho de 1979 pelos alunos do quinto semestre de Editoração da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, em conjunto com os professores das disciplinas pertinentes”, conforme consta na quarta página do original. verve, 2: 175-184, 2002

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ologia de saber neutro, científico, uma neutralidade cultural e um mito de saber ‘objetivo’ acima das contradições sociais.

No século passado, período do capitalismo liberal, a universidade procurava formar um tipo de ‘homem’ que se caracterizava por um comportamento autônomo exigido por suas funções sociais: era a universidade liberal humanista e mandarinesca. Hoje, ela forma a mãode- obra destinada a manter nas fábricas o despotismo do capital. Nos institutos de pesquisa, cria aqueles que deformam dados econômicos em detrimento dos assalariados; nas escolas de direito, forma os aplicadores de legislação de exceção; nas escolas de medicina, aqueles que irão convertê-la numa medicina do capital ou utilizá-la repressivamente contra os deserdados do sistema. Em suma, trata-se de ‘um complô de belas almas’ recheadas de títulos acadêmicos, de doutorismo substituindo o bacharelismo, de uma nova pedantocracia, da produção de um saber a serviço do poder, seja ele de que espécie for. Na instância das faculdades de educação, forma-se o planejador tecnocrata a quem importa discutir os meios sem discutir os fins da educação e confeccionar reformas educacionais que, na realidade, são verdadeiras ‘restaurações’. Forma-se o professorpolicial, aquele que supervaloriza o sistema de exames, a avaliação rígida do aluno, seu conformismo ante o saber professoral. A pretensa criação do conhecimento é substituída pelo controle sobre o parco conhecimento produzido pelas nossas universidades; o controle de meio transforma-se em fim e o ‘campus’ universitário cada vez mais parece um universo ‘concentracionário’ onde se reúnem aqueles que se originam da classe alta e média, enquanto professores e alunos, da mesma extração social, são ‘herdeiros’ potenciais do poder através de um saber minguado, atestado por um diploma.

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A delinqüência acadêmica

A universidade classista mantém-se através do poder exercido pela seleção dos estudantes e dos mecanismos de nomeação para os professores. Na universidade mandarinal do século passado, o professor cumpria a função do ‘cão de guarda’ do sistema: produtor e reprodutor da ideologia dominante, chefe de disciplina do estudantado. Cabia à sua função professoral, acima de tudo, inculcar as normas de passividade, subserviência e docilidade através da repressão pedagógica, formando a mão-de-obra que um sistema fundado na desigualdade social acreditava legitimar através da desigualdade de rendimento escolar, onde a escola ‘escolhia’ pedagogicamente os ‘escolhidos’ socialmente. A transformação do professor ‘cão de guarda’ em ‘cão pastor’ acompanha a passagem da universidade pretensamente humanística e ‘mandarinesca’ em universidade tecnocrática, onde os critérios lucrativos da empresa privada funcionarão para a formação das fornadas de ‘colarinhos branco’ rumo as usinas, escritórios e dependências ministeriais. É o mito da assessoria, do posto público que mobiliza o diplomado universitário.

A universidade dominante reproduz-se mesmo através dos chamados ‘cursos críticos’ onde o juízo professoral aparece hegemônico ante os dominados: os estudantes. Isso se realiza através de um processo que chamarei de ‘contaminação’. O curso catedrático e dogmático transforma-se num curso ‘magisterial’ e crítico. A crítica ideológica é feita nos chamados ‘cursos críticos’ que desempenham a função de um tranqüilizante do meio universitário. Essa apropriação da crítica pelo mandarinato universitário, mantido o sistema de exames, a conformidade ao programa e o controle da docilidade do estudante como alvos básicos, constituise numa farsa, numa fábrica de boa consciência para a delinqüência acadêmica representada por aqueles que trocam o poder da razão pela razão do poder. Por isso, é

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necessário realizar a crítica da crítica-crítica, destruir a apropriação da crítica pelo mandarinato acadêmico. Watson demonstrou que as pesquisas em química molecular, como nas ciências humanas, estão impregnadas de ideologia. Não se trata de discutir a apropriação burguesa ou não-burguesa do saber, mas sim, a destruição do ‘saber institucionalizado’, do ‘saber burocratizado’, como o único ‘legítimo’. A apropriação universitária (atual) do conhecimento é a concepção capitalista do saber, o qual se constitui em capital e toma forma nos hábitos universitários. A universidade reproduz o modo de produção capitalista dominante não apenas pela ideologia que transmite, mas pelos servos que ela forma. Esse modo de produção determina o modo de formação através das transformações introduzidas na escola que coloca em relação mestres e estudantes. O mestre possui um saber inacabado e o aluno uma ignorância transitória: não há saber absoluto, nem ignorância absoluta. A relação de saber não institui a diferença entre aluno e professor; a separação entre aluno e professor opera–se através de uma relação de poder simbolizada pelo sistema de exames, ‘esse batismo burocrático do saber’. O exame é a parte visível da seleção; a invisível é a entrevista, que cumpre a mesma função de ‘exclusão’ que possui na empresa quanto ao futuro empregado; informalmente, docilmente, a entrevista ‘exclui’ o candidato. Para o professor, há o currículo visível, publicações, conferências, traduções e atividade didática, e há o currículo invisível, esse de posse da chamada ‘informação’ que tem espaço na universidade, onde o destino está em aberto e tudo é possível acontecer. É através da nomeação, da ‘cooptação’ dos mais conformistas, nem sempre os mais produtivos, que a burocracia universitária reproduz o canil de professores. Os valores de submissão e conformismo, a cada

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A delinqüência acadêmica

instante exibidos pelos comportamentos dos professo

res, já constituem um sistema ideológico.

No que consiste a delinqüência acadêmica?

Essa ‘delinqüência acadêmica’ aparece em nossa época longe de seguir os ditames de Kant. Se os estudantes procuram conhecer os espíritos audazes de nossa época, é fora da universidade que irão encontrá-los. A bem da verdade, raramente a audácia caracterizou a profissão acadêmica. Esta é a razão pela qual os filósofos da revolução francesa se autodenominavam ‘intelectuais’ e não ‘acadêmicos’. Isso ocorria porque a universidade mostrara-se hostil ao pensamento crítico avançado. Pela mesma razão, o projeto de Jefferson para a Universidade da Virgínia, concebida para produção de um pensamento independente da Igreja e do Estado, de caráter crítico, fora substituído por uma ‘universidade que mascarava a usurpação e monopólio da riqueza, do poder.’1 Isso levou os estudantes da época a realizarem programas extracurriculares onde Emerson se fazia ouvir, já que o obscurantismo de então impedia sua entrada nos prédios universitários, pois contrariavam a Igreja, o Estado e as grandes ‘corporações’ que alguns intelectuais cooptados pretendem que tenham uma ‘alma’.

Em nome do ‘atendimento à comunidade’ e em nome do ‘serviço público’, a universidade tende cada vez mais à adaptação indiscriminada a quaisquer pesquisas a serviço dos interesses econômicos hegemônicos. Nesse andar, a universidade brasileira oferecerá disciplinas, como as existentes na Metrópole EUA: cursos de escotismo, defesa contra incêndios, economia doméstica e datilografia em nível de secretariado, pois já existe isso em Cornell, Wisconsin e outros estabelecimentos legitimados. O conflito entre o tecnicismo e o humanismo acaba em compromisso: a universidade brasileira pre- para-se para ser uma ‘multiversidade’, isto é, ensina

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tudo aquilo que o aluno possa pagar. A universidade vista como prestadora de serviços corre o risco de enquadrar- se numa ‘agência do poder’, especialmente após 68, com a Operação Rondon e sua aparente democratização; apenas nas vagas é que funciona como tranqüilizante social. O ‘assistencialismo’ universitário não resolve o problema da maioria da população brasileira: o problema da terra.

O problema significativo a ser colocado é o nível de responsabilidade social do professor e pesquisador universitário. A não preocupação com as finalidades sociais do conhecimento produzido se constitui em fator de ‘delinqüência acadêmica’ ou de ‘traição do intelectual’. Em nome do ‘serviço à comunidade’, a intelectualidade universitária tornou-se cúmplice do genocídio, espionagem, engano e todo tipo de corrupção dominante quando domina a ‘razão de Estado’ em detrimento do povo. Isso vale para aqueles que aperfeiçoam secretamente armas nucleares (MIT), armas químicobiológicas (Universidade da Califórnia, Berkeley), pensadores inseridos na Rand Corporation, como aqueles que, na qualidade de intelectuais com diploma ‘acreditativo’, funcionam na censura, na aplicação da computação com fins repressivos em nosso país. Uma universidade que produz pesquisas ou cursos a quem é apto a pagá-los perde o senso da discriminação ética e da finalidade social de sua produção: é uma ‘multiversidade’, que se vende no mercado ao primeiro comprador, sem averiguar o fim da encomenda, acobertada pela ideologia da neutralidade do conhecimento e seu produto. Já na década de 30, Frederico Lilge2 acusava a tradição universitária alemã de neutralidade acadêmica, ao permitir aos universitários alemães a felicidade de um emprego permanente, escondendo a si próprios a futilidade de suas vidas e seu trabalho. Em nome da ‘segurança nacional’, o intelectual

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acadêmico despe-se de qualquer responsabilidade social quanto ao seu papel profissional: a política das ‘panelas’ acadêmicas de corredor universitário e a publicação a qualquer preço de um texto qualquer constituem- se no metro para medir o sucesso universitário. Nesse universo não cabe a simples pergunta: o conhecimento a quem e para que serve? Enquanto o encontro entre educadores sob o signo de Paulo Freire enfatiza a responsabilidade social do educador, da educação não confundida com inculcação, a maioria dos congressos acadêmicos universitários serve de ‘mercado humano’, onde entram em contato pessoas e cargos acadêmicos a serem preenchidos. Estes congressos parecem os encontros entre gerentes de hotel onde se trocam informações sobre inovações técnicas, revêem-se velhos amigos e se estabelecem contatos comerciais.

Estritamente, o mundo da realidade concreta é sempre muito generoso com o acadêmico, pois o título acadêmico torna-se o passaporte que permite o ingresso nos escalões superiores da sociedade: a grande empresa, o grupo militar e a burocracia estatal. O problema da responsabilidade social é escamoteado, a ideologia do acadêmico é não ter nenhuma ideologia: faz fé de apolítico, isto é, serve à política do poder.

Diferentemente, constitui um legado da filosofia racionalista do século XVIII, uma característica do ‘verdadeiro’ conhecimento, o exercício da cidadania do soberano direito de crítica questionando a autoridade, os privilégios e a tradição. O ‘serviço público’ prestado por esses filósofos não consistia na aceitação indiscriminada de qualquer projeto, fosse destinado à melhora de colheitas, ao aperfeiçoamento do genocídio de grupos indígenas a pretexto de ‘emancipação’ ou a políticas de arrocho salarial que converteram o Brasil no detentor do triste recorde de primeiro país no mundo em acidentes de trabalho, uma vez que a propaganda pela segu

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rança no trabalho, emitida pelas agências oficiais, não substitui o aumento salarial.

O pensamento está fundamentalmente ligado à ação. Bergson sublinhava, no início do século, a necessidade de o homem agir como homem de pensamento e pensar como homem de ação. A separação entre ‘fazer’ e ‘pensar’ constitui-se numa das doenças que caracterizam a delinqüência acadêmica; a análise e discussão dos problemas relevantes do país constituem um ato político, uma forma de ação, inerente à responsabilidade social do intelectual. A valorização do que seja um homem culto está estritamente vinculada a seu valor na defesa de valores de cidadania essenciais, ao seu exemplo revelado não pelo seu discurso, mas por sua existência e ação.

Ao analisar a ‘crise de consciência’ dos intelectuais norte-americanos que deram o aval à ‘escalada’ no Vietnã, Horowitz notou que a disposição que eles revelaram no planejamento do genocídio estava vinculada à sua formação, à sua capacidade de discutir meios sem nunca questionar os fins, a transformar os problemas políticos em problemas técnicos, a desprezar a consulta pública, preferindo as soluções de gabinete, consumando o que definiríamos como a traição dos intelectuais, onde a indignidade do intelectual substitui a dignidade da inteligência.

Nenhum preceito ético pode substituir a prática social, a prática pedagógica.

A delinqüência acadêmica caracteriza-se pela existência de estruturas de ensino onde os meios (técnicas) se tornam fins. Os fins formativos são esquecidos; a criação do conhecimento e sua reprodução cedem lugar ao controle burocrático de sua produção como suprema virtude, onde administrar aparece como sinônimo de vigiar e punir: o professor é controlado mediante os critérios visíveis e invisíveis de nomeação; o aluno, medi

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A delinqüência acadêmica

ante os critérios visíveis e invisíveis de exame. Isso resulta em escolas que se constituem em depósitos de alunos. Como diria Lima Barreto, um ‘cemitério de vivos’.

A alternativa é a criação de canais de participação real de professores, estudantes e funcionários no meio universitário que se oponham à esclerose burocrática da instituição.

A autogestão pedagógica, teria o mérito de devolver à universidade um sentido de existência, qual seja, a definição de um aprendizado fundado numa motivação participativa e não em decorar determinados ‘clichês’ repetidos semestralmente nas provas que nada provam, nos exames que nada examinam, que levam o aluno a sair da universidade com a sensação de estar mais velho, como um dado a mais: o diploma ‘acreditativo’ que em si perde valor, na medida em que perde sua raridade.

A participação discente não se constitui num remédio mágico aos males acima apontados, porém a experiência demonstrou que a simples presença discente em colegiados é fator de sua moralização.

Notas

1 Kaysen pretende atribuir uma ‘alma’ à corporação-multinacional. Esta parece não se preocupar com tal esforço construtivo do intelectual.

2 F. Lilge. The abuse of learning: the failure of German university. New York, MacMillan, 1948.

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RESUMO

O autor procura confrontar a universidade liberal humanista do século XIX com a do século XX, formadora de mão de obra para o despotismo do capital. No primeiro caso predominava o professor cão de guarda, inculcando obediências; no segundo,

o professor cão pastor da universidade tecnocrática. A delinqüência acadêmica será vista como exercício da troca do poder da razão pela razão do poder, que se realiza pela separação entre fazer e pensar, em que os meios se tornam fins, sob controle burocrático. É preciso destruir a apropriação da crítica pelo mandarinato acadêmico, pois a escola se constitui em um cemitério de vivos. O sentido atual da existência da universidade está na autogestão pedagógica. ABSTRACT

The author seeks to confront the liberal humanistic university of the 19th century with those of the 20th century, responsible for delivering workmanship for capital despotism. In the first case, there was a prevalence of the watchdog professor, asserting obedience. While In the second, the prevalence was of the shepherd dog professor of the technocratic university. The academic delinquency will be seen as the exercise of exchanging the power of reason for the reason of power, which arises from the separation between doing and thinking, in which the means become the ends, under the bureaucratic control. It is necessary to destroy the appropriation of the critic by the academic mandarinate, because the school is built over a cemetery of the alive. The present sense of the university existence is in its pedagogical self-governance.

Ainda conheço a natureza?

Será que me conheço? — Chega de frases. Enterro os mortos no meu ventre. Gritos, tambor, dança, dança, dança, dança !

Não vejo nem mesmo a hora em que desembarcando os brancos, cairei no nada.

Fome, sede, gritos, dança, dança, dança, dança !

Arthur Rimbaud

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conversas com um abolicionista do sistema penal

(parte 2)

entrevista com

louk hulsman Apresentação

Louk Hulsman é um abolicionista penal. Professor emérito da Universidade de Rotterdam e integrante de diversos foros internacionais — das Nações Unidas, do Conselho da Europa e das Sociedades de Direito Penal e de Criminologia.

Esta entrevista, dividida em duas partes —a primeira foi publicada no número 1 da revista Verve — faz parte do livro de Louk Hulsman e Jacqueline Bernart de Celis, Penas Perdidas: o sistema penal em questão. Rio de Janeiro, Luam, 1993. Traduzido por Maria Lúcia Karam, encontra-se esgotado aguardando uma nova edição.

Salete Oliveira

verve, 2: 186-209, 2002

186

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Conversas com um abolicionista do sistema penal

Experiências interiores

Jacqueline Bernart de Celis — Louk Hulsman, acredito que você se defina melhor pelas experiências que teve, não?

Louk Hulsman — De fato. É sempre através de uma determinada combinação de experiências, única ou rara enquanto combinação, que é possível apreender uma pessoa. O que esta pessoa viveu; as situações enfrentadas; as influências científicas abstratas que recebeu; os modelos que ouviu de explicação de si mesma e do mundo, as práticas que experimentou — é o cruzamento de tudo isso que a explica, muito mais do que os traços de caráter que a definiriam.

— Quais foram as experiências marcantes em sua vida? — Já mencionei algumas de passagem. Mas, para efetivamente fazer compreender o que me mobiliza interiormente, será preciso retornar a elas. A experiência do internato, sem dúvida, foi uma das que mais me marcou; eu poderia até dizer que me traumatizou. Fui posto várias vezes no colégio interno. A última foi numa escola secundária mantida por padres, de onde fugi aos 15 anos. Embora meus pais naturalmente justificassem sua decisão de outra forma, eu acreditava que eles me mandavam para o colégio interno para me punir, pois minha mãe freqüentemente dizia que eu era uma criança difícil... Fui muito infeliz naqueles anos. Eu não conseguia suportar a disciplina, a atmosfera repressiva reinante no internato. E, como os outros se acomodavam, eu acabava sem amigos. Ficava isolado, numa espécie de marginalização que duplicava o sentimento de rejeição já experimentado em relação à minha família. Eu era uma criança que não correspondia ao que dela se esperava. Depois dessa, as experiências mais significa 2 2002

tivas foram as que vivi na guerra e na resistência. Já falei delas. Mas, gostaria de mencionar algumas coisas que ainda não disse e que me parecem fundamentais. Quando eu era criança, morávamos numa rua onde, na calçada em frente, começava a Alemanha. Fazíamos nossas compras em Aix-la-Chapelle e conhecíamos bem os comerciantes e todas aquelas pessoas que viviam do outro lado da rua. Quando veio a guerra e durante a ocupação, vi surgir — e eu mesmo vivi — comportamentos extremamente maniqueístas em relação aos alemães. Em um dado momento, eu talvez pudesse matálos todos. Quando foram derrotados, percebi que, no fundo, eu não tinha nada contra eles e pude olhá-los sem ressentimentos... Já mencionei que fui capturado, preso e jogado num campo de concentração. Mas, agora que me refiro às experiências interiores, devo dizer que, na realidade, suportei muito melhor esse período de detenção — que, aliás, foi curto — do que os anos de internato.

— Sério? — Parece espantoso. Mas, o preso político não per- de a autoestima nem a estima dos outros. Ele sofre em todas as dimensões de sua vida, mas permanece um homem que pode olhar de frente. Não está diminuído. Esta experiência foi fundamental para mim, ao mostrar a importância de não se ser estigmatizado quando se é colocado à margem... Mas, ainda em relação à face oculta dos acontecimentos, como os interiorizei, eu diria que as circunstâncias da liberação igualmente me permitiram viver algumas coisas bastante significativas. Consegui fugir do campo de concentração — como fugira do colégio interno — esta primeira experiência tendo, sem dúvida, facilitado a segunda! Saltei de um trem que me levava para a Alemanha, quando — já tendo os americanos liberado o sul dos Países-Baixos — os alemães, verve

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em retirada, transferiam os prisioneiros do campo de Amersfoort, onde eu estava, para o interior. Foi em setembro de 1944. Eu estava no norte do país, onde tive que ficar escondido durante sete meses, na casa de uma família amiga, até o dia em que, numa cidadezinha do norte também já liberada, reencontrei alguém do meu grupo da Resistência, que se tornara exército regular após a entrada dos americanos nos Países-Baixos. Este companheiro me daria uma identidade falsa e um uniforme, com os quais pude voltar para casa no sul sem problemas, apesar da proibição de atravessar o rio temporariamente imposta aos holandeses das duas zonas. Aderi, então, a esta unidade militar recém-saída da clandestinidade, desequipada, que roubava, sem culpas, tudo aquilo de que precisava. É aí que se situa a experiência — a dupla experiência — de que eu queria falar: nós roubávamos, pegávamos fuzis dos americanos, roupas dos ingleses, como eu peguei uma bicicleta dos alemães, com a mais limpa das consciências! Por outro lado, em uma semana, passei da condição de quem vive na clandestinidade ao status oficial de militar das forças de ocupação na Alemanha! Creia, isto é um convite para não mais relacionar o valor de um homem à sua condição jurídica ou social...

— Será que poderíamos tentar descobrir, agora, como todas estas experiências juntas fizeram de você o que você é e, finalmente, definir o que o caracteriza? — Me parece que três idéias-chave poderiam simbolizar o que vivi em profundidade e o que continuo tentando ser: estar aberto; viver solidariamente; estar apto a uma permanente conversão. — Admitindo-se, como você propõe, que nossas decodificações valem tanto para nos revelar, quanto para 2 2002

revelar o mundo, seriam estas também as idéias-chave de um determinado humanismo?

— Sim, é isso. — Como, então, elas agem em você? — Experimentei, pela primeira vez, o sentimento de me abrir — ou, se você preferir, de sair de um fechamento — logo que, tendo definitivamente recusado o colégio interno, entrei no externato do liceu. Fui para uma turma onde não éramos mais que seis e todos nos entendíamos muito bem. Finalmente, tinha amigos; não estava mais só... Organizamos um monte de coisas fora da programação, começando por debates filosóficos. Depois, montamos um jornal que chamamos de alternativo, onde posávamos de contestadores. — Contestadores em relação a que? — Contestávamos a situação dentro da escola, mas também, indiretamente, a instituição Igreja, pois o liceu era administrado por padres franciscanos. Talvez tenha sido a partir desta época que passei a ver a vida como uma contínua descoberta, como uma liberação... Sim, um de meus sentimentos interiores mais fortes é o de viver a vida como uma liberação... — Eis um sentimento pouco difundido! — Não é difundido porque a educação, o discurso dominante, apresentam a vida e a sociedade de um modo distante das experiências pessoais. E, neste sentido, são alienantes. Mas, pode-se combater esta alienação, justamente ficando aberto... Algumas de minhas leituras já tinham contribuído para que eu saísse de meu fechamento. Quando eu tinha 17, 18 anos, devorava livros. O sistema escolástico no qual fui educado funda- se na objetividade. Descarta a pessoa, o sujeito, e nega a importância da afetividade, ou, melhor dizendo, verve

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não dá a esta uma linguagem para se exprimir. Eu apreciava a arte romana, os cantos gregorianos, a sobriedade das igrejas pequenas e as liturgias suntuosas. Mas, eu tinha construído um universo intelectual — que não deixa de ter seus atrativos — no qual não havia lugar para os sentimentos. Eu nunca tinha tido, por exemplo, a idéia de ir dançar; e as cartas de amor, que em determinada época eu tinha escrito para minha mãe, pareciam-me inconvenientes. Minha visão de mundo era inteiramente truncada... Lembro-me do desejo enorme que eu tinha de poder responder à pergunta “o que é o saber?” e do particular interesse que dediquei a um livro de Merlau-Ponty, que mostrava o que há de subjetivo no conhecimento. Desde aquele momento, compreendi que o ato de conhecer encerra um vínculo, o vínculo entre o objeto que é conhecido e aquele que conhece, e que aquilo que chamamos de “realidade” é esta interação... Efetivamente, desde esta época, parti para a descoberta do mundo e de mim mesmo — e este é um processo que se realimenta: quanto mais descobertas fazemos, mais longe e mais rápido somos leva- dos... Este processo de abertura para o mundo foi se acentuando depois. Paralelamente a meu curso universitário — eu fazia Direito na Universidade de Leyden — me engajei no grande movimento questionador que sacudiu a Igreja dos Países-Baixos a partir dos anos 1946/ 1947 e que foi um dos que prepararam o Vaticano II. Junto com políticos e padres, participei do comitê de redação da revista A Décima-Primeira Hora, onde, durante longos anos, antes e depois da guerra, persegui este objetivo de desinstitucionalização da Igreja, que, aliás, teve grande repercussão nos Países-Baixos.

— Você trabalhou na desinstitucionalização da Igreja antes de trabalhar na do Estado? 2 2002

— Meu trabalho de desinstitucionalização do Estado é, na verdade, uma réplica daquele trabalho em relação à Igreja. Aliás, algo espantoso se passou. No começo, eu pensava que só havia realmente institucionalização na Igreja e que a secularização seria uma espécie de liberação... — E isto não é verdade! — Claro que não! Foi uma experiência bastante interessante e, ao mesmo tempo, decepcionante descobrir que o mesmo mecanismo combatido no seio da Igreja reaparecia no contexto dito secular. Reconheci muitas vezes seguidas, e sempre com a mesma surpresa, esta notável semelhança entre as estruturas estatais e as estruturas da Igreja-instituição. De todo modo, minha atividade a serviço da desinstitucionalização da Igreja me deu uma ótima idéia do mecanismo que deveria ser combatido em todos os casos. Isto iria me permitir, mais tarde, fazer úteis aproximações entre os princípios que informam as instituições do Estado, notadamente o sistema penal, e o sistema escolástico. — Em suma, quando você diz que é preciso estar aberto, isto significa que é preciso lutar sempre para evitar o isolamento, seja individual, seja coletivamente? — Sim, é isso. Se nos fecharmos em nossos sistemas, nas verdades que acreditamos possuir, passaremos ao largo da vida e nos será inteiramente impossível exercer qualquer influência sobre o que quer que queiramos fazer evoluir. Eu pude constatar diversas vezes que, quando queremos influir na realidade sem conhecêla tal como ela é, as coisas se voltam contra nós. A princípio, como muita gente, tive esta experiência com meus filhos. Numa certa medida, mesmo sem querer, nós nos impomos às crianças e, quando procuramos planejar o que imaginamos ser bom para elas, raramente o resul verve

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tado é o que esperávamos. Isto porque não deixamos que a criança concreta, que temos diante de nós, se expresse; não a escutamos, da mesma forma que, no fundo, tampouco escutamos a nós mesmos...

— E tal atitude nos distancia da vida? — Ela é constantemente questionada pela realidade. Façamos um parênteses: a desumanidade do sistema penal está, em parte, na situação em que reciprocamente se colocam o imputado e os agentes que tratam com ele. No contexto deste sistema, onde aquele que é acusado não pode verdadeiramente falar, onde não tem a oportunidade de se expressar, o policial ou o juiz, mesmo que queiram escutá-lo, não podem fazê-lo. É o tipo mesmo de relações instituídas por este sistema que cria situações desumanas... Voltando às minhas experiências pessoais, eu poderia dizer que, num dado momento, constatei que todas as espécies de reforma concebidas para por fim a determinadas injustiças — reformas realizadas por mim mesmo ou por outros — se voltavam contra o projeto inicial, criando ainda mais repressão e mais impotência. Ou ainda, que todos os esforços despendidos, não importa quão intensos, restavam absolutamente ineficazes, como que absorvidos ou neutralizados pelo sistema. Pouco a pouco, compreendi que o malogro, na verdade vem do fato de termos uma falsa idéia da realidade das estruturas que procuramos manejar, confundindo legitimação e realidade. — Escutando isso que você diz, surge uma possível objeção: se antes de pretender transformar o que existe, é preciso saber como as coisas realmente se passam, não nos arriscamos a cair numa espécie de imobilismo? — Eu não disse que é preciso se abster de qualquer ação até o momento em que se saiba tudo! Mas, certamente, é necessário conhecer bem o terreno onde 2 2002

se pisa e estar atento ao que se passa, ao longo de toda ação. E, para conhecer a materialidade e o funcionamento das estruturas que se quer mudar, é preciso desenvolver uma prática. A verdadeira compreensão é resultado da prática e da reflexão sobre ela. Daí minha participação espontânea em inúmeras práticas, a que “normalmente”, dada minha posição na vida, eu não teria tido acesso. Participação ou proximidade real. Assim é que quis conhecer pessoas nascidas noutras camadas sociais, ou pertencentes a outras sociedades, como os indígenas da América e alguns povos da Índia; pessoas definidas como desviantes: presos, egressos, crianças “problemáticas”, “doentes” mentais, minorias sexuais, drogados, squatters;1 especialistas de outras disciplinas, como sociólogos, antropólogos, historiadores, assim como os agentes do sistema — policiais, juízes, administradores de prisões. Participei de centenas de reuniões, pertenci a toda espécie de comissões, grupos de trabalho, grupos de ação, que me abriram e mexeram comigo. As idéias falsas se incrustam em nós porque vivemos em compartimentos que nos separam da experiência de outras pessoas, que, por sua vez, vivem em outros compartimentos. Pessoalmente, fiz tudo para sair ao máximo de meu compartimento, o que, aliás, me proporcionou experiências apaixonantes...

— Se você tivesse que resumir em algumas frases o que você aprendeu em tantos encontros e trocas com pessoas, vivendo experiências tão diversas, o que você diria? — Hoje sei, com certeza, que muitas das pretensas verdades ou pretensos conhecimentos são falsos. Como a maioria das pessoas, fui educado para apreender o social segundo um código voluntarista. O discurso político, o discurso jurídico nos impelem a ver o social deste modo, presumindo-se a introdução de uma certa verve

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intencionalidade nos processos sociais e sua conformidade com tal intencionalidade. Entretanto, acabei compreendendo que o enfoque voluntarista só funciona onde os homens têm relações cara-a-cara, relativamente igualitárias, e que o enfoque fenomenológico ou o enfoque materialista — que partem das condições de vida — são muito mais apropriados para se entender a realidade social do que o enfoque normativo... Todos estes encontros, todos estes debates de que participei; ouvir tantas pessoas diferentes; tudo isso também me levou a desmistificar a idéia de uma pretensa superioridade das sociedades industrializadas sobre as sociedades tradicionais. Hoje estou convencido que em certos aspectos deveríamos nos inspirar em ordenamentos existentes nas sociedades tradicionais, que, aliás, subsistem em nossas sociedades, embora o discurso oficial os ignore totalmente. Na realidade, são estes os elementos mais vitais em nossas sociedades industrializadas.

— Numa certa medida, não seria essa uma proposição ao mesmo tempo utópica e regressiva? — De forma alguma! Em primeiro lugar, não pre- go um retorno romântico às sociedades tradicionais. Por outro lado, é preciso desconfiar especialmente desta idéia de regressão que você levantou e a que freqüentemente se costuma apelar. O que se vê quando observamos nossas sociedades? Desenvolveu-se nelas um modo de produzir bens materiais fundado em alguns princípios; divisão do trabalho, hierarquização, disciplina, seleção, importância do quantificável e importância do poder de análise. Não nego que este enfoque tenha sua utilidade — permitiu pôr fim a uma certa pobreza. Mas, mesmo nos limites precisos da produção de bens materiais, ele não deixa de ter problemas. E se quer estendê-lo a todos os domínios da vida: à saúde, à educação, à habitação, ao meio ambiente e, até mesmo, 2 2002

aos conflitos inter-pessoais. E aí, ele é absolutamente nefasto. Este desenvolvimento da racionalidade própria da industrialização nos campos mais importantes e mais profundos da vida é catastrófico.

— De fato, muitos pensadores dizem que os fenômenos da vida são dificilmente observáveis apenas à luz desta racionalidade de que você fala. — Você tem razão; não estou dizendo nenhuma novidade. Quase todo mundo percebe aí um grande problema. Mas, geralmente — e, às vezes, eu também — fala-se isso de forma abstrata. Mais profundamente, no que diz respeito a minhas experiências pessoais, vivo esta onda de racionalidade como uma espécie de cancerização. Até na minha própria participação na vida social, percebo o quanto este enfoque, que se expande mais e mais rapidamente, cava um abismo cada vez mais profundo entre o modo como se apresentam as coisas e a realidade vivida, e o quanto se é confinado por este processo a uma sociedade de aparências. Ora, quando o que se diz é profundamente diferente daquilo que verdadeiramente se passa e daquilo que se faz, muitas pessoas experimentam um forte sentimento de impotência e se desinteressam do que ocorre na vida social, achando que esta não lhes diz respeito. — Você acredita, então, que um certo retorno às sociedades tradicionais nos seria benéfico? — Eu o afirmo. Os países industrializados, na eta- pa histórica em que se encontram, são chamados a revalorizar princípios típicos das sociedades tradicionais. Estas conhecem ordenamentos sociais que implicam em menos divisão do trabalho. E, onde esta existe, é aplicada muito mais com um caráter complementar do que num quadro institucional. Nas sociedades tradicionais, há menos lugar para a quantidade. O aspecto verve

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qualitativo é que tem aí maior importância. A visão analítica não sufoca o enfoque intuitivo e globalizante da vida, que nelas predomina. É preciso voltar a isto.

— Como fazê-lo na prática? — É preciso tentar desprofissionalizar, desinstitucionalizar, descentralizar. — Fácil de dizer! — É certo que pode parecer extremamente difícil sair disso. Nós — ou seja, as pessoas como eu, que recebemos uma formação profissional — nós somos de tal forma colonizados pelo enfoque institucional que, mesmo quando queremos desinstitucionalizar e descentralizar, a toda hora recaímos no modelo de que tentamos fugir. Nós perdemos o hábito, a capacidade, o modo de agir não-institucional sobre o plano social global. Ora, se quisermos reencontrar os princípios do ordenamento social que presidem as sociedades tradicionais, não poderemos tentar reintroduzi-los no interior do modelo institucional, que, além do mais, é incompatível com eles. — Como fazer, então? — A meu ver, a única maneira de deter a cancerização institucional para revalorizar outras práticas de relacionamento social é desinstitucionalizar na perspectiva abolicionista. — Todos os caminhos levam você ao abolicionismo... — É verdade. As outras idéias-chave que mencionei — solidariedade, conversão — também me levam para lá, ao mesmo tempo que dão conta da minha identidade. — Você poderia explicitar isso? 2 2002

— Tomemos a palavra “solidariedade”. Para mim, ela está ligada à maneira pela qual percebo minha própria existência. É uma espécie de motor interno. Creio que meu sentimento de solidariedade está profunda- mente enraizado num forte sentido de igualdade entre os homens. Mas, atenção: uma noção de igualdade totalmente oposta à que, em geral, propõem o discurso oficial e a prática institucional de nossas sociedades. — Como assim? — A noção de igualdade mais comumente utilizada pela prática e pelo discurso institucionais exclui a diversidade. A noção oficial de igualdade traz implícita uma simplificação da vida. As instituições, para tornar as coisas maleáveis, reduzem-nas à sua natureza institucional. Isto está em total contradição com minha noção de igualdade, que, a meu ver, é sinônimo de diversidade. Há um importante livro de Van Haersolte que esclarece bem esse ponto. É uma obra sobre a personificação dos sistemas sociais. Van Haersolte, que é professor de Filosofia do Direito, se pergunta em que nível poderia se situar o Estado, enquanto corpo social, considerando tudo o que existe: os homens, as plantas, as pedras, as instituições em geral. Para ele, a pessoa se constitui de um determinado nível de integração de informações e sua qualidade depende deste seu nível de integração. Admitindo a possibilidade de personalizar o Estado como corpo social, ele então faz um alerta contra a tendência de lhe conferir o status mais alto: o Estado, diz ele, do ponto de vista da integração, talvez possa ter algum parentesco com um verme, mas certamente não com uma pessoa humana! Fiquei muito impressionado com esta imagem. Não nego que as instituições possam ter uma certa utilidade, na medida em que fornecem marcos organizativos para regulamentação de determinadas atividades. Mas, estou convencido que verve

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têm uma vida bem inferior à do homem. O menos inteligente dos homens: que maravilha de integração ao nível das tarefas que tem a cumprir! E uma instituição, ao nível de suas tarefas: quão limitados são os papéis que pode desempenhar! E, em nossas sociedades industrializadas, as instituições, especialmente o Estado, se personificam a tal ponto que de um verme fazemos um deus! Ao invés de atribuirmos ao Estado e às instituições em geral um papel modesto e subordinado, os seres humanos é que são colocados em último lugar. Os seres humanos são degradados, inferiorizados. E a vida humana, que é de uma riqueza e de uma capacidade de adaptação ímpares, acaba reduzida à natureza simplificadora e compartimentalizada das instituições.

— Na medida em que falamos de solidariedade, talvez devêssemos dizer com que ou com quem nos sentimos solidários... — Para mim, solidariedade jamais significará comprometimento com qualquer ordenamento social ou institucional. A solidariedade de que falo é sempre uma solidariedade vivida com seres ou grupos concretos: pessoas, animais, objetos concretos. — Até objetos? — Quando nos encontramos numa região desértica ou pouco povoada, a matéria — a madeira, por exemplo, ou uma pedra — adquire uma outra dimensão, tornando-se “próxima”... Sim, eu vivo em solidariedade com cada elemento do mundo, mas não com as instituições ou seus símbolos. Em nossas sociedades, muitos sentimentos de solidariedade se manifestam em torno de determinadas instituições ou de seus símbolos. Eu tenho horror disso. Este tipo de solidariedade me dá arrepios. 2 2002

— A este ponto? — Exatamente. Acho que a origem desta reação vem de experiências da juventude. Lembro-me bem dos discursos que eu ouvia no rádio e das reações das massas, antes de Hitler chegar ao poder e principalmente depois que o alcançou. Vi esta espécie de solidariedade, que execro, se expandir pela Alemanha. Eu era criança e, como morávamos perto da fronteira, senti a atração, o magnetismo que esta forma de solidariedade exercia sobre mim e sobre os outros, pressentindo, ao mesmo tempo, o enorme perigo que representava... A solidariedade de que falo é uma noção bastante sutil, que jamais poderá ser completamente apreendida e de que dificilmente nos damos conta. É um sentimento de dependência mútua, que, para mim, é, de certa forma, a própria definição da vida. Todos nós existimos juntos numa espécie de comunhão cósmica. Quando se tem consciência disso, desenvolve-se uma espécie de respeito, de delicadeza, de ajuda mútua. Isto implica num sentimento de responsabilidade, numa especial atenção para com os mais fracos, os que estão em dificuldades. É um sentimento vital que a liturgia de Pentecostes exprime de forma particularmente feliz: “Vinde, Espírito Santo... vinde a nós, pai dos pobres... vinde, luz de nossos corações... purificai aqueles que estão maculados, banhai aqueles que estão secos, curai os que estão feridos... abrandai os que são rígidos, aquecei os que têm frio, orientai aqueles que estão perdidos...” Esta seqüência sempre me tocou bastante, porque, sem dúvida, reproduz uma espécie de clima interior semelhante ao que me faz reconhecer o direito à vida de toda forma de existência. Não se pode recusar a ninguém o direito de viver à sua maneira, quando se reivindica, para si, este mesmo direito. Por conta da educação que recebemos em nossa sociedade, me vi confrontado com uma visão de mundo que recusa tal direito. Já mencio verve

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nei como, no colégio interno, tentaram me convencer de que eu era diferente dos outros: sendo católico, era melhor do que aqueles que não pertenciam a este grupo. Visceralmente, jamais pude aceitar isso e, no curso da vida, fui levado a rejeitar todas as separações, todas as visões de mundo que excluem outras formas de vida, inclusive as que fazem do homem um ser completamente aparte. Para mim, os animais e o que se chama de “natureza” estão incluídos na comunhão universal.

— Então, você deve se sentir bem dentro da proposta franciscana... — Se nos situarmos no mundo cristão. Mas, também me identifico com a experiência de vida dos indígenas da América. Ou ainda, considerando ideologias nascidas nas sociedades industrializadas, com a corrente ecológica. — Você, às vezes, não é acusado de uma certa inocência angelical? — Em que sentido? Não ignoro que o social necessariamente se encontra em situação de conflito. E, exatamente a este respeito, minha linguagem é certamente menos utópica do que a linguagem tradicional, notadamente a do sistema penal, que se apóia em um pretenso consenso absolutamente irreal... — O que eu queria dizer é que poderia parecer irrealista o fato de se contemplar passivamente todas as maneiras de ser, sem, às vezes e energicamente, tomar partido contra algumas delas. — Reconheço que meu modo de falar de solidariedade pode se prestar a interpretações de que eu jamais sentiria qualquer agressividade. Mas, isto é total- mente falso. Os sentimentos de que falei não excluem nem o espírito de luta, nem a agressividade, nem a eli 2 2002

minação de determinadas situações ou maneiras de agir. Sou capaz de sentir rejeições extremamente fortes e apaixonadas.

— Como é possível viver numa intensa comunhão com todas as formas de vida e, ao mesmo tempo, sentir vontade de destruir um adversário? — Eu não confundo — ou melhor, não confundo mais — meus adversários com aquilo que eles defendem e que acho que devo combater. Jamais fui pacifista — isto é um fato. Foi a um braço armado da Resistência que pertenci durante a ocupação e continuo achando que era assim que eu tinha que participar daquela luta. É certo que, naquela época, eu ainda não tinha a visão clara de que o adversário não deveria ser confundido com a guerra. Mas, distanciado no tempo e a partir das experiências vividas depois, posso dizer que o tipo mesmo de solidariedade que experimento no mais profundo de meu ser me impede, pelo menos agora, de confundir as pessoas envolvidas num combate com as situações ou os ordenamentos sociais contra os quais me levanto e com os quais estas pessoas se acham comprometidas. — Como você faz para conjugar seu lado que poderíamos chamar de “moralizante” com um sentido de solidariedade que quer dar a cada um a oportunidade de viver seu próprio modo de existência? — De fato, a primeira vista, isto pode parecer paradoxal. Mas, na minha prática de vida, não é. Fundamentalmente, não me permito julgar, avaliar uma situação, sem antes tentar extrair um modo de vida de seu interior e de sua globalidade. Não parto mais da idéia de que uma outra forma de vida é, a priori, pior do que a minha. Além disso, tenho uma curiosidade natural que me impele a me interessar por tudo que é diferente e a verve

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ter prazer em descobri-lo. Para mim, a descoberta de um outro modo de ser no mundo não é uma experiência negativa, mas sim estimulante!

— Mas, o que você faz quando, tendo avaliado uma situação de seu interior e a colocado em seu contexto global, seu julgamento é crítico? — Sem dúvida, é preciso fazer aqui uma distinção importante. Pessoalmente, posso considerar nocivos, maus ou indignos um determinado modo de vida ou uma determinada situação na vida. Por exemplo, o lugar reservado à mulher em algumas sociedades. Mas, se as próprias interessadas não vêem aí um problema, penso que eu jamais deveria impor meu ponto de vista. Num tal contexto, posso apenas procurar incentivá-las a uma mudança, que devem realizar por si mesmas. A história está cheia de processos de mudança que provocaram desgraças imensas exatamente porque se quis impor aos outros, para seu bem, um modo de vida “melhor”, sem consultá-los. Este modo de agir me parece profundamente contrário à igualdade fundamental dos homens, como a entendo. Isto quer dizer que, para participar de um processo de mudança num caso desses, meus meios são limitados. Posso tentar convencer; posso desmistificar certas coisas; posso apontar outros modos de agir — numa espécie de convite para que o outro empreenda ou participe de um processo de mudança. E, estando no poder, procurarei os meios de proporcionar condições que permitam a este outro ou a estes outros descobrir um outro modo de vida — sem jamais ignorar seu direito fundamental de viver segundo sua própria visão das coisas. O outro caso é mais simples: quando alguns submetem outros a um modo de vida que acarreta danos ou injustiças. Aqui, nos encontramos em pleno conflito. E, se me engajo neste conflito, vou participar de uma ação — talvez uma luta — em 2 2002

curso, na qual tratarei de desempenhar um papel útil, que seja, ao mesmo tempo, compatível com minha visão de mundo. Isto quer dizer que farei tudo para jamais desumanizar meus adversários, o que, naturalmente, poderá colocar toda sorte de problemas no plano concreto.

— Você não acredita na maldade humana? — Foi pergunta que meu filho me fez, quando tinha 4 ou 5 anos. “Pai, existem pessoas verdadeiramente más?”, ele perguntou. E respondi: “Não sei, Lodewyk; eu nunca conheci nenhuma”. Hoje, 28 anos mais tarde, ainda posso dizer que jamais encontrei alguém de quem eu estivesse inclinado a dizer, após ter estabelecido um contato verdadeiro: “trata-se de um homem mau”. Conheci muitas pessoas difíceis. Muito freqüentemente encontro pessoas aborrecidas. Mas, nunca alguém que, após um esforço de compreensão, me tenha parecido repugnante, ou mesmo essencialmente distante de mim. Para mim, cada ser é, ao mesmo tempo, profundamente diferente e existencialmente próximo. Isto me livra de explicações do mundo que se assentam em discriminações e pretendem provocar o isolamento de algumas pessoas vistas como más. Minha própria experiência pessoal me convenceu que tais explicações — aliás derivadas do enfoque voluntarista de que falamos — são pouco realistas e menos proveitosas para a vida social do que o enfoque fenomenológico, que é o meu. A criminologia anglo-saxã mostrou que o “criminoso”, a partir da definição que ele dá da situação, acha seu comportamento mais ou menos “normal”, ou, pelo menos, não pior do que o comportamento da maioria das pessoas. Assim, quando se admite que o outro possa dar àquilo que ele vive um sentido respeitável — mesmo que, pessoalmente, não se simpatize com sua maneira de ver — podem-se encontrar respostas humanas para verve

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as situações conflituosas. As explicações teóricas que se apóiam em distinções maniqueístas, ao contrário, desembocam num dessolidarizar-se, que, para mim, é inaceitável.

— Você mostrou como algumas experiências o levaram a não dar crédito senão aquilo que você possa verificar pessoalmente, não só pela observação e pelo raciocínio, mas por uma espécie de comunhão interior com os seres — aquilo que você chama de seu sentimento de solidariedade. Você mencionou sua desconfiança para com as instituições — redutoras por natureza — e sua fé no homem, em todos os homens, em direção aos quais você é impulsionado por uma aptidão especial de abertura para o outro. Mas, para realmente explicar sua posição abolicionista, você disse que tinha que recorrer a uma outra de suas atitudes profundas... — Sim, para explicar totalmente quem sou, é preciso que eu tente demarcar uma última experiência fundamental, aquela da conversão. — Em que sentido você emprega esse termo? — Vou usar uma metáfora. Podemos definir a nós mesmos como uma espécie de armário composto de múltiplas gavetinhas. Aí organizamos todos os dados que nos chegam: o que vemos, as mensagens que recebemos do exterior ou do interior; aí arquivamos também nosso saber. E temos a tendência de recusar as mensagens que não coincidem com esta organização pessoal. Se não temos mais gavetas, ou se aquilo que nos chega não vem no formato que se ajusta às gavetas existentes, nós o eliminamos. Mas, se ao invés de rejeitar o dado novo, aceitamos rever todas as classificações e reorganizar todas as gavetas, estaremos diante da conversão de que falo. Na realidade, a conversão sempre implica num salto, porque não se sabe exatamente no 2 2002

que vai dar uma tal reorganização. E um salto mortal, pois a conversão necessariamente se produz em dois níveis: o da compreensão da realidade e, paralelamente,

o da prática que dela decorre. — É angustiante, não? — As vacilações que podemos ter diante do salto diminuem à medida em que vamos fazendo este tipo de experiência. No que me diz respeito, eu não falaria de angústia. A ansiedade experimentada diante de uma conversão necessária vem da idéia de que vamos per- der nossa identidade. E minha experiência me demonstrou o contrário. Jamais perdi qualquer coisa minha nos saltos que dei. Tudo foi reinterpretado com novos significados, mais profundos e mais verdadeiros. Numa conversão, não nos perdemos; nos encontramos a nós mesmos. Foi por ter sentido este fenômeno como extrema- mente proveitoso que, em determinado momento, pude saltar para a posição abolicionista. — Mas, o abolicionismo não poderia permanecer como uma posição pessoal solitária! — Exatamente! Eu pretendia dizer que há dois tipos de conversão: a individual e a coletiva. Para abolir o sistema penal, será preciso uma conversão coletiva. — As conversões coletivas são raras. — É isso que quase todo mundo pensa. Ouvimos pessoas falando à nossa volta de uma forma que deixa a impressão de que os ordenamentos sociais tal como existem são eternos, ou, se não o são, só mudariam muito lentamente. Durante um bom tempo, partilhei desta opinião, mas a experiência fez com que eu aprendesse a me libertar desta idéia. — Você teve a experiência de conversões coletivas? verve

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— Todos nós tivemos esta experiência! Em primeiro lugar, através da história, sabemos que todas as civilizações viveram de acordo com ordenamentos e expressaram visões que, hoje, são totalmente incompreensíveis. Como se pôde acreditar nas bruxas e acreditar ainda que, queimando-as, se poderia evitar toda sorte de catástrofes? Hoje em dia, entre nós, ninguém poderia aderir a uma tal idéia, nem reivindicar um retorno a tal prática. É certo que este exemplo pode parecer distante e se poderia dizer que tais crenças desapareceram gradualmente. Mas, é possível citar outros exemplos mais próximos de nós e que evocam reviravoltas espetaculares: a abolição da escravatura e a proibição de castigos corporais nas escolas, pondo fim, subitamente, a práticas que não compreendemos mais não só como podiam ser aceitas, mas sobretudo como podiam ser desejadas ao nível dos princípios. — Os exemplos que você dá são bastante convincentes, mas se situam numa história que não vivemos. Você falava de experiências pessoais! — Sim. E, quando examino minhas próprias experiências, constato que, em quase 60 anos, vi mudanças enormes que ninguém podia imaginar que se produziriam tão rapidamente. Vou mencionar duas delas, que me impressionaram particularmente; a primeira foi a mudança operada na Alemanha, no momento em que os nazistas chegaram ao poder. Eu vi como, em poucos anos, o modo de compreender a sociedade e de considerar determinados grupos da população — os judeus — mudou na mentalidade de muitas das pessoas e como, ao mesmo tempo, suas práticas se modificaram. Por outro lado, também vi como, depois da guerra, da mesma forma e ao inverso, nasceram novas visões e suas práticas correspondentes, tão rapidamente quanto aquelas... 2 2002

— Você falava de um outro exemplo... — Sim, e igualmente surpreendente. Nasci numa região dos Países-Baixos onde, como já mencionei, as instituições da Igreja dominavam quase que totalmente as instituições civis: bibliotecas, escolas, sindicatos estavam nas mãos da Igreja institucional, que, evidentemente, também exercia seu domínio sobre as práticas cotidianas, notadamente sobre a questão das relações sexuais e da utilização de técnicas anticoncepcionais. Qualquer observador destas práticas diria que se tinham ali opiniões irremovíveis. Eram opiniões motivadas pelas posições oficiais da Igreja e eu vi toda essa rede institucional se desmoronar em cinco anos! Neste curto lapso de tempo, as pessoas se libertaram das obrigações da Igreja institucional e modificaram profundamente certas práticas ligadas à ideologia veiculada por esta instituição, notadamente seu comportamento sexual. Antes que um tal acontecimento se produzisse, eu teria dito que era impossível que num intervalo tão curto relações pessoais se modificassem em profundidade naquilo que têm de mais íntimo. Mas, eu assisti este acontecimento! E dele extraí a firme convicção de que não se deve jamais considerar impossível uma conversão coletiva, no sentido em que emprego este termo. — Tampouco se pode assegurar que ela vá se produzir! — É verdade. Ninguém pode pretender controlar ou provocar voluntariamente uma mutação. E muita gente tem razão ao dizer que, de onde está, não pode fazer nada ou quase nada. Mas, cada um, esteja onde estiver, pode, ao menos, se libertar da idéia de que toda aspiração de mudança é em vão. Toda pessoa que, no mais fundo de si mesma, rejeita como mau um certo estado de coisas, pode fazer frutificar interiormente, verve

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como uma força positiva, seu desejo de mudança e viver, como diz o apóstolo, “neste mundo, sem ser deste mundo”. Em termos cristãos, isto tem um nome: esperança.

Nota

1 Ocupantes ilegais de habitações abandonadas. (Nota da tradutora)

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medidas de segurança: punição do enfermo mental e violação da dignidade

maria lúcia karam * 1. Limitações constitucionais ao poder do Estado de punir O ordenamento jurídico-penal brasileiro prevê a imposição de medida de segurança consistente em internação, por tempo indeterminado, em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou em outro estabelecimento adequado, a portadores de enfermidades mentais, que se revelem inimputáveis autores de condutas penalmente ilícitas, admitido o tratamento ambulatorial apenas quando tal conduta for punível com pena de detenção (artigos 96 a 99 do Código Penal).

Nas regras do artigo 29 da Lei nº 6.368/76, ainda em vigor, também se encontra a previsão de medida de segurança consistente em tratamento médico, para au

* Juíza de Direito aposentada, ex-Defensora Pública no Estado do Rio de Janeiro e ex-Juíza Auditora da Justiça Militar Federal. Integrante do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação de Juízes para a Democracia e do Instituto Carioca de Criminologia. verve, 2: 210-224, 2002

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tores de condutas relacionadas a drogas qualificadas de ilícitas, criminalizadas por meio daquela lei, que, em razão da dependência, sejam inteiramente incapazes de entender o caráter ilícito do fato ou de se determinar de acordo com este entendimento. Em tais hipóteses, a dependência a drogas qualificadas de ilícitas é identificável à inimputabilidade.1

A análise destas previsões legais de medidas de segurança para inimputáveis, como deve acontecer na discussão de qualquer tema concernente ao ordenamento jurídico, há de se guiar pela permanente busca de efetivação da supremacia da Constituição Federal, assim se desenvolvendo sob a ótica condicionadora da validade (ou da eficácia) dos dispositivos legais, disciplinadores dos institutos abordados, à sua compatibilidade e adequação aos comandos emanados dos princípios e regras constitucionais.

A Constituição Federal de 1988 introduziu um preâmbulo, para afirmar, expressamente, que a Assembléia Nacional Constituinte se reunia para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança,

o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Acorde com tal preâmbulo, a regra do caput do artigo 1º da Carta logo estabelece que a República Federativa do Brasil constitui-se em um Estado Democrático de Direito, tendo, dentre seus fundamentos, como apontado em seu inciso III, a dignidade da pessoa humana. Vem, então, o artigo 5º, que começa por afirmar a inviolabilidade dos direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, para, em seguida, detalhar os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos.

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A essência do Estado Democrático de Direito encontra- se na exigência do consentimento e do controle populares para o exercício do poder estatal e na exigência de submissão à lei, não só de seus habitantes em geral, mas, principalmente, daqueles que exercem o poder, com vista a garantir os direitos, a dignidade e, assim, o bem-estar de cada indivíduo.

A concretização desta essência conduz a que a função maior do ordenamento jurídico, no Estado Democrático de Direito, consista na criação de limites ao exercício do poder estatal, de forma a assim assegurar os direitos e a dignidade dos indivíduos.

A dignidade, por sua vez, traz, em sua essência, a liberdade ou a autodeterminação do indivíduo, isto é, a sua capacidade de escolha, sem a qual sequer se poderia pensar, seja em pessoa, seja em democracia. Implica, ainda, na consideração do indivíduo como um fim em si mesmo, vedando sua utilização como instrumento de realização de quaisquer outros fins, estatais ou não. A liberdade, essencial ao reconhecimento da dignidade, impede, também, a transformação moral forçada do indivíduo, assegurando-lhe a opção por pensar, ser e agir como bem lhe aprouver, enquanto não afetar concretamente direitos de terceiros.

Destas premissas decorre o princípio da prevalência da tutela da liberdade do indivíduo sobre o poder do Estado de punir, funcionando aquela tutela como limitação ao poder estatal. Tal prevalência da tutela da liberdade já se traduz na própria proibição da auto-tutela, enunciada na fórmula nulla poena sine judicio, contida na cláusula fundamental do devido processo legal, a fazer com que a pretensão punitiva seja sempre insatisfeita, a aplicação da pena não podendo se dar sem prévia realização do processo.

A prevalência da tutela da liberdade do indivíduo, apontando para a contenção e a redução do poder do

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Estado de punir, há, portanto, de permanentemente dar as diretrizes e permanentemente se exercitar, no campo penal, em todas as etapas do processo de criminalização, não só para avanço e fortalecimento dos postulados do Estado Democrático de Direito, em que tal prevalência se inclui, mas, antes disso, para assegurar sua própria subsistência, freqüentemente ameaçada pela tensão estabelecida entre seus princípios e as manifestações autoritárias, que permanecem em seu interior, naturalmente, não existindo Estados de Direito ou Estados Democráticos de Direito reais, que sejam puros ou perfeitos, mas apenas Estados de Direito ou Estados Democráticos de Direito historicamente determinados que controlam e contêm, melhor ou pior, as manifestações autoritárias, sobreviventes em seu interior.

O poder de punir, concretizado através das seletivas e violentas intervenções do sistema penal, constitui uma destas manifestações autoritárias, que maiores riscos traz ao Estado de Direito2.

O sistema penal, gerador de situações muito mais graves e dolorosas do que os conflitos qualificados como crimes, que, enganosamente, anuncia poder resolver, alimenta e alimenta-se de uma nefasta e perversa fantasia, que faz crer que a punição de selecionados auto- res daquelas condutas conflituosas qualificadas como crimes, serviria para trazer segurança, tranqüilidade e proteção. A reação punitiva, no entanto, não passa de mera manifestação de poder, servindo apenas para manter e reproduzir as estruturas dominantes em que este surge. Do ponto de vista das almejadas segurança, tranqüilidade e proteção, as intervenções do sistema penal constituem tão somente uma ilusão cruel, a permitir a subsistência de um sofrimento, tão inútil quanto profundo, que atinge dimensões extremas, quando encon

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tra, como ainda hoje, na privação da liberdade, a forma primordial de concretização da reação punitiva.

A contenção e a redução deste sofrimento, tão profundo quanto inútil, fazem ainda mais imperativo o compromisso com a efetividade dos direitos fundamentais do indivíduo e, assim, com a permanente reafirmação da prevalência da tutela da liberdade do indivíduo sobre o poder do Estado de punir.

Para assim controlar e conter as manifestações autoritárias, presentes no interior do Estado Democrático de Direito, permanentemente reafirmando a prevalência da tutela da liberdade do indivíduo sobre o poder de punir, é preciso que as normas constitucionais, garantidoras desta prevalência, sejam sempre interpretadas em forma que lhes dê a máxima efetividade.

Dentre as linhas mestras, a serem seguidas, três hão de ser sublinhadas: nenhuma interpretação pode retirar ou diminuir a razão de ser da norma constitucional considerada; o sentido a ser atribuído à norma constitucional há de ser o que maior eficácia lhe dê; a cada norma constitucional, vista em sua relação com as demais, há de ser conferido o máximo de capacidade de regulamentação3.

É, pois, sob estes ângulos, que deve se desenvolver a análise das previsões legais de medidas de segurança para inimputáveis, a, naturalmente, partir da compreensão da culpabilidade, como elemento inseparável da identificação da conduta criminalizada e como princípio limitador do poder do Estado de punir.

2. A Constituição Federal e o princípio da culpabilidade As limitações ao poder de punir, inseparáveis dos postulados do Estado Democrático de Direito, estão consagradas nos princípios e regras constitucionais

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garantidores da tutela da liberdade, podendo vir ali explicitadas ou diretamente decorrendo de cláusulas positivadas no texto constitucional.

O princípio da culpabilidade, embora não conste de enunciado expresso no texto constitucional, diretamente decorre do reconhecimento da dignidade do indivíduo, cuja proteção, como antes assinalado, constituindo função maior do ordenamento jurídico, no Estado Democrático de Direito, igualmente constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, conforme assentado na regra do inciso III do artigo 1º da Constituição Federal.

A culpabilidade consiste, basicamente, na possibilidade de se exigir do autor de uma conduta penalmente ilícita que ele tivesse um outro comportamento, ajustado ao que determinam as leis criminalizadoras.

O princípio que estabelece a culpabilidade como elemento indispensável ao juízo de reprovação que poderá recair sobre o autor de uma conduta penalmente ilícita, dando, ao mesmo tempo, a medida da reprovação possível, delimita a intervenção do poder do Estado de punir, na esfera de liberdade do indivíduo.

Dizendo respeito à capacidade de escolha (isto é, à autodeterminação) do indivíduo — capacidade esta, como visto, inerente ao próprio conceito de pessoa —, o princípio da culpabilidade mostra-se inseparável do reconhecimento de sua dignidade. Sua função garantidora integra-se aos princípios limitadores do poder do Estado de punir, gerados por aquela função maior do ordenamento jurídico, no Estado Democrático de Direito, de proteção à dignidade do indivíduo.

Ao derivar do reconhecimento da capacidade de escolha do indivíduo, o princípio da culpabilidade condiciona o exercício do poder do Estado de punir à demonstração da possibilidade exigível de motivação

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pela norma do autor da conduta penalmente ilícita (o injusto penal) concretamente realizada.

Assim, além de impedir a reprovação pela mera causação de um resultado lesivo (imputação de resultado fortuito), o princípio da culpabilidade impede qualquer reprovação por uma escolha que a pessoa não pôde fazer, ou que se a reprove quando não pôde exercitar sua capacidade de escolha, sempre considerada tal escolha tão somente em relação à conduta ilícita concretamente realizada.

A medida da culpabilidade é dada, exatamente, pela revelação do maior ou menor âmbito de autodeterminação da pessoa, na realização da conduta considerada, a estabelecer a maior ou menor possibilidade de se lhe exigir que, no caso concreto, escolhesse um outro comportamento ajustado ao que determinam as leis criminalizadoras.

É por isto que, para o reconhecimento da prática de um crime, não basta a realização de uma conduta, definida em um dispositivo legal criminalizador e não permitida pela ordem jurídica (a conduta penalmente ilícita ou o injusto penal), sendo ainda indispensável que, nas circunstâncias em que concretamente realizada aquela conduta penalmente ilícita, pudesse seu autor ter agido de outra forma, neste enunciado se contendo a concepção da culpabilidade como exigibilidade.

Para que o Estado possa exigir este outro comportamento, faz-se necessário, antes de tudo, que a pessoa tenha capacidade psíquica de compreensão ou de autodeterminação, em relação ao caráter ilícito de sua conduta. A incapacidade psíquica, que configura a inimputabilidade, necessariamente afasta a culpabilidade e, conseqüentemente, a existência do crime.

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3. Medidas de segurança para inimputáveis e vulneração do princípio da culpabilidade Embora reconhecendo a ausência de culpabilidade e, assim, a inexistência de crime nas condutas daqueles que se revelam inimputáveis, o ordenamento jurídico- penal brasileiro, paradoxalmente, insiste em alcançálos, ao impor, como conseqüência da realização da conduta penalmente ilícita, as chamadas medidas de segurança, com base em uma alegada “periculosidade” atribuída a seus inculpáveis autores.

Aqui, indevidamente, se abre o espaço para manifestação da aliança entre o direito penal e a psiquiatria, responsável por trágicas páginas da história do sistema penal. É sempre bom lembrar da simetria existente entre o manicômio e a prisão, instituições totais de controle, que têm sua origem comum nos séculos XVIII e XIX, quando, com a evolução do processo de industrialização, se consolidam as formações sociais do capitalismo. 4

A idéia de “periculosidade” não se traduz por qualquer dado objetivo, ninguém podendo, concretamente, demonstrar que A ou B, psiquicamente capaz ou incapaz, vá ou não realizar uma conduta ilícita no futuro. Já por isto, tal idéia se mostra incompatível com a precisão que o princípio da legalidade, constitucionalmente expresso, exige de qualquer conceito normativo, especialmente em matéria penal. A “periculosidade” do inimputável é uma presunção, que não passa de uma ficção, baseada no preconceito que identifica o “louco” — ou quem quer que apareça como “diferente” — como “perigoso”.

Na realidade, as medidas de segurança para inimputáveis, consistindo, como prevêem as mencionadas regras dos artigos 96 a 99 do Código Penal e do artigo 29 da Lei nº 6.368/76, na sujeição obrigatória e

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por tempo indeterminado a tratamento médico (ambulatorial ou mediante internação), não passam de formas mal disfarçadas de pena, sua incompatibilidade com a Constituição Federal, por manifesta vulneração do princípio da culpabilidade e, conseqüentemente, por manifesta vulneração da própria norma constitucional, que aponta a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, decerto, havendo de ser afirmada.

Quando se considera a conduta penalmente ilícita como um diferencial entre enfermos mentais, submetendo- se os que são apontados como inimputáveis autores daquela conduta à intervenção do sistema penal,

o que se está efetivamente fazendo é passar por cima do princípio da culpabilidade, para, assim, impor-lhes uma indevida punição pela prática daquela conduta. No que concerne aos inculpáveis autores de condutas criminalizadas através da Lei nº 6.368/76, em razão da dependência, deve ser destacado que, em se tratando da simples posse de drogas qualificadas de ilícitas para uso pessoal ou de seu consumo em circunstâncias que não ultrapassem o âmbito individual, a imposição do tratamento médico obrigatório, integrado ao sistema penal, antes mesmo de violar o princípio da culpabilidade, reafirma a igualmente inconstitucional violação da liberdade individual, da intimidade e da vida privada, presente em qualquer intervenção do Estado sobre autores de condutas que não afetam concretamente bens jurídicos de terceiros.

Mas, este inconstitucional tratamento obrigatório já vem sendo aplicado até mesmo para aqueles que têm íntegra sua capacidade psíquica, nas tentativas, diretamente veiculadas pelos Estados Unidos da América, de transportar, para o Brasil, as chamadas drug courts, que, aqui, se pretende sejam adotadas, com a tradução literal de “tribunais de drogas”, ou sob a denominação de

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Medidas de segurança: punição do enfermo mental e violação...

“justiça terapêutica”, esta última explicitando a retomada daquela nefasta aliança entre o direito penal e a psiquiatria.

Segue-se, aqui, o rastro aberto pela Lei nº 9.099/95, que, tratando dos juizados especiais criminais, consagra a idéia da aplicação antecipada de penas alternativas à prisão, em hipóteses de infrações penais, consideradas de pequeno ou médio potencial ofensivo, através da aceitação, por parte do réu, do recebimento destas penas, explícitas ou disfarçadas, sem que se discuta e comprove a efetiva prática da infração penal e sem que haja, assim, um efetivo exercício do direito de defesa. Nesta linha, alguns órgãos da Justiça criminal vêm impondo um legalmente não previsto tratamento médico, como forma de antecipar a concretização dos princípios embutidos nas drug courts norte-americanas.

Assim, estende-se o tratamento médico a imputáveis, o que já contraria as próprias leis penais ordinárias vigentes. Assim, amplia-se o alcance do sistema penal, com a imposição de verdadeiras penas, negociadas ao preço da quebra de diversas garantias do réu, derivadas da cláusula fundamental do devido processo legal, constitucionalmente consagrada. Neste ponto, vale destacar a observação, notada na prática desenvolvida na matriz norte-americana, sobre a violação dos princípios do contraditório e da imparcialidade do julgador, configurada pela ação conjunta de promotor, defensor e juiz, para conduzir o réu a aceitar o programa de tratamento5.

Esta importação das drug courts chega, ainda, ao âmbito dos juizados da infância e da juventude. Ali também, pretende-se violar a liberdade individual, a intimidade e a vida privada de adolescentes, através da imposição de um tratamento médico obrigatório, sem que sequer seja externado transtorno mental que, teoricamente, o pudesse aconselhar.

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A Constituição Federal de 1988 garante a liberdade de crianças e adolescentes, na regra contida em seu artigo 227. Também neste campo, não se pode esquecer que as leis infraconstitucionais têm sua vigência (ou aplicabilidade) condicionada à sua compatibilização com o disposto na Lei Maior. As medidas restritivas da liberdade de adolescentes, como as que são previstas nas regras do artigo 112 ou em alguns incisos do artigo 101 da Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), decerto, não autorizam um tal antecipado tratamento médico obrigatório, cuja imposição, diante da prática de um alegado ato infracional (correspondente às infrações penais), somente poderá se dar, através de sentença, proferida com a observância das garantias do devido processo legal.

Na hipótese de simples posse de drogas qualificadas de ilícitas para uso pessoal ou seu consumo em circunstâncias que não ultrapassem o âmbito individual, não se pode afirmar a prática de ato infracional, da mesma forma que não podem tais condutas ser objeto de criminalização.

O discurso, que acena com uma supostamente necessária “proteção” ao adolescente, representa apenas uma desautorizada insistência em fazer reviver a antiga doutrina da “situação irregular”, que, se fazendo presente no revogado Código de Menores (Lei nº 6.697/ 79), que precedeu a Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), negava à criança e ao adolescente a qualidade de sujeitos de direitos — e, portanto, de pessoas dotadas de cidadania —, utilizando-se de uma alegada proteção àqueles como pura e simples forma de controle social.

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4. Tratamento médico e sistema penal: incompatibilidade O tratamento de qualquer transtorno mental não se coaduna com o caráter punitivo, indissoluvelmente ligado à sua determinação, por parte de órgãos integrantes do sistema penal, submetidos a conclusões de um discurso médico ultrapassado e igualmente comprometido com a repressão e o controle dos indivíduos.

Em um tratamento integrado ao sistema penal, os objetivos de controle sobre o indivíduo acabam por se sobrepor aos objetivos terapêuticos e, pior do que isso, acabam mesmo por se sobrepor a princípios éticos.

Pense-se, por exemplo, no tratamento obrigatório, imposto a dependentes de drogas qualificadas de ilícitas, nos termos das regras do artigo 29 da Lei nº 6.368/

76. Em um tal tratamento, exige-se uma nem sempre possível ou desejável abstinência do uso da droga qualificada de ilícita, tampouco se admitindo a “frustração” do tratamento ambulatorial, o que contraria os fatos bastante conhecidos de que “recaídas”, ausências ou interrupções de sessões são episódios normais em qualquer tratamento, nem sempre traduzindo um fracasso dos objetivos terapêuticos. Tais exigências, somando-se à própria natureza obrigatória do tratamento e à sua integração ao sistema penal, implicam no controle dos órgãos da Justiça criminal sobre a pessoa a quem o tratamento foi imposto, controle este que é feito a partir de informações prestadas pelos próprios encarregados do tratamento.

O comprometimento do tratamento é evidente. Como esperar que um paciente se abra com um terapeuta, que age, ao mesmo tempo, como uma espécie de informante? Mas, pior do que comprometer o desenrolar do tratamento, a integração deste tratamento ao sistema penal implica no rompimento com a ética, que deve pre

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sidir as relações entre terapeuta e paciente. Baseandose na confiança e no sigilo, voltados para a proteção do paciente, esta ética é, necessariamente, violada, quando o profissional da saúde, encarregado do tratamento, rompendo com o próprio dever de sigilo inerente à sua profissão, relata — ou, talvez seja mais apropriado dizer, delata —, para um órgão de controle, comportamentos do paciente, que poderão atuar contra ele, piorando sua situação jurídica.

No campo dos transtornos mentais, não pode haver espaço para a atuação da Justiça criminal. Neste campo, a atuação do Poder Judiciário, em sua função maior de garantidor dos direitos fundamentais dos indivíduos, há de se dar no juízo cível, destinando-se, unicamente, a controlar a legalidade de eventuais tratamentos compulsórios, requeridos por familiares ou determinados por profissionais da saúde, na mesma linha de atuação desenvolvida, por exemplo, em hipóteses de pedidos de interdição.

Este controle da legalidade, visando a garantia dos direitos fundamentais do portador de transtornos mentais, decerto, há de levar em conta que tratamentos compulsórios, mesmo quando requeridos por familiares ou determinados por profissionais da saúde, só se autorizam em casos extremos, em períodos agudos, em que manifestado um total comprometimento da capacidade de escolha do indivíduo e, simultaneamente, demonstrada uma agressividade concretamente produtora de danos a si e a terceiros, em nada interessando a identificação ou não da prática de condutas penalmente ilícitas, atribuídas ao enfermo mental.

Neste ponto, vale repetir que, quando se considera a conduta penalmente ilícita como um diferencial entre enfermos mentais, submetendo-se os que são apontados como inimputáveis autores daquela conduta à intervenção do sistema penal, o que se está efetivamente

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fazendo é passar por cima do princípio da culpabilidade, para, assim, impor-lhes uma indevida punição pela prática daquela conduta.

Também vale repetir que a liberdade, essencial ao reconhecimento da dignidade, assegurando ao indivíduo a opção por pensar, ser e agir como bem lhe aprouver, enquanto não afetar concretamente direitos de terceiros, impede sua transformação moral forçada. O tratamento médico compulsório do portador de transtornos mentais não pode, pois, ser imposto por mera vontade ou conveniência de médicos ou familiares, sob mero pretexto de “proteção” ou de uma verticalizada identificação do que seria melhor para o paciente. Aqui também, a alegada “proteção” pode acabar por se transformar na negação da cidadania e em pura e simples forma de controle social.

Notas

1 Os dispositivos correspondentes do projeto de lei nº 1873/91 (nº 105/96 no Senado Federal), que resultou na nova Lei nº 10.409, de 11 de janeiro de 2002, restringiam o reconhecimento da inimputabilidade, em razão da dependência, à realização de condutas relacionadas à posse para uso pessoal de drogas qualificadas de ilícitas. Tais dispositivos, no entanto, foram alcançados pelo veto do Presidente da República a todo o capítulo III daquele projeto. O projeto de lei nº 6.108/2002, encaminhado ao Congresso Nacional pelo Poder Executivo, retoma a linha seguida na Lei nº 6.368/76, reconhecendo a inimputabilidade, em razão da dependência, qualquer que seja a conduta penalmente ilícita praticada.

2 A este respeito, deve ser consultado o Derecho Penal – parte general. Buenos Aires, Ediar, 2000, de Eugenio Raúl Zaffaroni, em que é profundamente desenvolvido este tema, a permear toda a obra, na delineação de um direito penal orientador das decisões judiciais, em sua função de limitação e contenção das manifestações de poder próprias do Estado policial, presentes no interior do Estado Democrático de Direito.

3 Jorge Miranda. Manual de Direito Constitucional, tomo II, 2° ed. . Coimbra Editora Limitada, 1988, p. 229.

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4 Sobre o tema, sempre se faz necessária a remissão à leitura da obra clássica de Michel Foucault. Vigiar e punir, 25° ed. Petrópolis, Editora Vozes, 2002.

5 Observação neste sentido pode ser encontrada em textos divulgados no site www.drugwarfacts.org.

RESUMO

O artigo problematiza como a criação de uma jurisprudência específica, sob a justificativa de acelerar o andamento da Justiça, abre vias para a incrementação do sistema penal ao propiciar a renovação da antiga aliança da psiquiatria e direito penal. Abarca, assim, em seu espectro os considerados inimputáveis, imprimindo a lógica da punição na alegada distensão da aplicação de tratamento. O detalhamento de tal questão explicita violações aos imperativos consoantes à Constituição e ao Estado democrático de Direito.

ABSTRACT

This article discusses how the creation of a specific jurisprudence, under the excuse of accelerating the pace of justice, opens paths to the enhancement of the penal system when it allows the renewal of the ancient alliance between psychiatry and penal law. It comprises, thus, in its range the ones considered not imputable, establishing the logic of punishment in the alleged distension of the application of treatment. The specification of such matter demonstrates violations of imperatives associated to the Constitution and the democratic rule of law.

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intolerável

edivaldo vieira da silva * É assim que a prisão está me dilacerando por dentro. Fere-me a cada dia. Cada dia me leva mais longe de minha vida. E sequer estou consciente de como está se dando minha dissolução. De qualquer modo, sou incapaz de detê-la.

Jack Henry Abbott

Friedrich Nietzsche se contrapondo à tradição dialética alemã, fundada em Hegel, construiu sua concepção filosófica do “Eterno Retorno”. Assenta-se no resgate da “diferença” subsumida no morfismo da síntese dialética hegeliana. Sua perspectiva do “Eterno Retorno” se manifesta na afirmação da própria vida, no enfrentamento — em Gaia ciência — do demônio que pousa ao nosso lado e inquire sobre a nossa predisposição a repetir a nossa existência indefinidamente, com

* Mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP. verve, 2: 225-244, 2002

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suas mazelas, crueldades, dores, estados de vilania e de nobreza.

O Eterno Retorno nietzscheano, no entanto, não significa o retorno do mesmo, mas, sua reaparição como devir, acontecimentos saltando em gradientes de diversidades que afirmam a singularidade das Ariadnes1. O mesmo se diversifica, se desterritorializa e se reterritorializa novamente, no embate de forças que produzem poder e resistências.

A ordem jurídica, seu instrumento de controle — a polícia —, sua instituição de vigilância e confinamento modelar, a prisão, e os dispositivos midiáticos prolongam ad perpetuum a construção do sujeito “delinqüência” para tornar “suportável” a emanação permanente de poder disciplinar na sociedade. No plano de produção da delinqüência, do seu retorno em um campo de relações de forças heterogêneas, este artigo ensaia rastrear a intervenção estratégica de três existências que em seus embates com o Estado e suas instituições disciplinares conseguiram, ainda que de forma efêmera, abalar seu regime de verdade e explicitar sua ordem da maldade. Trata-se das vidas não coexistentes no tempo cronológico, de Caryl Chessman — The Red Light Bandit —, de sua versão brasileira, dos idos da década de sessenta aos noventa do século XX, João Acácio Pereira da Costa, o Bandido da Luz Vermelha, e, Jack Henry Abbott, preso-autor de uma das mais contundentes e reveladoras obras sobre o mundo das prisões, No ventre da besta, escrito e rapidamente celebrado como sensação editorial em1981.

Chessman e a face da morte

Caryl Chessman, nasceu em 1921, de pai descendente de imigrantes dinamarqueses2, passou sua infância e adolescência em bairros pobres da Califórnia,

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em um período em que a família Chessman foi atingida, como mais de oito milhões de norte-americanos, pelo desemprego durante a Grande Depressão de 1929.

Em sua adolescência, Chessman organiza um grupo de amigos que inicialmente cometiam pequenas infrações, por pura diversão, como “ligação direta” de carros para circularem nas ruas de seu bairro. Em seguida passam a chamar a atenção de moradores e da polícia por empreenderem arrombamento e furto de estabelecimentos comerciais; aos dezesseis anos Chessman é preso pela primeira vez e encaminhado para um Reformatório juvenil. Com raros momentos de liberdade, Caryl Chessman passará quase toda sua existência nas prisões, em particular, na prisão de Chino e de Saint Quentin. Em um desses estados provisórios de liberdade, Chessman é preso sob suspeita de ser um ladrão e estuprador — que agia nas colinas de Hollywood, local de encontros amorosos de casais de namorados —, que ganhava as páginas dos jornais locais como The Red Light Bandit, por empunhar um farolete de luz vermelha, semelhante aos usados pela polícia californiana em suas rondas noturnas. Duas de suas vítimas, Mary Alice Meza e Regina Johnson, em seus depoimentos reconheceram Chessman como The Red Light Bandit, o homem que as tinham roubado e molestado sexualmente.

Em um julgamento marcado pela comoção da opinião pública, produzida pela mídia, por uma estratégia de defesa desafiadora3 e por uma longa ficha de delitos passados, Chessman é condenado à pena de morte, sendo conduzido à prisão de Sant Quentin para aguardar sua execução. A partir desse momento começa a história de Caryl Chessman — e não da construção virtual midiática The Red Light Bandit —, sua formação autodidática em Direito, suas petições para a comutação da pena capital em prisão perpétua, a apresentação de recursos para adiar a data de sua execução. A

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potencialidade de seu talento não se represa na leitura e interpretação de textos jurídicos. Chessman adquire reconhecimento internacional como literato por sua obra Cela 2455: corredor da morte e pelos dois livros que lhe seguiram4, contrabandeados para fora da prisão, desafiando o governo da Califórnia e o sistema de controle e apreensão inquisitorial de textos produzidos por presos em Sant Quentin. A repercussão de seus escritos adquire projeção internacional, desencadeando manifestações internacionais contra sua execução e pelo fim da pena capital. No Brasil, destacou-se o então presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Hungria que através de artigos, conferências e cartas dirigidas ao governador da Califórnia, Edmund “Pat” Brown, marca um momento importante da luta, daqueles que Foucault nominava de “reformadores das prisões”:

“(...) Para erradicar o mal, não é preciso erradicar o homem. O que cumpre fazer não é matar o homem criminoso, mas o criminoso no homem. A criminalidade não se extingue ou declina com a pena de morte. Ao invés de arrogar-se arbitrariamente o direito de matar, ao Estado incumbe promover a remodelação da própria sociedade, para que se apresentem melhores condições políticas, econômicas e éticas, eliminadoras das causas etiológicas do crime....” 5

As pressões internacionais, no entanto, não foram suficientes para sustar a execução da sentença e conter o apreço do Estado para a confirmação de sua justiça vingativa. O assassinato oficial de Estado é cumprido, após sete adiamentos da data de sua execução, Chessman é conduzido à câmara de gás em maio de 1961, deixando poucas horas antes, uma carta aberta ao público, nas mãos de um jornalista do San Francisco Examiner, que se transformou em um dos maiores libelos contra a pena de morte e ao regime de crueldade da ordem jurídica da “democracia” norte-americana6 .

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Caryl Chessman dividiu opiniões no mundo inteiro sobre sua culpabilidade ou inocência. Pesava para a formação da opinião pública a favor da convicção de sua culpa, seu reconhecimento por duas vítimas. Por sua inocência, a afirmação de Chessman como escritor e suas declarações de inocência e a acusação de erro judicial à ordem jurídica norte-americana, repetida veementemente até o último momento. Os Estados Unidos, alguns anos antes, apresentavam-se ao mundo como detentores da verdade e distribuidores de justiça após, no espírito da Guerra Fria, levarem para a cadeira elétrica o casal Rosenberg, acusados de espionagem para

o governo russo. Inaugurava-se nos Estados Unidos, no início da década de cinqüenta, a moderna “caça as bruxas” aos inimigos internos de seu regime político, a Era McCarthy. A estratégia de afirmação do poder hegemônico dos Estados Unidos, implacável contra seus inimigos e intolerante diante de tentativas de desafiarlhes, se reproduz nas considerações dos poderes locais, das unidades de sua Federação. O MacCarthismo se manifesta como movimento inquisitorial contra todos os supostos inimigos do regime político norte-americano, no campo da política, do sindicalismo e da indústria cinematográfica, mas também, se expressa como guerra em escala total contra o crime nas ruas. A projeção imagética, da Era MacCarthista, construída para justificar o terror de Estado nos guetos e bairros pobres de concentração de negros e hispânicos foi, de acordo com Jack Henry Abbott, a de um jovem que cresceu em orfanatos e instituições penais para crianças na Califórnia e que foi executado pelos livros que escreveu Caryl Chessman. O suposto The Red Light Bandit é executado, pelo Estado da Califórnia, por repudiar o espetáculo jurídico e por desafiar os dispositivos de controle e interceptação de saberes desestabilizadores da prisão. O adolescen

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te, transformado em adulto, não é ressocializado pela prisão, seu amadurecimento passa pela fuga a um mundo virtual, em uma viagem nômade por todos os territórios e na multiplicidade dos tempos — desencarcerados do rigor de Cronos — que libera o viajante que “não sai do lugar” para percorrer projeções imagéticas, através da leitura. O tempo, na economia da punição, repete continuamente o mesmo instante, hora e segundos, aquele do cometimento da “falta” em associação ao tempo cronológico da pena, alheio e indiferente a outras multiplicidades de tempo que os circundam e que produzem a diferença. O Caryl Chessman retroativo ao qual incidiu a pena, era o não-lugar, distinto daquele que deu seus últimos passos no “corredor da morte”.

O Bandido da Luz Vermelha e os diagramas de poder

João Acácio Pereira da Costa nasceu em 24 de junho de 1942, em São Francisco do Sul, Santa Catarina. Sua infância foi abreviada, pela morte da mãe, quando João Acácio contava com quatro anos de idade, e do pai, quando contava com oito anos, encerrado em um hospital de servidores públicos — era funcionário do Serviço Social da Malária — quando a tuberculose, não mais surto epidêmico como em finais do século XIX e início do XX, ceifava ainda muitas vidas. Transitando por casas de parentes, João Acácio foge e passa a viver como “criança de rua” no centro de sua cidade. Inicia-se na transgressão como forma de sobrevivência, com pequenos furtos de pessoas distraídas no fluxo de uma vida urbana que tardiamente se insinuava no sul do país. Como Chessman, atravessou a infância e adolescência em reformatórios e cadeias de delegacias de polícia, até que em 1966 decide “fazer a vida” em São Paulo.

Neste momento, o imaginário popular detinha-se nas crônicas e balburdias que alimentavam as conversações

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nas ruas e bares da cidade de feitos de ladrões, como Gino Amletto Meneghetti, que eram pródigos em furtar sem serem vistos, durante o “sono inocente de suas vítimas”, sem causar-lhes danos. Inicialmente, João Acácio não se distanciou dessa modalidade de delito considerado suportável nos meios populares. Entre a polícia, o ladrão anônimo era reconhecido pelo padrão recorrente de seus assaltos, arrombamento de grades e janelas com o uso de um “macaco hidráulico”, o que lhe valeu o epíteto de homem-macaco. Em um de seus assaltos, fez uso de um farolete com luz vermelha e se deparou com suas vítimas acordadas. No dia seguinte, a imprensa associou-o a Caryl Chessman. Nascia, a construção midiática, corroborada por uma personalidade propensa à fama e a notoriedade, o novo inimigo público nº 1, o Bandido da Luz Vermelha dos trópicos:

“Chegando em Santos um dia depois, vi no jornal ‘Assalto à americana’. Aí eles falaram, inventaram e fizeram a coisa bonita. Eu disse: eles gostaram, me de- ram idéia, vou repetir. Fiz uns par deles assim, eles mesmo que inventaram de fazer eu fazer” .

Durante dois meses, João Acácio freqüentou diariamente as manchetes de jornais e os noticiários de rádio e da nova e reluzente plataforma midiática, a televisão. A violência passa a ser trabalhada como dispositivo para aterrorizar a população, ampliando tiragens de jornais, revistas, audiências de rádio e televisão dando, ao mesmo tempo, ressonância ao discurso da necessidade da polícia e da justiça criminal. Seus crimes passam a ter o envolvimento direto com as vítimas e crescem as denúncias de violência sexual. O homemmacaco detentor de uma ficha com registros superiores a setenta ocorrências policiais se esvai perante o novo ídolo, o novo facínora, de rosticidade indiscernível atrás de uma luz vermelha ofuscante, de um chapéu de feltro

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e de um lenço amarrado à face, o Bandido da Luz Vermelha.

Uma mobilização nacional das forças policiais e do nascente “jornalismo investigativo” fez com que João Acácio fosse reconhecido e preso no Paraná, em agosto de 1966. Encarcerado e julgado, João Acácio é considerado semi-imputável, categoria intermediária na logística judiciária que coloca o preso no cruzamento da loucura e da delinqüência, dos saberes médico-psiquiátricos e do sistema carcerário da justiça penal.

De acordo com os especialistas, responsáveis pelo seu laudo médico para o processo de acusação, João Acácio deveria ser encaminhado a uma “casa de custódia” para ser submetido a medidas reeducativo-penais com a perspectiva de reversibilidade dos distúrbios em sua personalidade. A liberdade passa a ser vinculada à “cura”, paradoxalmente obtida pela supressão dessa mesma liberdade, sob confinamento. A definição de João Acácio como semi-imputável colocava-o em uma zona indistinta entre a loucura e a delinqüência, disponibilizando seu corpo tanto para a instituição prisão quanto para a instituição manicômio. Os saberes psiquiátricos, não definem o destino do Bandido da Luz Vermelha, deixando a via aberta, em seu laudo final, para os dispositivos jurídicos e psiquiátricos decidirem ulteriormente seu futuro:

Tudo leva a crer que diante de uma nova oportunidade qualquer, deve-se esperar nova reincidência antes da recuperação. Isto não significa uma impossibilidade, mas somente raríssimas probabilidades.7

A indiscernibilidade entre loucura e delinquência, permitiu, trinta anos depois, após o cumprimento de sua sentença, que o Estado tentasse mantê-lo no cárcere através de uma Medida de Segurança caracterizando- o, por fim, como louco, um ser destituído de razão, representando um perigo recorrente para a sociedade,

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que deveria ser mantido em confinamento por tempo indeterminado até os saberes médico-psiquiátricos emitirem um laudo de cura favorável à sua soltura, estratégia de efetuação transversal da prisão perpétua, indiferente ao Código Penal que estabelece como pena máxima no Brasil, trinta anos de reclusão.

Enclausurado durante trinta anos entre penitenciárias de presos comuns e manicômios judiciários, João Acácio foi solto em 1997, após um longo debate e espetáculo público para determinar se o Bandido da Luz Vermelha estava recuperado ou, se ainda representava um “perigo para a sociedade”.

A imprensa se notabiliza pela aplicação de duas estratégias quando da soltura de João Acácio: a estratégia televisiva, segundo Fernando Barros e Silva, colunista da Folha de São Paulo, evidenciando muito mais “a delinqüência do veículo do que aquela que se atribui ao marginal”8, transformando-o em um ser bizarro, um espetáculo para o regozijo dos que apreciam os efeitos da prisão, e a estratégia de dissolução da imagem virtual produzida pelos meios-de-comunicação diante da não conformação de João Acácio com a produção imagética do bandido “facínora” produzida na década de 60. A televisão inaugura em sua grade de programação, o prenúncio dos reality shows, expondo “a vida como ela é”, explorando situações de miserabilidade, deficiências físicas transformadas em grotesco, crimes, chacinas e atrocidades cometidas diariamente nos centros urbanos. João Acácio se transforma no bufão, na nova atração bizarra do circo televisivo.

A chamada Imprensa séria, por sua vez, intenta destruir o mito produzido por ela própria, na década de sessenta, em um movimento de auto-retratação, atacando a estratégia televisiva:

“Luz vermelha é um pobre diabo brasileiro. Desdentado, não consegue sequer falar, lunático, não é capaz

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de distinguir delírio de realidade, e traz nas expressões do rosto as marcas da humilhação, da violência e da podridão a que foi submetido durante 30 anos de prisão. Transformou-se nisso que está aí. Não se pode dizer, a não ser por comiseração que seja exatamente humano. A TV se entusiasma com esse tipo de coisa”9.

Marcelo Coelho, em sua coluna semanal, em um momento de transparência perante seus leitores, explicita o pacto infernal — ou na acepção foucaultiana, a circularidade do poder — entre a sociedade, a personalidade em foco e dos meios midiáticos. A sociedade vê aquilo que deseja nos meios-de-comunicação, rompendo qualquer fronteira entre o público e o privado, em um voyeurismo generalizado que transforma os mecanismos de monitoração da sociedade de controle em algo trivial e mesmo desejável. Os meios-de-comunicação realizam seus anseios de lucro — com a elevação de índices de audiência, de patrocinadores e de vendas de jornais e revistas — exercendo, ao mesmo tempo, seu papel de dispositivo de controle social e de modelação dos novos sujeitos-sujeitados. A celebridade dá seu assentimento à invasão de sua privacidade, mercadoria negociável, não raro maquiada com lances sensacionalistas ou escandalosos, cambiável e barata, para sua permanência no enfoque midiático e no hall da fama.

Após alguns meses de aparição freqüente na mídia, de julgamentos reativos por seus comportamentos passados, João Acácio foi morto por um pescador na cidade de Joinville. Sua desaparição não produziu a comoção pública quando de sua soltura. Pela origem simples de Nelson Pisingher que o abateu, sua morte foi tratada como um crime “banal”, típico de comunidades simples, com um padrão de honra e de vendetta acima e à mar- gem da ordem jurídica. A produção de sujeitos na sociedade disciplinar, no Brasil, que transformou um arrombador, um ladrão furtivo em assassino e estuprador,

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e, após trinta anos de cárcere em uma massa amorfa, arruinado em sua carne e “alma”, recebeu o tiro de misericórdia, não do pescador de Joinville, figurante pouco perceptível na trama, mas, da sociedade de controle fundada nos bancos de dados informacionais e na persecução em “espaço liso” pelo olhar incansável da câmera, do julgamento midiático que o condenou pela terceira vez, primeiro como delinqüente monomaníaco, depois como louco e, por fim, como membro perigoso, irrecuperável e desestabilizador das regras normativas de convívio em seu meio social.

Jack Abbott no ventre da besta

Jack Henry Abbott, nasceu em 1944, em Michigan, Estados Unidos, passou quase toda sua infância transitando de um orfanato a outro até que aos nove anos começa sua passagem por instituições de detenção juvenil, sendo por fim encerrado até a idade de dezoito anos em um reformatório. Com sua maioridade obtém seu livramento, porém, após seis meses é preso pelo crime de “passar cheque com insuficiência de fundos”, sendo condenado a uma sentença indeterminada de cinco anos. Após três anos na penitênciária, mata um outro detento. É julgado novamente e obtém uma pena de vinte anos de encarceramento. Aos vinte seis anos, foge da prisão e é recapturado após seis semanas. De seus trezes anos a 1981, Abbott conheceu a liberdade somente por nove meses e meio e permaneceu preso em confinamento solitário por quatorze anos.

Em 1978, Norman Mailer, um dos escritores norteamericanos consagrados após a geração beatnik de Jack Kerouac, escrevia o livro Diário de um carrasco, sobre a vida e execução de Gary Gilmore, um outro — ou um mesmo — detento passando seus últimos dias no “corredor da morte”. Abbott escreve ao escritor prontifi

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cando-se a ajudá-lo na compreensão da realidade de um preso no sistema carcerário norte-americano, como subsídio para a escrita de Mailer sobre Gilmore. A correspondência entre o literato consagrado desde os vinte anos e o prisioneiro que possuía quase o mesmo período de cárcere intensificou-se diante do talento de Abbott10 e a força de seu relato. As cartas de Abbott foram, em 1981, reunidas por Mailer e enviadas ao seu editor, dando a público um dos mais fortes, corajosos e desafiadores escritos sobre a prisão, a sociedade capitalista e o governo estadunidense, No ventre da besta.

O seu enunciado, proferido logo no primeiro capítulo, possui um caráter desestabilizador dos saberes pedagógicos, recorrentes e homogêneos na instituição disciplinar Escola. A isenção de responsabilidade pela infância e adolescência adquire a forma do discurso da “desestruturação da família” como fator explicativo da rebeldia juvenil e da necessidade de incluí-la em outros orbes de controle e disciplina, — que não a família e a escola —, organizados pelo Estado. Abbott nos assevera sobre os eventos resultantes do discurso psicosociológico que lhe atravessou a infância, cumprimento de sentença de cinco anos na Escola Industrial do Estado de Utah para rapazes — versão estadual americana da FEBEM de São Paulo — “pelo ‘crime juvenil’ de ‘incapacidade de ajustamento aos orfanatos”11. A criança ou adolescente que fica sob a “responsabilidade do Estado” vindo do que se chama um “lar desfeito” se torna propriedade do Estado, um ser “educado” pelo Estado que, como no seu caso, transita durante toda a existência em instituições penais, do orfanato ao reformatório e, por fim, à prisão.

Após o sucesso editorial de No ventre da besta, Abbott consegue sua liberdade condicional e é enviado a uma instalação do Exército da Salvação, para ex-condenados, no Soho, um dos bairros mais violentos da cidade

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de New York. Em uma madrugada, voltando de um night club com duas amigas, Veronique de St.André e Susan Roxas, param em um café noturno para se alimentarem e encerrarem a noite. O gerente do café, Richard Adan, recusa-se a atender o pedido do grupo e expulsa Abbott do lugar sob a ameaça de uma faca. A discussão pros- segue e Abbott se atraca com Adan, desferindo-lhe uma facada mortal. Seu julgamento ocorre poucas semanas depois, consubstanciando-se como um julgamento midiático em que a América mobiliza-se para a sua vendetta contra a arrogância que desafiou um povo, um governo, seu sistema de justiça e sua violência institucionalizada:

“... explique à América que ela não é um monstro furioso (como a Europa está cansada de dizer), gerado pelo sangue dos emigrantes, que eram o que havia de pior entre as nações do Velho Mundo. Diga-lhe que é uma covarde encolhida de medo, que apunhala pelas costas porque não é capaz — pois nunca tentou — de exercer seu poder sem violência. E porque é covarde, não respeita a razão. A América recorre ao uso da razão somente numa tentativa final de persuadir, somente depois de ter tentado sem sucesso destruir um homem, somente quando já é tarde demais. (...) Este é o país mais injusto e tirânico de todo o mundo...”12

Condenado, por homicídio culposo, embora no Estado de New York, onde se realizou o julgamento, a pena máxima, definida em lei fosse de seis anos, Abbott foi penalizado em prisão perpétua, com direito a pedido de condicional fixado para o ano de 2001. Seu retorno à prisão evidencia menos sua natureza violenta do que o complexo trabalho exigido para deseducá-lo, de extrair de sua natureza, os saberes e práticas modelados pelo Estado como educador.

Em 1987, escreve com Naomi Zack, Ph.D. em Filosofia pela Columbia University, o livro My return, que nar

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ra seu julgamento, sob a forma de tragédia grega e que reúne suas cartas de prisão. O Abbott de 1987 não é mais o marxista-leninista, simpatizante de Cuba e dos movimentos de revolta dos palestinos no Oriente Médio. Torna-se um judeu ortodoxo, historiador, estudioso da Tora e sionista convicto, porém, a matriz essencial de seu pensamento filosófico, que permeou a escrita de No Ventre da Besta, permaneceu sendo a mesma, A origem da tragédia e Ecce Homo, do pensador alemão, Friedrich Nietzsche.

Em agosto de 2001, o pedido de condicional apresentado por Abbott é negado, sem direito a apelação até

o ano de 2003. Aos cinqüenta e oito anos de idade, em dez de fevereiro de 2002, Abbott é encontrado em sua cela, enforcado, com a ajuda de um lençol e de um cadarço de sapato, tendo ao lado, uma nota de suicídio. O suicídio foi questionado por sua irmã, talvez, a pessoa que mais conhecia Abbott, além dele mesmo, que se considerava a “pessoa de maior resistência moral, mais capacidade psicológica para suportar o sofrimento” 13. Sua resistência, uma vez quase foi quebrada, porém, realiza ao final, sua afirmação da vida, pois, segundo as palavras de Norman Mailer, “detestava a morte, suprema injustiça, a obscenidade final que a sociedade poderia lhe infligir”:

“Sabe o que é mais estranho nisso tudo? Estava quase preparado para me matar. Queria tão dolorosamente ficar livre! Sempre me sentia queimar, realmente pegar fogo com a necessidade de sair dali, ficar livre: fugir desta coisa que estava destruindo minha vida irremediavelmente. Venderia minha alma para me ver livre da prisão — mas não daria um só dia de trabalho honesto ou me ‘comportaria’ por um instante, para conseguir a mesma coisa. Não é esquisito? Pobre da minha alma! Em que estado ela devia estar para custar tão barato...”14

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Poder e resistências

Chessman, João Acácio e Jack Abbott representaram três momentos distintos do cruzamento do poder e das resistências. Negando até a morte a construção midiática que tentaram lhe imputar, Caryl Chessman contribuiu de forma decisiva para impulsionar a campanha internacional contra a pena de morte e para deflagração do movimento pela reforma das prisões, nas décadas de sessenta e setenta do século passado.

João Acácio, o Bandido da Luz Vermelha, no seu cruzamento com os dois diagramas de poder, a sociedade disciplinar e a sociedade de controle, demonstrou como a vida se coloca como alvo do poder e como o intolerável subsiste, sob modulações diferentes, em estratégias simultâneas, de soberania, de vigilância e de controle. Sua desaparição foi uma resultante “lógica” da irracionalidade de um complexo de saberes e poderes que para se reatualizar depende da construção e redimensionamento permanentes do sujeito delinqüência, no espaço e no tempo.

Abbott, linha de fuga suicidária, ou suicidado, de qualquer modo, não permitiu que seu ‘corpo’ e ‘alma’ fossem arrebatados pelo Estado, evidenciando como a produção de uma subjetivação ou construção do si liberta a vida no próprio homem, independente das forças limitadoras do poder. Em My return, Abbott referindose a Caryl Chessman considerou seus escritos como o principal acontecimento para o início do processo de reformas das prisões que continua até nossos dias, não somente “reformando o sistema carcerário da Califórnia, mas, mudando o ponto de vista sobre as prisões em toda a América”15. A luta contra a pena de morte, contra a violentação da criança pelas instituições correcionais, as condições das prisões e os massacres cometidos pelo aparato policial contra a população carcerária colocam,

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segundo Folter15 o abolicionismo penal em sua perpectiva restrita, em aliança com os pensadores reformistas. Em sua perspectiva mais ampla, o abolicionismo penal volta- se para a abolição de todo o sistema penal: “a lei penal como um corpo de textos e doutrinas, a produção discursiva das organizações do Estado como a polícia (...), a administração carcerária, o Ministério da Justiça” 16. Os escritos de Caryl Chessman se colocam dentro da perspectiva do Abolicionismo penal, em sua dimensão restrita, sinalizando os momentos mais abusivos e brutais do sistema penal, porém, No ventre da besta de Jack Henry Abbott expõe a natureza intolerável de todo

o sistema penal sinalizando não somente a pertinência, mas, a sensatez da defesa de sua abolição. A relação entre poder e resistência não significa necessariamente uma contraposição dialética, com a eliminação de um dos pólos antagônicos. Estamos diante da contraposição de forças, na qual o possível curvarse de uma resistência não significa a eliminação de uma força. Esta se dobra, recua, perde momentaneamente suas energias, mas, retorna, em uma outra materialidade, revigorada em outros corpos, como linha de fuga. A desaparição de Chessman, de João Acácio, de Abbott, não significa o triunfo do poder da prisão sobre resistências, mas, o deslocamento da linha de fuga de conformações corpóreas para outras. E o jogo continua, aberto, heterogêneo, desterritorializado, resistência abrupta e fugaz na sua aparição, reaparecerendo ali, em outro canto, em outro momento, surpreendendo como força revigorada diante dos diagramas de poder.

Gilles Deleuze comentando a tristeza que acometeu Foucault, após o malogro do movimento pela reforma das prisões após 1970, delineia como o filósofo se recompõe, concebendo a morte como coextensiva à vida, ocupando lugares no cortejo impessoal do morre-se, mas, como a vida se constitui de “multiplicidades de mortes

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parciais e singulares”17, onde o de fora se desvia, arrebatando o homem para além do terror, como singularidades de resistências nas fissuras de diagramas instáveis, linhas selvagens de fuga e de afirmação da vida.

Notas

1 Vida para os Gregos e F. Nietzsche.

2 Seu nome de batismo, Carol, de origem dinamarquesa, foi substituído por Caryl, em sua adolescência, para evitar as picardias juvenis, por ser um nome, nos Estados Unidos, tipicamente feminino.

3 Chessman recusa seu direito a um advogado e conduz sua própria defesa, compondo um júri de forma temerária de onze mulheres e dois homens, para um julgamento sobre violência sexual.

4 Caryl Chessman. Trial by ordeal. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, Inc., 1955 e The face of justice. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, Inc., 1957.

5 Conferência pronunciada por Nelson Hungria no Centro Acadêmico XI de Agôsto. Maio de 1959.

6 A carta de Caryl Chessman ao San Francisco Examiner prenuncia o turbilhão de mudanças que convulsionará a década de sessenta do século XX, em particular, o movimento pela reforma das prisões e o retorno da força de enunciação mais radical, do filósofo anarquista William Godwin, o abolicionismo penal. Por sua aparição como enunciado discursivo desestabilizador e sua sinalização para movimentos mais revoltos, a carta de Chessman, também merece seu retorno na onda dos devires, após quarenta e um anos de sua publicação:

“Caro Sr. Stevens:

Como deve saber, os carrascos, na Califórnia obedecem a horário de bancos. Nunca executam alguém antes das dez da manhã e nunca depois das quatro da tarde. Quando ler esta carta, já eles me terão executado. Terei trocado o esquecimento por um incrível pesadelo que durou 12 anos. E o senhor terá presenciado o ato final ritualístico. Espero e confio em que o senhor será capaz de transmitir a seus leitores que morri com dignidade, sem medo animal e sem bravatas. Devo isto a mim mesmo, mas devo mais a muitos outros. A hora da morte chegará a mim dentro de poucos minutos. Resta-me de vida, segundo suponho, menos de dezoito horas. Passarei estas horas numa das celas, a alguns passos da câmara de gás.

(...) Eu desejava continuar vivendo. Acreditei apaixonadamente que poderia oferecer uma contribuição com meus livros, não só à literatura, como à minha

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sociedade. Eu estava determinado a retribuir, assim, às milhares de pessoas de tantas nações que me defenderam e acreditaram em Caryl Chessman como ser humano. Eu teria tido grande satisfação e um sentimento de nobres objetivos se tivesse sobrevivido, para justificar seu compreensivo julgamento. Mas um severo destino, revestido de roupagens jurídicas, decretou minha morte numa pequena sala octogonal, pintada de verde.(...)

Chegou a hora, em suma, de morrer. Então assim acreditam muitos funcionários da Califórnia o Estado estará vingado e vingado estará seu sistema de Justiça retributiva. O Estado terá acalmado seu espírito de vingança. Mas, vingança contra o quê? Câmaras de gás podem matar gente e não contrafações de sinistros e arrependidos criminosos lendários, “monstros mitológicos”.

Face a face com a morte repito enfaticamente e sem hesitação: jamais fui o famoso “bandido da luz vermelha”. O Estado da Califórnia condenou o homem errado, teimosamente recusou-se a admitir a possibilidade de seu erro, e muito menos, a corrigi-lo. O mundo terá em tempo provas deste monstruoso e selvagem erro. Não se orgulhará desses fatos. Mas, ponhamos aqui de lado a questão de culpa ou inocência. O que me impele a escrever esta carta é minha firme convicção de que neste drama está envolvido algo mais que a morte de um homem.

(...) Vou morrer com conhecimento de que deixo atrás de mim outros homens vivendo seus últimos dias no corredor da morte. Declaro aqui que a prática de matar ritualmente e premeditadamente outros homens envergonha e macula nossa civilização, sem nada resolver contra aqueles que se lançam violentamente contra a sociedade e eles próprios.

Assim, poderemos encontrar solução racional e humana para o problema que a sociedade deve fazer com tais seres humanos. Este problema não deve jamais ser enterrado juntamente com o homem executado e suas vítimas. Ele não será enterrado junto comigo. Escolhi meu próprio caminho para chamar a atenção mundial para os corredores da morte e câmaras de gás. Não encaro a mim mesmo como um herói ou mártir. Pelo contrário, sou um louco confesso, profundamente consciente da natureza e qualidade dos loucos erros cometidos em meus anos de rebelde juventude. Não espero parecer grandiloqüente e didático. Mas, estas são crenças que ardem dentro de mim mais luminosamente que a minha esperança de sobreviver. Morrendo, devo reafirmar esta crença e exprimir minha última esperança de que estes que saíram em minha defesa continuem lutando contra as câmaras de gás, contra os carrascos e contra a justiça vingativa. Certamente mereceremos algo melhor. Extingue-se meu tempo. Devo encerrar aqui minha carta. Sinceramente, Caryl Chessman”.

7 Processo 1025/67, Livro 4, 1967: 119.

8 Folha de São Paulo, 31-08-97.

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9 Folha de São Paulo, 31-08-97: 2-8. 10 “Gosto de Abbott por estar vivo e ter aprendido a escrever tão bem como escreve”. Norman Mailer. “Introdução” in Jack Henry Abott. No ventre da besta. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1981, p. 18. 11 Idem, p. 30. 12 Ibidem, p. 126. 13 Ibidem, p. 42. 14 Ibidem, p. 102. 15 Ibidem, p. 172. 16 Rolf S. de Folter. “ Sobre la fundamentación metodológica del enfoque abolicionista del sitema de justicia penal.Una Comparación de ideas de Hulsman, Mathiesen y Foucault.”, apud. Stan Cohen (org.). Abolicionismo penal. Buenos Aires, Sociedad Anónima Editora Comercial, Industrial e Financeira, 1989, pp. 57-85. 17 Idem, p. 58. 18 Gilles Deleuze. Foucault. Lisboa, Veja, 1998.

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RESUMO

O embate de três existências prisionais (Caryl Chessman, José Acácio da Silva e Jack Henry Abbott) contra as vinganças penais de Estado. O poder de matar pelo código penal, o poder de incriminar da mídia, o poder de gerar criminosos dos reformatórios para jovens e os correlatos pena de morte, encarceramento para semi-imputável e pena de prisão perpétua, são discutidos no emaranhado da sociedade de controle cristalizando punições. O abolicionismo penal é abordado, então, como afirmação da vida.

ABSTRACT

The conflict of three existences lived in prison (Caryl Chessman, José Acácio da Silva e Jack Henry Abbott) against the state penal revenges. The power to kill for the penal code, the media power to incriminate, the power to generate criminals from the youth reformatories and its correspondent capital punishment, locking for semi-imputables and life imprisonment, are discussed in the entangle of the society of control crystallizing punishments. The penal abolitionism is approached, therefore, as affirmation of life.

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como pacificar o insuportável?

thiago rodrigues * Os bons — sempre foram o começo do fim.

Nietzsche

I

Recomenda-se crer. Direito inviolável, este da crença. Primado da liberdade individual. Princípio emerso do pensamento liberal, consolidado no Ocidente do século XVIII, amplificado ao mundo, hoje, pela voz estadunidense. Em princípios de 2002, David Blankenhorn, presidente de um obscuro Institute for American Values, escreveu e fez publicar uma declaração que intitula “Carta da América” 1. Nela, o autor se propõe a defender as fundações do pensamento e prática liberais contra fundamentalismos religiosos e outras radicalidades. Apresentando o ambiente moral estadunidense como solo do mundo livre e democrático

* Poeta, mestre em Relações Internacionais pela PUC-SP e pesquisador no Nu-Sol. verve, 2: 245-255, 2002

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que, no presente, se espraia por todo globo, Blankenhorn busca defender, com apoio de intelectuais como Francis Fukuyama e Samuel Huntington, a justeza de ‘guerra ao terror’ lançada pelo governo de George W. Bush. A reação estadunidense, argumenta o autor, não seria apenas uma vingança dos EUA, mas uma resposta planetária contra a intolerância. O que se segue no texto de Blankenhorn são os clássicos direitos liberais centrados na proposição da liberdade e igualdade inatas aos homens, que se reflete na plena autonomia para crer, sempre sob o amparo de um governo legítimo, pois escolhido pelos cidadãos, e que é responsável, tão-somente, pela manutenção das condições para o livre desenvolvimento individual. Estado-mínimo, fé livre: está aí a fórmula do autogoverno liberal. O objetivo do autor é rebater as análises vindas em reprovação às ações do governo de George W. Bush iniciadas no Afeganistão após os atentados de 11 de setembro de 2001, numa perspectiva que legitima as ações coercitivas internacionais lastreando-as, segundo o autor, em “valores e princípios universais”2. Nesse breve ensaio, as atenções recaem sobre o modo como Blankenhorn expõe valores que são demarcáveis histórica, política e socialmente

— valores liberais clássicos — como princípios universais. Nessa reflexão, interessa perscrutar o movimento presente na “Carta da América” que se esforça para cristalizar tais valores a partir de uma operação que os desterritorializa acondicionando-os na categoria de Homem. Procura-se discutir como Blankenhorn, com base numa moral da tolerância, dá voz à força que procura construir algo como um amálgama heterogêneo mundial, congregando peles e crenças distintas que devem se suportar trilhando caminhos paralelos. Planeta a um só tempo plural e uniforme, no qual não há espaço à contestação da ordem pacífica de povos irmanados. verve

Como pacificar o insuportável?

II

As linhas iniciais da “Carta da América” não deixam de apresentar as sombras que afligem o angustiado homem liberal. Audacioso na luta contra a ‘tirania’ personificada na figura do Rei Absoluto — aquele que ditava leis, mas a elas não se submetia — o liberal estanca diante da paúra causada ao vislumbrar o fim do Estado. A desconfiança do poder exige a construção de instituições políticas controláveis pelos indivíduos para que estes sejam cidadãos, membros de uma sociedade de homens livres e não átomos levados ao sabor das hordas. Os ‘Pais Fundadores’ dos Estados Unidos fiaram-se no jusnaturalismo, a doutrina da liberdade inata e inviolável do indivíduo, para defender um ‘Estado vigia noturno’ que zela por uma sociedade de realizadores. A democracia era, assim, o sistema de governo que menos agredia a liberdade natural, pois estabelecia meios de controle do governo. Instrumentos para vigiar a besta-poder. Prevenção contra a volúpia do governante — candidato permanente a tirano — uma vez que “na raiz da posição liberal se encontra sempre uma dose inata de desconfiança ante o poder e sua inerente propensão à violência”3. A “dignidade humana transcendente”, relembrada por Blankenhorn, ganhou guarida na ‘terra das oportunidades’.

Os “valores americanos”, aflorados do pensamento liberal, não são encarados pelo autor, contudo, como características específicas estadunidenses. “O que há de mais impressionante nesses valores”, diz Blankenhorn, “é o fato de se aplicarem a todas as pessoas, sem distinção, e não poderem ser usados para excluir quem quer que seja do reconhecimento e respeito com base em particularidades de raça, linguagem, memória ou religião”. Nascer livre e poder crer não são construções culturais, particulares, regionais. Em cada

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recanto do mundo, o homem branco ou pardo, é receptáculo de direitos que o precedem e que permanecerão após sua extinção. Os valores americanos não são, assim, somente ‘americanos’. Numa clarividência, os ‘Pais Fundadores’ foram receptores da Verdade, podendo, dessa forma, brindar a Humanidade com a forma acabada dos direitos universais do Homem. Do Homem ou dessa figura jurídico-valorativa estranha e auto-referente, a ‘pessoa humana’.

Não são valores ocidentais, brada o autor, são verdades morais inerentes a toda espécie. “Verdades morais básicas”, sustenta Blankenhorn, que são atributos da própria definição do ‘ser’ humano: O Homem é o bípede que crê e é livre. Natureza humana que prescinde do homem-amontoado-de-carne-sangue-e-nervos, pois vive na Humanidade. Somos livres, queiramos ou não. E recebemos tal autonomia “juntamente com o ser, da mão da natureza”4. Impressiona, de fato, o corolário que se segue: os ‘ideais da fundação dos EUA’, não sendo um ‘regionalismo moral’, permitem que “qualquer pessoa, em princípio, [possa] tornar-se americana”. Ecoa aqui o discurso dos EUA como terra prometida, porto seguro aos perseguidos e famintos do mundo, universo a ser ocupado, explorado, cultivado. Olvida-se o muro contemporâneo que pretende impedir mexicanos de chegar à Califórnia, olvidam-se os índios de outrora dizimados na corrida para o Oeste. A Estátua da Liberdade segue sendo farolete a sinalizar o caminho para a liberdade aos olhos de sujos imigrantes empoleirados num navio.

III

O ódio à América é justificável, pergunta-se Blankenhorn? Em parte, admite, uma vez que diversas ações históricas dos estadunidenses foram arrogantes

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Como pacificar o insuportável?

ou agressivas. Todavia, tais ações são desvirtuamentos dos ideais tidos como profundos e verdadeiros da Nação americana. Desvios que devem ser evitados no futuro. Não há, contudo, porquê pedir perdão. Ao contrário, deve-se investir na concretização dos valores universais que tecerão a irmandade global. A amizade entre os povos é possível, basta aceitar o que é inerente ao Homem. Os EUA, terra predestinada, não impõem um modelo, apenas sinalizam o óbvio. É preciso que nos irmanemos para erguer o mundo da conciliação universal, numa convocatória que não beneficia somente americanos, mas agracia toda Humanidade. É imperativo, para tanto, lutar?

Toda reflexão liberal da “Carta da América” vem pavimentar o caminho que leva à seguinte preocupação: reagir à ameaça fundamentalista islâmica é moralmente justificável? Contra-atacar o terrorismo religioso é atitude defensável?

Ao sustentar que os valores americanos não são regionais, mas universais, o autor constrói a ‘Grande Semelhança’ e seu par indissociável, a ‘Grande Alteridade’. Ter fé não é problema; ao contrário, ter religião é fato considerado, por Blankenhorn, como um transcendental, como uma característica do Humano. Perigoso é fazer da fé, doutrina de intolerância. Sendo a liberdade de credo direito fundamental da ‘pessoa humana’ consagrado nas Constituições liberais, não há como recriminar esta ou aquela religião se ela se fundar no princípio do Amor e da Compreensão. Os três grandes monoteísmos são, para Blankenhorn, doutrinas do Amor. Pregam a complacência e a prostração perante o Divino; reconhecem dignidade no outro, esse ser igualado a si na situação de criatura de Deus. As religiões do livro não são, assim, apologistas da supressão do Outro, mesmo porque, no limite, não há ‘outro’ frente à unidade em Deus. Blankenhorn não se alonga

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naquilo que seriam vexatórias exposições acerca da supressão dos infiéis presente historicamente no cristianismo, judaísmo e islamismo. A argumentação se estende somente o necessário para afirmar que a intolerância amparada em justificativas religiosas é uma afronta à verdade doutrinária dessas crenças. Matar em nome de Deus é profaná-lo. Insuportável é pecar contra Deus e contra a Humanidade. A Al-Qaeda macula a religião islâmica, conspurca a amizade entre os povos. Todavia, esses ‘anômalos’ agem com perseverança destrutiva, são irrefreáveis em seu fanatismo, impermeáveis a qualquer argumentação lógica ou teológica. São um perigo, portanto, à irmandade universal.

IV

Torna-se, pois, urgente reagir. Reagir à intolerância virulenta é necessário para preservar o globo. Os valores representados pelos EUA são, para Blankenhorn, o alvo do ódio islamita. Contudo, ao executar a manobra que transforma os valores dos EUA em princípios universais, o autor realiza a façanha de metamorfosear todo

o planeta em alvo. Ao agredir valores que não são exclusivos dos estadunidenses, os terroristas de Bin Laden violentam cada um de nós. A Humanidade, reunida em direitos, é reunida na afronta. A autodefesa, única possibilidade de uso da violência legitimado pela moral pacificadora, surge como recurso inevitável. Atacar o Afeganistão ou qualquer outra paragem é uma ‘dolorosa necessidade’. A universalidade da agressão exige uma contrapartida também global. Inimigos de difícil identificação, os terroristas islâmicos podem estar em diversos lugares, dispersando-se ou agrupando-se nos fluxos abertos nos trânsitos mundializados de informação, transporte e capital. Uma coalizão universal é inevitável para combater guerreiros que se imiscuem na ‘boa verve

Como pacificar o insuportável?

sociedade’. Párias corrosivos, os terroristas são guerreiros desterritorializados, são combatentes universais. Para destruí-los, a guerra deve ter como limites os contornos da Terra.

Ameaçados são os cidadãos estadunidenses, mostrados por Blankenhorn como crentes inocentes. Visão bem distante daquela expressa pelo também estadunidense Henry David Thoreau que, em seu opúsculo de 1848, apontava seus concidadãos como indivíduos reconhecíveis pela “manifesta ausência de intelecto e alegre autoconfiança”5, sujeitos incapazes de se posicionar contra a escravidão e contra a guerra que os Estados Unidos mantinham com o México: cidadãos passivos, mas em nada ingênuos. Mas ameaçados são, também, todos crentes no Amor. E Amor é consenso, é canto em uníssono. A Verdade Americana é eficiente porque não se apresenta com nacionalidade. É válida para todos que se consideram humanos. E hoje, todos se consideram. O que Blankenhorn rechaça é que o ‘Humano’ seja construção ocidental. Os críticos do universalismo humanista são céticos, incrédulos, relativistas. Blankenhorn crê em valores básicos partilhados por todos: não há como contra-argumentar um religioso.

A reação violenta preparará o mundo para o idílio da Grande Conciliação. O expurgo dos ‘incapazes de compreender a universalidade de sua condição’ é tarefa penosa da qual não é possível esquivar-se. A “paz justa e duradoura”, de que nos fala Blankenhorn, é a instauração do mundo das diferenças apaziguadas sob o manto da igualdade transcendental. Contudo, como tolerar não significa aceitar, esse mundo irmanado necessita de limites claros, compartimentos precisos para localizar alteridades aplainadas. Esses quadros de registro não precisam mais responder a nacionalidades ou dispositivos disciplinares clássicos apesar de não prescindi

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rem deles. É possível ser ‘cidadão do mundo’ indivíduos de todas as raças, credos (até os ‘sem credo’), procedências, desde que sejam respeitadas margens de segurança que, nada mais são do que espaços nos quais se permite trafegar. O fato de Martin Luther King ser citado duas vezes por Blankenhorn não pode ser negligenciado. King era negro, norte-americano, mas, acima de tudo, defendia direitos universais. Foi um herói não da raça, mas da espécie. Ao citá-lo, Blankenhorn exibe seus atributos de tolerante. Plurais podem ser os homens em suas vidas, contudo, as amarras que os aproximam tecem a trama do consenso pacificador. Oh, multiculturalismo politicamente correto!

A guerra ao outro é depuração consentida, legitimada. Guerra justa dos que são diferentes somente depois de serem únicos no Humano: transcendência que agrega semelhantes, patrimônio sacro a ser protegido para que a paz em vida, norteadora de novos arranjos internacionais e nacionais perfilados, seja alcançada.

V

Não é novidade que o propalado ‘fim do Estado-Nação’ esbarrou na mendicância pelo nacional. Há muitos mortos no Timor, nos Bálcãs ou na Palestina para que suas terras ganhem status de Estado independente. Diagrama sem inovação: um povo, uma língua, um território, uma nação. O Estado Moderno, de fato, não fenece. Mantém-se como meta de organização política e social de povos desprovidos das instituições estatais ou se transfigura, assumindo outros contornos como o modelo de Supra-Estado Europeu. Este último projeto nada mais é, lembremos, que a reedição de uma idéia secular: Kant e sua prédica de “uma federação de tipo especial (...) que procuraria por fim a todas as guerras e para sempre”6 permanecem reverberando nas ideações

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Como pacificar o insuportável?

para o mundo. Cada povo reclama seu lugar, inviolável lar como ponto de partida para que relações fraternais se estabeleçam com outros povos que acenam de seus espaços. Trata-se do princípio da autodeterminação dos povos, projeção para o plano internacional da noção liberal de autogoverno: o direito que cada nação tem em constituir-se sem ingerência de outra. A Organização das Nações Unidas é o esboço dessa Irmandade Universal entre Estados-Nação, fórum para ensinar os ‘sem- Estado’ a construírem suas instituições e para os convescotes diplomáticos. As trocas comerciais, o fluxo informacional e o intercâmbio cultural podem, até, ser incensados como milagres contemporâneos desde que os emissores e receptores, os indivíduos ‘em diálogo’ não se imiscuam. Todos têm direitos a serem respeitados, todos têm suas honoráveis especificidades, todos devem ficar com seus pares: “não somos como os outros sãos, cada um cu seus” diz o poeta Walter Silveira.

No idílio transcendental, quem contesta sabota a Humanidade. E são muitos a não crer nesta pacificação terrena. Não podemos esquecer do fato de que a ‘sublevação’ fundamentalista também se fia num universal, a derrota do Ocidente e a vitória da Verdade. O enfrentamento de radicais muçulmanos e democratas globalizados se dá no campo circunvizinho das Verdades. Trata-se, de fato, de uma guerra entre Irmãos. Consangüíneos na transcendentalidade. Combate fratricida entre universais, ainda que o ‘Ocidente desterritorializado’ proclame que o pecado dos fundamentalistas não é crer em Mohamed, mas não tolerar a crença de outrem. Extremistas não são humanistas, não crêem na pluralidade de votos dirigidos ao Deus único, ao poder centralizado (Estado Moderno) e ao Homem (categoria universal). A dúvida retórica de Blankenhorn tem, assim, resposta cristalina: aos que não toleram, intolerância!

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O tolerante é o raivoso vingativo em latência. O tolerante não é um antropofágico, como o entende o antropólogo Claude Lévi-Strauss: o tolerante não absorve, não processa o diferente. Aceita com beatífico sorriso, aquele de superfície díspar, mas de essência apreensível. A dissonância é deixa para a reação virulenta. A tolerância é membrana frágil e pouco permeável. O revide é recurso familiar, sempre pronto para ser operacionalizado. Os cidadãos estadunidenses aceitam de bom grado que suas liberdades individuais sejam suspensas para que as práticas de controle e rastreamento perpetrados pelo governo possam ser ‘eficazes’ na busca dos conspiradores contra a Humanidade. É importante frisar que fundamentalistas e humanistas estão demasiadamente próximos em suas crenças verdadeiras. Os homens-bomba podem não partilhar do humanismo nascido na Europa, mas explodem-se em nome do Universal. Na guerra entre pares, os alvos se multiplicam e a rede tramada para caçar fundamentalistas tem como potencialidade identificar e capturar dissonantes de toda ordem, inclusive não-humanistas e não-universalistas.

Qualquer crença na laicização iluminista, supostamente reinante na contemporaneidade, cai por terra. Herdamos um mundo de valores híbridos, no qual coexistem — e colaboram — os Únicos transcendentais: Deus e o Homem. Um mundo de inúmeros feixes que devem caminhar na mesma direção. A “Carta da América” é um documento dessa pacificação pluralista que disfarça mal os ímpetos de expurgo de todos que forem tidos como anormais. Meta higiênica para o idílio no qual a alteridade admite a dignidade do outro, aceitando que suas existências, linhas paralelas, sejam trajetos próximos, mas que não devem se imiscuir até convergirem no infinito.

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Como pacificar o insuportável?

Notas

1 A “Carta da América” foi publicada no Brasil pelo diário O Estado de São Paulo no dia 17/02/ 02.

2 Paulo Sotero. “Intelectuais dos EUA reagem aos que culpam o país” in O Estado de São Paulo, 17/02/02.

3 José Guilherme Merquior. O argumento liberal. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983, p. 87.

4 Thomas Jefferson. “O direito ao autogoverno” in Federalistas. São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 32.

5 Henry David Thoreau. A desobediência civil. Porto Alegre, L&PM, 1997, p. 19.

6 Immanuel Kant. A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa, Edições 70, s/d, pp. 134-135.

RESUMO

Nesse breve ensaio, o autor analisa o difundido princípio da tolerância que coexiste com o brado da intolerância. A ‘guerra ao terrorismo’ e a sobrevivência de um Estado apoiado pelos súditos apresentam novas modalidades de controle associadas às antigas formas de ódio. A política contemporânea recomenda a todos que lutem pelos seus direitos e que respeitem o ‘diferente’ de uma distância segura e asséptica. Neste mundo, a fronteira entre tolerância e intolerância é tênue, mostrando o quanto tais noções são complementares.

ABSTRACT

In this short essay, the author analyzes the widespread principle of tolerance, which lives side-by-side with the hail of intolerance. The ‘war on terrorism’ and the survival of the state supported by subjects present new ways of control associated with old forms of hate. The contemporary politics advises everyone to fight for their rights and to respect the ‘different’ from a safe and aseptic distance. In a world like this, the boundary between tolerance and intolerance is thin and weak, showing how complementary those notions are.

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do amor à política

salete oliveira * “É feio ficar pelado? Eles dizem que é. Por quê? Olha a lagarta, ela tá pelada, (...).”

Hilda Hilst

Trafegar em algumas das múltiplas possibilidades do amor pode exigir destroná-lo de suas alegorias preferidas e tomá-lo cru, longe das representações que o tranqüilizam para uma melhor tradução em torno de órbitas já conhecidas, insistentes portos seguros. Isto requer o exercício analítico que disseque alguns dos múltiplos feixes da sintaxe da sujeição que corrobora o espírito de gravidade do poder centralizado.

A palavra designada, também, pelo monopólio da língua:

amor. S. m. 1. Sentimento que predispõe alguém a desejar o bem de outrem, ou de alguma coisa. 2. Senti

* Pesquisadora no Nu-Sol, doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP e professora na Faculdade Santa Marcelina. verve, 2: 256-266, 2002

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Do amor à política

mento de dedicação absoluta de um ser a outro ser ou a uma coisa; devoção, culto; adoração. 3. Inclinação ditada por laços de família. 4. Inclinação forte por pessoa de outro sexo, geralmente de caráter sexual, mas que apresenta grande variedade de comportamento e reações. 5. Atração física e natural entre animais de sexos opostos.

6. Aventura amorosa; amores. 7. Afeição, amizade, carinho, simpatia, ternura. 8. Inclinação ou apego profundo a algum valor ou a alguma coisa que proporcione prazer; entusiasmo, paixão. 9. Muito cuidado; zelo, carinho. 10. Objeto do amor. 11 Mit. Cupido. *Amor carnal. O que busca a satisfação sexual; amor físico. Amor físico. Amor carnal. Amor Platônico. Ligação amorosa sem aproximação sexual. Por amor de. Por causa de; em atenção a.1

As designações semânticas da palavra, apresentam algumas regularidades morais que corroboram as duas interdições modernas apontadas por Michel Foucault, em A ordem do discurso: o sexo e a política.2 Deter-se nesta sinalização pontual, desloca a análise para o cui- dado de não tomar a “exclusão” como conceito universal, enquanto saída confortável de explicação do mundo ou determinação causal de faltas que devem ser supridas por reformas que proclamam a inclusão, reversos complementares. Quando Foucault tece tal problematização, e a conecta à exclusão, explicita que a interdição inscreve-se em um jogo de três tipos de interdições (tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala) e que a própria interdição é o primeiro princípio dos sistemas de procedimentos de exclusões.

“Notaria apenas que, em nossos dias, as regiões onde a grade é mais cerrada, onde os buracos negros se multiplicam, são as regiões da sexualidade e as da política: como se o discurso, longe de ser o elemento transparente ou neutro no qual a sexualidade se desarma e a

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política se pacifica, fosse um dos lugares onde elas exercem, de modo privilegiado, alguns de seus mais temíveis poderes. Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder. (...) o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.”3

Neste sentido, é que Foucault aponta para uma zona sutil na qual o discurso não é apenas o que manifesta ou oculta o desejo, mas é também aquilo que é “objeto de desejo”. A análise, assim, é arremessada para uma das especificidades que atingem o discurso: a vontade de verdade. Da mesma maneira que a interdição faz parte de um jogo tríptico, há três sistemas de exclusão que incidem, atravessam o discurso: a palavra proibida, a segregação da loucura e a vontade de verdade como verdade de poder. Esta última, sublinha Foucault, é a de que menos se fala.

A economia dos procedimentos de controle dos discursos implica desdobramentos de rarefação, em favor do comentário; de assinatura da semelhança, em favor do autor, nos dois casos trata-se do discurso pelo jogo da identidade remetida ao mesmo e à construção da individualidade do eu, e desdobramentos de limitação, em favor das disciplinas, na medida em que a própria disciplina é um princípio de controle da produção de discursos, edificando os limites do jogo da identidade.

Amor, a palavra estancada. Não se trata aqui de elencar, exegeticamente, em tratados, o que cada denominação substantiva ou qualitativa poderia suscitar, e sim pontuar, de forma específica (exercício-experimentação), alguns termos ou implicações subjacentes ao que há de óbvio e ordinário na valoração cotidiana e,

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Do amor à política

que ao mesmo tempo se faz tema da política. Amor, sexo e política.

Amor e sexo. Amor ao sexo com amor. O sexo, quando aparece, surge decodificado dentro de padrões esperados de comportamento. Neste sentido, duas implicações conectam-se; a primeira em uma relação que só suporta dois seres definidos biologicamente como opostos e a segunda fundamentando seu vínculo a partir de uma relação monogâmica sob a expectativa familiar. Trata-se nos dois casos da lógica ontológica. No limite circunscreve-se o amor ao pressuposto da espécie, o que levado às últimas conseqüências prevê a continuidade do amor no interior de sua própria lógica como fim determinado e presumível, cujo ápice é encontrado no amor à humanidade.

Amar a humanidade, pressuposto da lógica ontológica, prescreve, para os dias atuais, o culto à prevenção contra os perigos, os perigosos. Velha prescrição. O amor é uma abstração. A humanidade é uma abstração. E, a ontologia também. Levar esta lógica ao limite faz com que se depare com “a grande meta da vida, encontrar a grande verdade”. E a grande verdade precisa erigir seu tempo predileto: a construção do tribunal. O tempo do juízo final ininterrupto, com seus incontáveis micro-tribunais. A vida é reduzida ao crime de lesa-humanidade, de lesa-sociedade, de lesa-soberano, de lesa-verdade. A lógica ontológica sai à caça do perigo, dos perigosos.

Importa à analítica esgarçar tal lógica, a partir da perspectiva abolicionista que investe na contestação do conceito de ontologia do crime, e levando o próprio abolicionismo ao limite interessa arruinar a lógica da ontologia que serve de base à grande verdade travestida de verdade penal. O amor à pena. Vontade de verdade da grande verdade.

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É oportuno lembrar que a vontade de verdade apoiase sobre suportes e distribuições institucionais, como sublinha Foucault. Dentre alguns exemplos que ele problematiza, interessa citar, um em particular, o do sistema penal: “(...) penso ainda na maneira como um conjunto tão prescritivo quanto o sistema penal procurou seus suportes ou sua justificação, primeiro, é certo, em uma teoria do direito, depois, a partir do século XIX, em um saber sociológico, psicológico, médico, psiquiátrico: como se a própria palavra da lei não pudesse mais ser autorizada, em nossa sociedade, senão por um discurso de verdade.”4

O amor à moral. Vontade de poder na verdade ontológica. Lógica do casamento da representação na identidade. Espelhamento dos semelhantes: amor-casamento e amor-adultério. Pares idênticos pacificadores. Casamento e adultério estão prescritos na mesma lógica pois o adultério é o melhor amante do casamento, na assepsia que deve varrer o perigo da desordem. O risco da ruína da família. Do lar-gramática que procura no amante-adultério oxigenar o amor ao lar. Fidelidade e traição se irmanam como parentes próximos. O amante- terceira perna, neste caso, equivale ao papel comportado que cabe à esposa e ao marido. Gira em torno da mesma representação, no compasso da eterna espera da vontade de maioria. O amante-terceira perna vê no casamento sua maior virtude, fazendo da família sua meta, seu peso e espírito de gravidade giram em torno da órbita da moral do amor. Esposa; marido; prole obediente; amante-terceira perna se identificam no amor que irmana súdito e cidadão, polícia e sociedade, legal e ilegal, lei e moral, ovelha e pastor, juízo e tribunal, Deus e Estado. Apaziguamento do corpo e do prazer. Procriação dócil, docilizada. O sexo institucionalizado em nome de sua abstração segura: a moral do amor. “Se por uma inversão tática dos diversos mecanismos

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Do amor à política

da sexualidade, quisermos opor os corpos, os prazeres, os saberes, em sua multiplicidade e sua possibilidade de resistência às captações de poder, será com relação à instância do sexo que deveremos liberar-nos. Contra

o dispositivo da sexualidade, o ponto de apoio do contra- ataque não deve ser o sexo-desejo, mas os corpos e os prazeres.”5 Amor e política. Amor à política. A política assume a conotação sub-reptícia do etéreo que deve assumir densidade no universal de seres e coisas, a espera de um contexto que venha impregnar-lhe de realidade, dissociando a carne, o físico e o ideal; elementos de representação devotados a um terceiro objeto sem, no entanto, partir de algum, ou ainda, o amor alocado no espaço público, deve emergir da devoção e não do interesse pelo objeto. Esta é a condição para que uma hierarquia linear e evolutiva seja capaz de traçar sua meta em direção a uma categoria passível de ser universalizada. Conceito amor propugnado, com insistência e regularidade, nos dias atuais. Este amor universal, por sua vez, pode e deve adquirir contornos mais elásticos, prolongando-se a outros seres ou coisas. Devotos da representação.

Gilles Deleuze, em Diferença e repetição,6 problematiza logo no início de sua análise algumas categorias inerentes à prática da representação: a mediação, a ilustração, generalidade, o exemplar e o universal. O discurso da representação orbita sobre a linguagem de variações do Mesmo como saber sobre o Outro, na medida em que, em nome da tolerância ao diferente, aquele construído no espelho identitário como o outro deve manter a distância mensurada no espelho representação do assemelhado do mesmo. Neste sentido, a representação transposta para o campo da diferença não passa de um jogo invertido da assinatura: a mediação torna-se sobreposição da mesma representação (o que

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imprime a lógica); a ilustração vira alegoria; a generalidade (a lei) é convertida em inúmeras semelhanças; o exemplar catalisa aquilo que no outro é mínimo para se tranformar no mesmo em algo gigantesco; o universal opera a economia da grande verdade gerindo cotas de subserviência ao absoluto.

Devotos da servidão. O amor-devoção, estágio são, esperado pela política desfaz o ruído entre amor e paixão para encadeá-los linearmente num termo totalizador e ininterrupto: compaixão. Seu elo com a polis é congeminado como mediação capaz de restaurar o amor perdido, pois a devoção ao diferente deve ser capaz de caber no mesmo amor agora restituído em torno da comunidade que gesta o ideal de sociedade. A compaixão parece ser a mediação preferencial no acovardamento dos indignados. O amor sai de cena como o objeto per- dido e a única paixão suportável é a do amor apiedado de si mesmo. Outra e mesma forma, possível, de compor o termo compaixão.

A ruína da política

Nietzsche faz uma afirmação instigante em Assim falou Zaratustra: “todo grande amor não quer amor, quer mais do que isso.”7 Sua afirmação desloca a discussão tecida em torno do amor para fora do eixo da gramática. Pois ao fazê-lo ele estanca a palavra e arruína os valores que hierarquizam o amor subjugado ao amor apiedado de si mesmo. O amor subserviente ao valores que

o constituem enquanto representação de júbilo ao próprio amor. A afirmação de Nietzsche investe na ruína da política, uma vez que não almeja nem a posição de meio e nem de fim. Não há, pois, espaço para a compaixão, meio disponível para o cidadão na comunidade, e nem de fraternidade, fim a ser alcançado pelo homem na irmandade universal da sociedade. Não há amor perdido verve

Do amor à política

que deva ser restituído, tampouco perseguido, já que os valores que edificam este amor é que são o alvo. “Uma tarefa dionisíaca tem, de modo decisivo, como condições prévias a dureza do martelo e o próprio prazer da destruição.”8 O amor e a compaixão pelo homem é que são arruinados por uma linguagem inventada pelo descomedimento da paixão, o descompasso ruidoso do prazer e o intolerável da dor. Linguagem-invenção, instrumento cruel, que arruína a linguagem-representação meio e fim.

“Dizeis: ‘A vida é dura de suportar.’ Mas para que teríeis, de manhã, a vossa altivez e, de noite, a vossa submissão? A vida é dura de suportar; mas por favor, não vos façais de tão delicados. Não passamos, todos juntos de umas lindas bestas de carga.”9 Finda o tempo das bestas de carga que fazem do amor o valor de sua sobrecarga maior e da vida seu enorme fardo. “É verdade: amamos a vida, porque estamos acostumados não à vida, mas a amar.”10 O leão ruge seu não. Não basta, o não restrito ao não ainda se prende ao fio da moral. “Não é com a ira que se mata, mas com o riso.”11 É preciso o sim. Mas, o sim isolado em si próprio ainda comporta o elogio ao temor do eterno retorno. É preciso um sim que redobre o sim. O eco no disparate. “Aprendi a caminhar; desde então, gosto de correr. Aprendi a voar; desde então, não preciso que me empurrem, para sair do lugar.”12 Abolição do peso. A vida indissociável da morte que a fertiliza. Movimentos cruéis que incidem, antes de mais nada, naqueles que os praticam. A leveza da dança no meio da poeira infame da vertigem na embriaguez. “Agora, estou leve; agora vôo, agora, vejo-me debaixo de mim mesmo, agora um deus dança dentro de mim.”13 Riso intenso. Interessa o escândalo. O escândalo do conhecimento que sabe apenas daquilo que

o corpo experimenta. 2 2002

Amantes interessados na ruína da sintaxe são perigosos. Habitam no risco. Freqüentam abrigos precários. Espaços circunstanciais, transitórios, fugidios. Lançam- se sobre gestos sob a força do acaso.

É possível dizer da leveza dos amantes, cujo encontro sempre soa como a embriaguez da festa. Dispensam palavras de seus próprios deslizes. Destoam num tom absurdo. Despem roupas, máscaras, vestes mornas. Sem palavras. O reconhecimento e o estranhamento se misturam no instante preciso de um riso imprevisto. De olhos marejados. Amantes praticam o exercício de crueldade com o tempo. Só há espaço.

Locais outros na mesma palavra amante, pois interessa à analítica arruinar a soberania do significante e do significado. Soberania que se remete à ordem intocada do discurso que dissocia saber e poder, com base no temor, ao gosto de Platão — como aponta Foucault, quando se coloca a questão de como os temas da filosofia vieram reforçar e responder ao jogo de limitações e de exclusões dos discursos. A inscrição do discurso na ordem do significante, edifica seu próprio discurso no jogo entre três conceitos signos: a filosofia do sujeito fundante (jogo da escritura); a filosofia da experiência originária (leitura); filosofia da mediação universal (troca). “E se quisermos, não digo apagar esse temor, mas analisá-lo em suas condições, seu jogo e seus efeitos, é preciso, creio, optar por três decisões às quais nosso pensamento resiste um pouco, hoje em dia, e que correspondem aos três grupos de funções que acabo de evocar: questionar nossa vontade de verdade; restituir ao discurso seu caráter de acontecimento; suspender, enfim a soberania do significante.”14

Amantes podem evocar e constituir a muleta do casamento, quando designam relações extra-matrimoniais, o amante terceira perna, a vida como peso da sobrecarga da muleta; podem ainda remeter ao amantilho

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Do amor à política

de carga, designação da peça, do cabo, do pau que sustenta para cima a extremidade de uma lança, ou ainda, na navegação marítima os cabos que vão da verga até o mais alto cume do mastro de um barco, para dar sustentação horizontal ou movimento vertical.

No entanto, é possível introduzir o ruído na lingua- gem, na palavra amante, corrompê-la, fazer vibrar o que nela há de ecândalo do acontecimento. Tomá-la pelo lado de fora. Arremessá-la na intempestividade do mar. Lugar de mar. Amantes gostam de mar. Da sua violência, de sua calmaria. Mudança de humores. Amantes desfrutam do espaço em barcos incessantemente inventados. Locais díspares.

Foucault, no texto “Outros espaços” faz uma referência explícita à conexão existente entre barcos e heterotopias. “O navio é a heterotopia por excelência. Nas civilizações sem barcos os sonhos se esgotam, a espionagem ali substitui a aventura e a polícia, os corsários.” 15

Importa à analítica não se contentar com o sossego do barco, tampouco, com a pacificação artificial das civilizações. Por isso, interessa a amantes revolver os acontecimentos. Deflagrar um contrabando, uma contra-dança, a partir do que aponta Foucault. Quando ele problematiza a discussão acerca da heterotopia, a situa a partir de uma experiência mista, heterogênea. Coloca

o desafio de se tomar a atualidade do espaço, e deslocálo para fora da subserviência ao tempo como categoria soberana. Trata-se do espaço de fora. Espaço heterogêneo. É possível a partir da sinalização de Foucault experimentar uma nova série heterotópica não de posicionamentos, mas, de contra-posicionamentos? Notas

1 Definição retirada do Dicionário Aurélio.

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2 Michel Foucault. A ordem do discurso. São Paulo, Edições Loyola, 1996. 3 Idem, p. 10. 4 Ibidem, pp. 18-19. 5 Michel Foucault. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro,

Edições Graal, 1988, p. 147. 6 Gilles Deleuze. Diferença e repetição. Rio de Janeiro, Graal, 1988. 7 Friedrich Nietzsche. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém.

Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1998.

8 Friedrich Nietzsche. Ecce homo: como se vem a ser o que é. Lisboa, Edições 70, 1989, p. 100. 9 Friedrich Nietzsche, op. cit. , 1998, p. 67. 10 Idem. 11 Ibidem. 12 Ibidem. 13 Ibidem. 14 Michel Foucault. A ordem do discurso. São Paulo, Edições Loyola, 1996, p.51. 15 In Michel Foucault. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Ditos e Escritos

III. Rio de Janeiro, Forense universitária, 2001, p. 422. O texto escrito na Tunísia em 1967, aguardaria quase 20 anos, no vão da gaveta, “na posta da estante”, para vir a público. Foucault só autorizou sua publicação em 1984. A proximidade da morte trouxe de volta a escrita na proximidade do mar, de um calor de oceano. RESUMO

A devoção ao amor é um dos elementos constitutivos da sintaxe da sujeição, prática constante dos devotos do amor à política. Amantes interessados na abolição da sintaxe são um perigo para a ordem da moral, pois investem na ruína da política.

ABSTRACT

The devotion to love is one of the elements that constitute the syntax of subjection, constant practice of those devoted to the love for politics. Lovers interested in the abolition of syntax are a danger for the moral order because they invest in the ruin of politics.

Compreendo, mas incapaz de me explicar sem palavras pagãs, preferiria emudecer.

Arthur Rimbaud

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o único1 max stirner * As eras pré-cristã e cristã perseguem objetivos distintos; uma quer idealizar o real, a outra realizar o ideal; a primeira procura o “espírito santo”, a última, o “corpo glorificado”. Assim, a primeira termina com a insensibilidade ao real, com o “desprezo pelo mundo”; a última chegará ao fim com a rejeição do ideal, com o “desprezo pelo espírito”.

A oposição do real ao ideal é irreconciliável e um nunca pode se transformar no outro: se o ideal se tornasse o real, não seria mais o ideal; e, se o real se tornasse o ideal, seria apenas o ideal, mas de forma alguma o real. A oposição dos dois não pode ser superada a não ser que se aniquile ambos. Apenas neste “se”, a terceira parte, a oposição encontra seu fim; de qualquer outra forma a idéia e a realidade nunca conseguirão coincidir. A idéia não pode ser realizada e permanecer idéia, mas é realizada quando morre como idéia; e o mesmo ocorre com o real.

* Século XIX, autor de um único livro e alguns escritos esparsos anarquizantes. verve, 2: 268-274, 2002

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O único

Mas agora temos diante de nós os antigos, partidários da idéia e os modernos, partidários da realidade. Nem uns nem outros podem se livrar da oposição e ambos apenas anseiam: uns pelo espírito e, quando este anseio do mundo antigo parecia estar satisfeito e este espírito ter chegado, os outros imediatamente passam a ansiar pela secularização deste espírito, que deve permanecer para sempre como uma “aspiração religiosa”.

A aspiração religiosa dos antigos era a santidade, a aspiração religiosa dos novos a corporeidade. Mas, assim como a antigüidade tinha de terminar se seu anseio fosse satisfeito (porque consistia apenas do anseio), a corporeidade nunca mais pode ser alcançada dentro do círculo da cristandade. Assim como o traço de santificação ou purificação permeia o mundo antigo (as abluções etc.), o da incorporação permeia o mundo cristão: Deus mergulha neste mundo, torna-se carne e quer redimi-lo, ou seja, preenchê-lo consigo mesmo; mas, como ele é “a idéia” ou “o espírito”, no fim, as pessoas (Hegel, por exemplo) introduzem a idéia em tudo, no mundo, e provam “que a idéia, a razão está em tudo”. Àquele identificado pelos estóicos pagãos como “o sábio” corresponde “o homem” na concepção atual, ambos seres descarnados. O “sábio” irreal, este “sagrado” sem corpo dos estóicos, tornou-se uma pessoa real, um “sagrado” corpóreo em Deus tornado carne; o “homem” irreal, o eu sem corpo, tornar-se-á real no eu corporal, em mim.

Perpassa o cristianismo a questão sobre a “existência de Deus”, a qual, levantada repetidas vezes, confirma que o anseio pela existência, a corporeidade, a personalidade, a realidade, ocupava incessantemente o coração porque nunca encontrou uma solução satisfatória. Finalmente, a questão sobre a existência de Deus caiu por terra, apenas para ser levantada de novo na proposição de que o “divino” tinha existência

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(Feuerbach). Mas isto também não tem existência, e o último refúgio, o de que o “puramente humano” seja realizável, não se sustentará por muito mais tempo. Nenhuma idéia tem existência, porque nenhuma é capaz de corporeidade. A disputa escolástica entre o realismo e o nominalismo tem o mesmo conteúdo; em re- sumo, isto se estende por toda a história cristã, e não pode terminar nela.

O mundo cristão está trabalhando para realizar idéias nas relações singulares da vida, nas instituições e leis da igreja e do Estado; mas elas resistem, e sempre guardam para si algo não encarnado (não realizável). Ainda assim, esta encarnação é perseguida sem descanso, não importa em que grau a corporeidade constantemente deixe de se realizar.

As realidades importam pouco para o realizador, pois

o que é de suma importância é que sejam realizações da idéia. Assim, ele está sempre examinando mais uma vez se o realizado incorpora verdadeiramente a idéia, seu cerne; e, ao testar o real, ele ao mesmo tempo testa a idéia, se é realizável como ele a pensa, ou se é apenas pensada incorretamente por ele, e, por esta razão, de forma inviável. O cristão não deve mais importar-se com a família, o Estado etc. como existências; os cristãos não devem se sacrificar por estas “coisas divinas” como os antigos, mas elas devem apenas ser utilizadas para tornar o espírito vivo neles. A família real tornou-se indiferente e ideal, que seria então a “verdadeiramente real”, deve surgir dela: uma família sagrada, abençoada por Deus, ou, segundo o raciocínio liberal, uma família “razoável”. Com os antigos, a família, o Estado, a pátria, etc., são existências divinas; com os novos, ainda esperam pela divindade, como existências apenas pecaminosas, mundanas, e ainda têm de ser “redimidas”, ou seja, tornarse verdadeiramente reais. Isto tem o seguinte significa

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O único

do: a família etc. não é o existente e real, mas o divino, a idéia, é existente e real; se esta família se tornará real absorvendo o verdadeiramente real — a idéia — ainda não se sabe. Não é tarefa do indivíduo servir à família como o divino, mas, inversamente, servir ao divino e trazê-lo à família ainda não divina, sujeitar tudo em nome da idéia, fincar a bandeira da idéia em toda parte, levar a idéia à eficácia real.

Mas, como a preocupação do cristianismo, assim como a da antigüidade, é com o divino, sempre chegam a isto, apesar de seguirem trilhas opostas. No fim do paganismo o divino torna-se o extramundano, no fim do cristianismo, o intramundano. A antigüidade não consegue colocá-lo totalmente fora do mundo e, quando o cristianismo realiza esta tarefa, o divino imediatamente anseia por voltar para o mundo e deseja “redimir”

o mundo. Mas no cristianismo isto não acontece e não pode acontecer, que o divino como intramundano tor- ne-se na realidade o próprio mundano: resta muito que permanece e deve permanecer impenetrado como o “mau”, irracional, acidental, “egoísta”, o “mundano”. O cristianismo começa com Deus tornando-se homem e realiza seu trabalho de conversão e redenção durante todo o tempo para preparar para Deus uma recepção em todos os homens e em tudo o que é humano, e penetrar tudo com o espírito: aferra-se a preparar um lugar para o “espírito”. Quando a ênfase foi finalmente posta no homem ou na humanidade, foi mais uma vez a idéia “eternamente pronunciada”: “O homem não morre!” Achava-se que a realidade da idéia havia sido encontrada: o homem é o eu da história, da história do mundo; é ele, este ideal, que realmente se desenvolve e portanto se realiza. Ele é

o verdadeiro real e corporal, pois a história é seu corpo, na qual os indivíduos são apenas os membros. Cristo é o eu da história do mundo, até mesmo da pré-cristã; na 2 2002

acepção moderna, é o homem. A figura do Cristo se transformou na figura do homem: é o homem como tal,

o homem pura e simplesmente como “ponto central” da história. “No homem”, o início imaginário volta porque “o homem” é tão imaginário quanto Cristo. “O homem”, como o eu da história do mundo, fecha o ciclo das acepções cristãs. O círculo mágico do cristianismo seria quebrado se a difícil relação entre a existência e a vocação, ou seja, entre eu como sou e eu como deveria ser, cessasse; persiste apenas como o anseio da idéia por sua corporeidade e desaparece com a remitente separação das duas: apenas quando a idéia permanece — idéia mesmo, já que o homem ou a humanidade são de fato idéias sem corpo, o cristianismo ainda sobrevive. A idéia corporal, o espírito corporal ou “completo”, flutua diante do cristão como “o fim dos dias” ou como o “objetivo da história”; não lhe é co-presente.

O indivíduo pode apenas participar na fundação do Reino de Deus ou, segundo a noção moderna da mesma coisa, no desenvolvimento e na história da humanidade; e apenas na medida em que participa nisso, aplica- se a ele um valor cristão, ou segundo a expressão moderna, humano; para o resto, ele é poeira e um saco de vermes.

A idéia de que o indivíduo é para si próprio uma história do mundo e faz parte do resto da história do mundo, vai além do cristianismo. Para o cristão, a história do mundo é a coisa mais elevada, porque é a história de Cristo ou “do homem”; para o egoísta apenas sua história tem valor, porque ele quer desenvolver apenas a si mesmo, não à idéia de humanidade, não ao plano de Deus, não aos propósitos da Providência, não à liberdade e assim por diante. Ele não se vê como uma ferramenta da idéia ou um recipiente de Deus, ele não reconhece nenhuma vocação, ele não acredita que existe

verve

O único

para o desenvolvimento da humanidade e que tem de contribuir para ele com seu óbolo, mas ele vive, não se importando com quão bem ou mal a humanidade irá passar assim. Se não desse margem à confusão com a idéia de que um estado de natureza deve ser admirado, poder-se-ia citar Drei Zigeuner [Três ciganos] de Lenau. O que sou eu no mundo para realizar idéias? Fazer minha parte através de minha cidadania, digamos, para a realização da idéia “Estado”, ou através do casamento, como marido e pai, para dar existência à idéia da família? O que tem essa vocação a ver comigo! Vivo em conformidade com uma vocação tanto quanto a flor cresce e produz fragrância em conformidade com uma vocação.

O ideal “o homem” é realizado quando a acepção cristã se inverte tornando-se a proposição: “eu, este único, sou o homem”. A questão conceitual “o que é o homem?” transformou-se então na questão pessoal “quem é o homem?”. Com “o que” o conceito era procurado, para realizá-lo; com “quem” não é absolutamente mais uma questão, mas a resposta está pessoal e imediatamente à mão em quem pergunta: a questão responde a si própria.

Dizem de Deus, “não deis nomes”. Isto se aplica a mim: nenhum conceito me expressa, nada do que é designado como meu ser me esgota; são apenas nomes. Da mesma forma, dizem de Deus que ele é perfeito e que não tem nenhuma vocação para buscar a perfeição. Isto também se aplica a mim.

Eu sou dono de meu poder, e o sou quando me sei único. No único, o próprio regressa para seu criativo nada do qual nasceu. Todo ser mais elevado acima de mim, seja Deus, seja homem, enfraquece o sentimento de minha singularidade e empalidece apenas diante do sol desta consciência. Se eu me ocupo de mim mesmo,

o único, minha ocupação repousa sobre seu criador tran 2 2002

sitório e mortal, que se consome, e eu posso dizer: Eu fundo minhas coisas em nada2.

Notas

1 Der Einzige, terceira e derradeira parte de Einzige und Eizegentum (O único e sua propriedade), de Max Stirner, publicado em 1844. Traduzido do inglês por Maria Brant. Revisado e confrontado com o original alemão por Dorothea Voegeli Passetti.

2"’Ich hab’ Mein’ Sach’ auf Nichts gestellt’, “Eu fundo minhas coisas em nada”, é o verso de abertura do poema Vanitas! Vanitatum vanitas!, de Goethe, usado por Max Stirner como frase de abertura e encerramento de O único e sua propriedade, e ocasionalmente alude a ela durante o livro”. (Nota de David Leopold para a edição em inglês, The ego and its own. United Kingdom, Cambridge University Press, 1995, p. 326).

verve

Estendi cordas de campanário a campanário; guirlandas de janela a janela; correntes de ouro de estrela a estrela, e danço.

Arthur Rimbaud

2 2002

Resenhas

anarquismo além-mar. crítica ao estado e

acácio augusto s. jr.*

anarquismo em portugal

Utopia. Lisboa, Associação Cultural A Vida. Números 9,10,11,12 e 13.

Fazer uma revista anarquista não é uma tarefa fácil. O mercado ávido por respostas prontas e imediatas não suporta a reflexão e a crítica, ainda mais quando esta é certeira como a dos anarquistas. Portanto, é um prazer falar sobre uma revista portuguesa que faz e vive anarquismos, desde 1995. É possível criar espaços de reflexão e crítica, sem fazer coro com o rebanho uníssono e sem perder na redenção de ídolos.

Utopia é uma “revista anarquista de cultura e intervenção”. Assim ela se autodefine e assim ela é. É um

* Estudante de Ciências Sociais e integrante do Nu-Sol. verve, 2: 293-296, 2002

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Anarquismo além-mar: crítica ao Estado e anarquismo em Portugal

espaço de afirmação no qual se produz ação e palavra, já que uma não se desliga da outra. Refletindo sobre os acontecimentos da sociedade e as implicações do Estado moderno, entendendo-o como principal interessado em produzir guerras e situações de alarme para oprimir e controlar os indivíduos, a revista assume uma postura firme contra o Estado, com uma argumentação coerente e ousada. Utopia é um sopro de diferença, uma mostra que os anarquistas têm muito a dizer sobre os acontecimentos que tanto afligem a sociedade moderna e não passam de formas de perpetuar o Estado e o controle sobre os indivíduos. Isto não significa que encontraram uma análise fechada e um pensamento totalizado, acabado em suas páginas, pois assim como os anarquismos, Utopia pode ser várias sem abrir mão de um estilo próprio. É uma visão anarquizante do mundo. Coisa não muito comum, em um tempo onde a maioria só está preocupada em dizer e ouvir verdades únicas sobre o mundo e suas coisas.

A revista é editada pela Associação Cultural A Vida, um grupo de Lisboa. Traz artigos e entrevistas de pessoas do Brasil, Argentina, Espanha, França; enfim, pessoas que fazem e pensam anarquismos pelo mundo. Os números nove e dez (1999) trazem um dossiê sobre o caráter disciplinador do trabalho — que tenta nos transformar em cidadãos obedientes cumpridores de deveres —, a necessidade de se falar contra ele, e discussões sobre sindicalismo, tema histórico do anarquismo, sob uma perspectiva atual. A guerra como característica histórica do Estado, sendo a existência de uma condicionada à do outro.

A relação entre os Estados-modernos, a lógica do capital e as ações de guerra é o assunto central dos números onze e doze (este um número duplo em uma única revista, 2001). Mostra como o Estado se ajusta às novas condições objetivas da sociedade e se dilui no

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cotidiano das pessoas. Colocar-se contra essa lógica, criando uma nova e também cotidiana, é uma forma de resistência encontrada.

O número treze data do primeiro semestre de 2002 e trata dos acontecimentos ocorridos no semestre anterior, o do famoso 11 de setembro. Mostra como a crítica anarquista pode tecer uma análise destoante das demais sobre tais fatos. Enquanto todos correm para justificar a violência, a revista vê a incapacidade da sociedade digerir seus conflitos: “Torna-se por demais evidente a total incapacidade da sociedade estatizada e hierárquica em conseguir erradicar a guerra e a pobreza, alterar o relacionamento humano ou criar uma sociedade mais fraterna e humana” e, “(...) só vem confirmar a tese anarquista da relação entre lógicas de Estado e guerra como condição permanente ao desenvolvimento da dominação e da sociedade de exploração” (Editorial, no 13). O Estado é o monopólio da violência, todos o sabem. Sabem, também, que para se manter a dominação ele precisa guerrear. Então, se quiserem acabar com as guerras, acabem com o Estado.

Junto com os assuntos centrais a revista também discute o anarquismo, sua história, possibilidades de realizações no tempo presente, na vida cotidiana; traz resenhas de publicações sobre o assunto e divulga endereços de jornais, revistas, editoras e grupos anarquistas no mundo todo, além das já citadas entrevistas com pessoas importantes para história do anarquismo e artigos extraídos de outros periódicos. Poesia, fotos e gravuras recheiam as páginas da revista. Artigos mais ligados à realidade portuguesa são encontrados em todos os números, como uma matéria sobre a situação das prisões em Portugal (número 13), que mostra não haver diferença na maneira como o Estado trata os indesejáveis. Assim como no Brasil, ou em qualquer Estado, nas prisões portuguesas acontece de tudo e ninguém sabe

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Anarquismo além-mar: crítica ao Estado e anarquismo em Portugal

de nada: a falta de coragem da sociedade de encarar seus conflitos é a mesma.

Vivemos em uma época tenebrosa em que o pensamento se pretende universal e totalizador. Quem sair da linha é detonado. Os conflitos só se resolvem com uniformização, reforma, punição. As pessoas pedem cada vez mais polícia, Estado, controle, e não percebem que isso não resolve. Ter uma revista em circulação que fala contra o Estado, a polícia, a prisão, a punição, todo

o aparato que não só nos mantém nesta situação, como nos empurra cada vez mais para o buraco, é uma satisfação, pois tem gente ligada na maneira como se anda deixando de perceber as coisas que acontecem debaixo do nariz de todo mundo: uma vida orientada no sentido da violência, onde cada vez menos se criam espaços de afirmação da vida. Utopia é um espaço onde isto é possível. A partir deste último número, o 13, a revista pas- sa de semestral para quadrimestral, com redução no número de páginas. Possui também um site na Internet, no endereço: www.utopia.pt. A revista é editada em preto e branco com capa colorida. Os contatos com a revista para assinatura, pedido de números anteriores, ou simplesmente para obter mais informações podem ser feitos pelo endereço eletrônico utopia@tande.com ou pelo correio: Apartado 2537-1113, Lisboa Codex .

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nildo avelino *

estilos de liberdade

Marcolino Jeremias, et al (org.). Três depoimentos libertários: Edgar

Rodrigues, Jaime Cubero e Diego Gimenez Moreno. Rio de Janeiro, Robson

Achiamé Editor, 2002, 245 pp.

Seu melhor livro os anarquistas têm escrito com suas próprias vidas. Essa observação coloca uma dimensão do anarquismo que é muito valorizada e que trata da vida a melhor propaganda. É “vida vivida” do anarquista como a mais eficaz expressão em detrimento do mais completo sistema ou programa de idéias. É a “atitude anarquista” que, ao transpor o que é meramente eidético, inaugura sua existência, seu uso e disposição ética. Elisée Reclus dizia: “é pelo caráter pessoal que se faz a verdadeira propaganda” .

Não se trata de negar ou diminuir a extraordinária capacidade teórica dos anarquistas; isso seria historicamente falso e facilmente desmentido pela produção literária de um Proudhon, que versa sobre os problemas mais sutis de economia política, sociologia e teoria do conhecimento, até o desenvolvimento de um pensamento estético libertário. É preciso ver nessa produção, não um exercício exegético, mas um pensamento no qual se situa uma certa maneira de viver e ver o mundo, bem como sua própria decisão voluntária: uma escolha de vida e uma opção existencial. Essa escolha e opção exigem do anarquista uma conversão de todo o seu ser e a um desejo de ser e de viver de certa maneira; essa escolha e opção implicam ainda uma certa visão

* Mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP e integrante do Centro de Cultura Social, São Paulo. verve, 2: 280-283, 2002

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Estilos de liberdade

de mundo cujo discurso tem por tarefa justificar racionalmente. O discurso nasce, portanto, de uma opção existencial inicial que o conduz, por meio da persuasão, à atitude anarquista. Isso é explícito: a anarquia não se suspende quando termina o discurso por que está indissoluvelmente associada a um modo de vida que tende incessantemente para a liberdade sem nunca atingi-la por completo. Malatesta foi, talvez, o pensador que melhor expressou esse aspecto teorético do anarquismo. “Deixando de lado a incerta filosofia, prefiro ater-me nas definições vulgares que nos dizem que a Anarquia é uma forma de convivência social na qual os homens vivam como irmãos sem que ninguém possa reprimir ou explorar os demais e na qual todos disponham dos meios que a civilização possa oferecer-lhes para alcançar o máximo desenvolvimento moral e material; e Anarquismo é o método para realizar a anarquia mediante a liberdade, sem governo, ou seja, sem órgãos autoritários que pela força, ainda que com boas intenções, imponham aos demais sua vontade”.

Dessa dimensão teorética do anarquismo resulta estilos de liberdade: práticas singulares que criam valores a partir dos quais os indivíduos se posicionam em relação aos seus desejos e afetos na gestão de suas pulsões; não se trata, no anarquismo, de valores universalistas, mas de criações heterogêneas e poéticas no sentido etimológico deste termo.

Sob este aspecto a realização do trabalho Três depoimentos libertários: Edgar Rodrigues, Jaime Cubero e Diego Gimenez Moreno é tanto mais importante quando se tem em conta que as vidas que nele se desenham são vidas simples, desprovidas de ambições materiais e poder; que são e foram vividas sem glórias ou merecimentos, mas são “obras” que fixaram uma existência pautada por estilos de liberdade. São pessoas que vie- ram do mundo do trabalho e que mantiveram uma

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militância anônima; seus relatos contextualizam opções e preferências e dão vida ao tema do anarquismo. Para além das derrotas no campo mais geral, as experiências delineiam uma ética do comportamento anarquista onde se reconhecem. Os relatos de Edgar Rodrigues, Jaime Cubero e Diego Gimenez afirmam nas suas pessoas a intensidade de suas vidas, as verdades individuais, as práticas singulares: a ligação de uma existência pessoal e sua experiência coletiva.

“Eu não tenho nenhum modelo de militante anarquista. Cada ser humano carrega uma individualidade, é um mundo de surpresas, capacidades e contradições. Afirma-se e nega-se mais quando age do que quando fala e/ou escreve. Os escritos e as palavras podem ser corrigidas, ajeitadas, suavizadas. A ação e a emoção não podem ser retocadas e nem sempre expressam em gestos e procedimentos intempestivos, o que somos real- mente: carregam deformações e atavismos seculares”(p. 43).

“Lembro-me que escrevi um texto aos 12 anos e mostrei a um amiguinho que disse: “Pô, você é contra tudo, quer acabar com o mundo, você é contra o governo, a religião, contra isso, contra aquilo...”. Eu me sentia revoltado contra todas as injustiças que eu tinha visto. Daí depois tive a vivência com os outros militantes, lá no Centro. A própria responsabilidade de passar a secretariar, logo de início, o Centro dava-me uma certa responsabilidade, um envolvimento, um compromisso. Eu tenho um texto sobre ética anarquista mostrando mais ou menos esse aspecto: quando o sujeito assume um compromisso deve procurar cumprir. Para mim é fundamentalmente um problema ético. O sujeito se vê em face de um mundo tremendamente injusto, cheio de contradições. Ele se revolta contra aquilo, se insurge. Se ele encontra companheiros que pensam como

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ele, passa a assumir uma espécie de compromisso com os outros para lutar contra isso (...)” (p. 118).

“Para mim anarquismo é o seguinte: todo aquele que deixa os vícios adquiridos no sistema burguês, deixa de ser escravo de todo o vício que o sistema criou do qual você participa pouco ou muito, uso de drogas. A liberação de todos esses vícios, participar com a companheira e os filhos desse desejo de liberdade. Iniciar essa educação com os filhos. Considerar a tua companheira com os mesmos direitos e não considerar que ela deve só ficar em casa, na cozinha e no tanque. Se você não está preparado nesse sentido, não está preparado para criar uma sociedade anarquista”(p. 228).

A leitura desse oportuno livro nos ajuda a compreender que numa definição da ética anarquista a ênfase deve ser dada às formas de subjetivação e de suas práticas, pois ela se volta mais para o indivíduo do que para um código ou outra regra explícita; a importância não recai sobre um conteúdo exterior, mas nas atitudes que fazem os indivíduos atingirem modos de ser; trata-se de um saber-fazer que reúne modos de subjetivação, elementos de ascese e práticas de liberdade. É que a vida anarquista diz: liberdade se vive.

retratando e apagando

Gabriel Passetti*

Paul Avrich. Anarchist portraits. Princeton, Princeton University Press, 1988, 316 pp.

Paul Avrich, historiador do anarquismo e professor do Queens College em Nova York, publicou em 1988

* Estudante de História na USP e integrante da Klepsidra — Revista Virtual de História (www.klepsidra.net). verve, 2: 283-289, 2002

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sua obra Anarchist Portraits, uma compilação de artigos já publicados, entrecortados por alguns escritos inéditos sobre diversos anarquistas. Nele estão os mais importantes e reconhecidos, como Bakunin, Kropotkin e Makhno, pouco conhecidos, como J. W. Fleming e esquecidos, como Gustav Landauer.

O livro está dividido em três partes: “Rússia”, “América” (leia-se EUA) e “Europa e o Mundo” (leia-se Brasil e Austrália). Parece contraditório dividir anarquistas em nacionalidades, ainda mais se pensarmos no anarquismo nos EUA, formado basicamente de imigrantes. A divisão é defendida com base no entendimento de que “anarquismo é a defesa do indivíduo e da diversidade, contra a uniformização, prezando pelas diferenças entre as pessoas e povos — cultural, lingüística e historicamente” (p. 176). Sendo assim, é justificável dividi- los em países ou áreas geográficas para estudá-los dentro de uma mesma sociedade.

A proposta é entender as bases do fortalecimento do anarquismo nos EUA e apresentar seus pressupostos, ideólogos e pontos de vista ao público leitor estadunidense. Portanto, ao abordar a atuação dos anarquistas russos, Avrich dedica longos capítulos às suas passagens pelos EUA. Para ele, o movimento foi alimentado pela chegada de imigrantes europeus e perdeu força devido à incessante perseguição do Estado, da burguesia, da imprensa e à inserção dos filhos dos recém-chegados ao american way of life.

O Anarquismo sempre gerou uma reação contrária muito forte nos EUA, talvez por ser visto por alguns como a potencialização de seu liberalismo — já levada ao limite por Henry David Thoreau e seus clássicos Walden e Desobediência civil — com a abolição do Estado e da propriedade privada. Os anarquistas até as últimas manifestações anti-globalização em Seattle, são identificados como extremamente perigosos e contra os prin

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cípios daquela sociedade, portanto sujeitos a serem caçados.

A difamação e a perseguição criaram uma imagem extremamente negativa dos anarquistas, tidos como meros assassinos e terroristas, principalmente após o homicídio do presidente McKinley (1901) — atribuído a um suposto anarquista. Com a Revolução Russa, a repressão se tornou mais aberta e aclamada pela burguesia. Entretanto, durante as lutas estudantis dos anos 60 e 70, o movimento ganhou força mais uma vez, e é neste ponto que entra Anarchist portraits.

O livro defende a tese de que entre o final do século XIX e o início do XX houve uma inversão de valores nos EUA, com a repressão direta aos anarquistas. Usando seu poder, força repressora e monopólio da violência, o Estado prendeu, assassinou, extraditou e censurou uma quantidade incontável de anarquistas — imigrantes ou nativos, interceptando a formação de uma sociedade libertária.

Foi um início de século XX semelhante, lá nos EUA e aqui no Brasil. Por isso, chama a atenção do leitor brasileiro o fato de Avrich dedicar um capítulo de sua obra aos anarquistas brasileiros. O Brasil é o único país da América Latina a merecer destaque, apesar do autor afirmar que o movimento foi ainda mais forte na Argentina. Entretanto, aqui teriam vivido “algumas das mais interessantes figuras de toda a história do anarquismo”

(p. 256). A Polinice Mattei, Giovanni Rossi, Oreste Ristori, Gigi Damiani, Everardo Dias, Benjamin Mota, Florentino de Carvalho, Neno Vasco, Paulo Berthelot, Edgard Leuenroth, Manuel Moscoso, Fábio Luz e José Oiticica, dedicou cinco páginas, um parágrafo a cada. É inquietante a descrição e a análise destes anarquistas. Assim como no caso dos estadunidenses, eles são em sua ampla maioria imigrantes ou descendentes. Nas poucas linhas, Avrich cita acontecimentos de fundamen 2 2002

tal importância para nossa história, como a Colônia Cecília, a greve geral de 1917 e o apoio inicial à Revolução Russa.

Paul Avrich nos leva a uma visão diferente sobre os anarquistas da virada do século daquela geralmente encontrada na historiografia. Usando como estratégia os pequenos capítulos — retratos — sobre a vida e a atuação destas pessoas, mostra um outro lado do anarquismo, no qual militância, pensamento e relações interpessoais são realçadas como modos de explicitar as mais diversas formas de viver e conviver anarquistas.

Ao mesmo tempo em que lembra pensadores que defendiam ação direta, terrorismo, assassinato e conspiração, também apresenta e defende outras visões do anarquismo, fundamentadas nas liberdades individuais e em diversos métodos para o estabelecimento de uma vida anarquista.

Avrich deixa clara sua escolha dentro dos mais diversos anarquismos. Sem conseguir afastar-se de um juízo de valores, acaba por passar ao leitor imagens extremamente positivas e até mitificadas de, por exemplo, Bakunin, Kropotkin e Sacco e Vanzetti. Entretanto, por não explicitar suas preferências, acaba contribuindo para a construção de estereótipos bastante negativos de anarquistas que optaram por outras formas de pensar e atuar que não a de sua preferência.

Neste sentido, não foge da velha escola historiográfica que se especializou em atacar a atuação das pessoas, quando não as apagou de sua História. Emma Goldman é um destes casos de esquecimento. A militante anarquista mais importante dos EUA está relegada a um papel ínfimo tanto para o pensamento quanto para a atuação no movimento naquele país e na Europa. Ela é apresentada como mera companheira de Alexander

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Berkman e lembrada pelo seu contato com o desconhecido Fleming.

Apesar das circunstâncias e modos de vida dos anarquistas descritos por Avrich serem os mais diversos, há também algumas linhas gerais que os unem — além de seu ideal. Todos, sem exceção, foram presos e perseguidos, e a grande maioria foi deportada — inúmeras vezes. O mais marcante, contudo, é a dedicação intensa que estas pessoas deram aos seus pressupostos e escolhas pela vida libertária.

Seja como trabalhadores, intelectuais, palestrantes, editores de jornal ou tradutores, eles aplicaram em suas vidas o que entendiam ser uma sociedade justa, livre e libertária. Narrando a vida destas pessoas, seus dilemas, lutas, e perseguições, Paul Avrich mostra que o anarquismo era um movimento social muito forte e busca entender por que, como e quando o movimento reapareceu com força entre os jovens nos anos 60 e 70 nos EUA.

Insatisfeitos com a discriminação, a guerra, a violência e a intromissão do Estado na vida das pessoas, surgiram inúmeros movimentos sociais naquelas décadas, tais como os hyppies, o feminismo, o movimento negro, o ecológico e os pacifistas. Lendo os clássicos pensadores libertários, tais grupos trouxeram de volta aos estudantes algumas discussões, mesmo sem encampar abertamente o anarquismo, que haviam sido caladas décadas atrás pelo Medo Vermelho nos EUA, assim como pelo Terror Vermelho, na URSS e pela decepção decorrente do desfecho da Guerra Civil Espanhola.

E é neste campo que o livro mostra sua atualidade. Em um momento no qual o Estado, a representatividade eleitoral e o aparato militar estão cada vez sendo menos questionados, e pelo contrário, sendo sacralizados pela direita e pela esquerda, ler e pensar

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sobre Deus e o Estado (Bakunin), Catecismo de um revolucionário (Nechaev) e Ajuda mútua (Kropotkin), por exemplo, e sobre a importância de jornais e revistas no passado, traz de volta questões que jamais deixaram de ser pertinentes e mostram a importância da retomada deste tipo de leitura e atividades nos tempos atuais.

Nada, ou quase nada, mudou neste sentido no último século. O Estado continua sendo aclamado como a melhor forma de convívio social, a polícia e o exército continuam existindo a serviço da manutenção da ordem social vigente, da exploração e da violência. Até os mártires continuam sendo criados.

Se para os anarquistas de décadas atrás eram Sacco e Vanzetti, ou os executados do caso Haymarket que eram lembrados como assassinatos políticos, hoje em dia temos o italiano Carlo Giuliani morto em Gênova, ou as dezenas de argentinos, brasileiros, colombianos, peruanos, uruguaios, etc, investigados, perseguidos e presos por suas convicções libertárias e contestação ao status quo quando saem às ruas para protestar e se enfrentam com a polícia.

Se às vezes nos sentimos como o britânico J. W. Fleming, que sozinho em sua esquina na Austrália jamais desistiu de seus ideais e palestras anarquistas contra o desemprego, os trabalhistas e as guerras, devemos lembrar também das intensas vidas destes anarquistas descritos por Paul Avrich. Gente como Kropotkin ou Berkman, que à sua maneira e pressupostos, aderiram ao anarquismo, pensaram e divulgaram seu ideal, vivendo uma vida libertária em meio a respostas as mais variadas da sociedade — situadas entre os extremos de simpatia aos operários e à hostilidade direta à burguesia, à grande imprensa e ao Estado.

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Daqueles que falam pela humanidade

daqueles que falam pela

andre degenszajn *

humanidade

Ronald Creagh. O dia em que o mundo mudou. São Paulo, Imaginário, 2001, 80 pp.

Não importam quais tenham sido os objetivos políticos dos atentados de 11 de setembro, a situação parece ter mudado para pior. Se por um lado o resultado da operação terrorista foi um sucesso do ponto de vista militar, tudo leva a acreditar que politicamente seu resultado foi negativo. Quando o mundo esperava uma retração do Estado americano em relação à sua política externa, este se lançou em mais uma cruzada internacional, dando origem a uma nova fase de expansão do Estado americano. A bandeira de guerra ao terrorismo serviu para legitimar um discurso que sustenta suas ações no campo internacional, desviando as atenções de seus reais objetivos.

Ronald Creagh em seu livro O dia em que o mundo mudou, publicado em português pela Editora Imaginário, logo após os ataques ao World Trade Center e ao Pentágono, constrói uma vigorosa argumentação sobre

o contexto no qual foram gestados os atentados, fornecendo elementos para uma análise que problematiza os efeitos daquele acontecimento. Creagh chama a atenção para um aspecto significativo das articulações terroristas, supostamente responsáveis pelos atentados de setembro de 2001. Há nestes grupos, denominados pelo autor de “proto-Estados”, elementos marcantes de uma organização estatal: estruturas hierárquicas e autoritárias, necessidade de afir

* Mestrando em Relações Internacionais pela PUC-SP e pesquisador no Nu-sol. verve, 2: 288-292, 2002

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mação e reconhecimento enquanto nação e um braço armado organizado, orientado por objetivos políticos. No caso da Al-Qaeda, um proto-Estado constituído a partir de investimentos e interesses estadunidenses que remetem ao período da Guerra Fria. Este não é o único caso em que os Estados Unidos sentiram a reação de sua própria política, implementada outrora em uma conjuntura política diversa. É apenas o mais recente.

O contexto internacional de hoje é outro e os parâmetros do conflito bi-polar já não explicam mais a realidade atual. Isto não significa, porém, que efeitos das políticas estadunidenses, de então, não sejam sentidos nos dias de hoje.

O tipo de política externa implementada pelos Estados Unidos exige um elevado grau de controle dos grupos que atuam em âmbito internacional. Sua presença ostensiva em regiões estratégicas do ponto de vista econômico e militar, ao mesmo tempo em que lhe assegura ganhos, expõe o Estado a interesses regionais conflitantes. A associação dos interesses econômicos aos interesses geopolíticos, sustentados tanto pelo Estado quanto pelas grandes corporações internacionais, abre espaço para uma ação conjunta entre esses grupos em regiões de especial relevância estratégica.

As duas regiões de maior conflito no mundo hoje, diretamente relacionadas com a presença estadunidense, são o Oriente Médio e a região do Cáucaso e Ásia Central. A razão do conflito não está, obviamente, relacionada ao desrespeito pelos direitos humanos. Os Estados Unidos nunca tiveram problemas em relação a isso. As maiores reservas de petróleo do mundo estão localizadas nessas regiões. Além da exploração do petróleo e do controle das reservas, outra questão estratégica fundamental está relacionada às vias de acesso para levar o petróleo até os mercados ociden

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Daqueles que falam pela humanidade

tais. O Afeganistão, neste sentido, possui uma importância vital.

Creagh sublinha que grandes empresas de exploração e transporte de petróleo estão fortemente ligadas ao presidente Bush e a diversos integrantes de seu governo, incluindo seu conselheiro e vice-presidente Dick Cheney. Com a instabilidade na região e a ameaça de perda do controle americano sobre o comércio do petróleo, os ataques à Nova York e Washington serviram como um ótimo pretexto para ampliar a presença militar dos Estados Unidos na região.

Os interesses econômicos e militares estadunidenses são legitimados por um discurso moral que procura conferir legitimidade às ações americanas no plano internacional. Desde 11 de setembro o mundo viu-se dividido entre o bem e o mal. Entre aqueles que apóiam os Estados Unidos e os que estão do lado dos terroristas. Esse maniqueísmo forjado pelo Estado americano não se explica apenas pela defesa de uma moral americana ou ocidental diante da ameaça árabe-muçulmana, termos que passaram a operar como sinônimos, mesmo não sendo. Ao dividir o mundo entre o bem e o mal, entre os que trazem consigo a verdade e aqueles que corporificam o mal e a ameaça aos valores e à moral ocidentais, abre-se caminho para qualquer ação que se apresente sob a justificativa de guerra contra o terror.

Se não pode haver qualquer tipo de acerto com as consideradas forças do mal, não há, da mesma maneira, qualquer limitação ou controle que se aplique às forças do bem. Quando há a afirmação de uma verdade absoluta e incontestável que se sobrepõe a outras, o extermínio de milhares de pessoas torna-se um ato de justiça, devendo receber a aceitação de todos. Os que se opõem, tornam-se iguais àqueles que são objetos de sua vingança, realizada sempre em nome da paz.

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A despeito de todo o histórico de ações terroristas empreendidas pelo Estado americano, este surge hoje como a vítima do fanatismo religioso que ameaça a liberdade e a democracia. A visão de que as demais nações não aceitam seu modo de vida, seus valores e ideais é a inversão de uma realidade de intolerância diante do diferente.

Um ano após os atentados, os Estados Unidos lançam sua Estratégia de Segurança Nacional diante da alegada ameaça terrorista global. Os Estados Unidos mostram ao mundo que estão dispostos a perseguir seus interesses dentro e fora de seu território — política expressa no documento, textualmente, por meio da afirmação de que irão “defender os Estados Unidos, o povo americano, e nossos interesses domésticos e internacionais, identificando e destruindo a ameaça antes que ela chegue às nossas fronteiras”. Ao mesmo tempo em que os Estados Unidos investem em sua campanha contra as forças do mal, no plano militar inicia-se uma articulação que anuncia uma nova guerra. Desta vez contra o inimigo favorito dos Bush. O Iraque não aceitou a justiça dos vencedores imposta após a Guerra do Golfo e agora deverá sofrer as conseqüências. Afinal, a justiça tarda, mas não falha...

A justiça a que se referem os Estados Unidos é uma justiça moral, uma justiça divina. Matar em nome de Deus e da humanidade não é um elemento novo. Das cruzadas à colonização do novo mundo, os Estados dominaram, destruíram e dizimaram povos em nome da humanidade.

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Ao Estado o poder de nos meter na cadeia

ao estado o poder de nos meter na cadeia

guilherme corrêa *

Discursos Sediciosos — crime direito e sociedade. Ano 7, número 11. Rio de Janeiro, Instituto Carioca de Criminologia/Editora Revan, 2002, 107 pp.

O número 11 da revista Discursos Sediciosos - crime, direito e sociedade é a tradução do número 124 da re- vista Actes de la Recherche en Sciences Sociales, dirigida por Pierre Bourdieu. São sete artigos reunidos sob a instigante legenda: Do Estado Social ao Estado Penal.

Não devemos deixar de estranhar este título. É disso mesmo que se trata? Da passagem de um Estado que transforma o dinheiro que retira dos cidadãos em serviços públicos tais como saúde, educação e defesa, para um Estado penal? É disso mesmo que se trata: da substituição do Estado social por um Estado penal e policial, ou seja, um Estado, segundo Loïc Wacquant, no qual a criminalização da miséria e o enclausuramento das categorias marginalizadas tomam o lugar da política social (p. 07).

Demarca-se aí uma descontinuidade, uma decisão política dos Estados, define-se uma condição para o bom governo nos Estados contemporâneos: a inflação carcerária, ou o isolamento dos que não compõem a boa imagem dos governos para os cidadãos, para as pessoas de bem.

Na leitura dos textos, alguns números vão indicando a importância da mudança que se processa no cenário mundial, encabeçada pelos Estados Unidos. Este país,

* Professor no Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Maria, mestre em Educação pela UFSC e pesquisador no Nu-Sol. verve, 2: 293-295, 2002

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embora tenha um índice de criminalidade comparável aos dos demais países desenvolvidos, apresenta, em 1997, índice de encarceramento de 600 detentos por 100 mil habitantes (índice que em 1985 era de 200). Também em 1997, Portugal, o país europeu que mais prende, tinha índice de 125 detentos por 100 mil habitantes. A febre prisional, todavia, assola a Europa, com aumento das taxas de encarceramento em Portugal, Espanha, Inglaterra, França, Itália, Bélgica, Países Baixos, Suécia e Grécia. Não faltam números para mostrar que pobres, negros e estrangeiros, são os estratos mais vulneráveis à sanha penalizadora das administrações estatais, nem para mostrar o quanto a diminuição da taxa de desemprego nos Estados Unidos, contrariamente à tendência observada mundialmente, deve-se à hiperinflação carcerária. Neste país, um em cada dez negros adultos está sob a tutela do Estado.

Surpreende saber que essa verdadeira explosão da população encarcerada não vem acompanhada de um respectivo aumento da criminalidade, mas de uma crescente penalização. O acirramento da repressão ao uso e comércio de drogas, o alargamento do espectro dos indivíduos considerados perigosos (incluindo desempregados, sem-teto, sem-documentos e outros tidos como marginais) e a diminuição da idade de responsabilidade penal, são os principais elementos dessa emergente forma de governo baseada na criação de mecanismos jurídicos, de captura e de controle visando o afastamento dos perigosos da boa sociedade.

Em seu conjunto os textos nos mostram, inequivocamente, a guerra encetada por muitos dos Estados contemporâneos, notadamente os mais desenvolvidos, contra a ameaça da pobreza. São os pobres os representantes de toda e qualquer espécie de prejuízo à sociedade burguesa. Cada pobre como um pacote de ameaças potenciais à saúde, ao bem estar, à segurança, à

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Ao Estado o poder de nos meter na cadeia

integridade física, à propriedade, à estética, à moral, ao lazer, enfim à felicidade dos cidadãos.

Os pobres protagonizam guerras, chacinas, narcotráfico e fome: as cenas mais grotescas do espetáculo midiático mundial. Não bastasse isso, são também os pobres, dentre os humanos, que apodrecem silenciosamente nas celas das prisões, seja em celas individuais com as paredes recobertas de aço inoxidável das empresas prisionais como as que aparecem nos filmes feitos nos Estados Unidos, seja em celas coletivas nas quais apenas a metade dos ocupantes pode deitar-se no chão , enquanto a outra permanece de pé, esperando a vez para dormir. Vidas inteiras passam-se assim. Muitas.

O outro lado dessa mesma ação dos governos empenhados em políticas de controle de base penal é fazernos, aos que estamos fora da prisão, querer justiça e punição dos que desrespeitam a lei. Quando defendemos a lei, quando clamamos ao Estado por segurança, não importando que para isso se danem as pessoas, toda a maquinaria põe-se a funcionar. Basta querer. Um Estado não necessita mais do que o povo pedindo prisão aos bandidos para atuar como delegado do poder de proteger a todos, como instância legítima que decide quem, individualmente deve ser encarcerado e por quanto tempo.

Enfim, para que esta publicação sirva como importante ferramenta para a sedição e não como contribuição para que direcionemos nossas forças ao restabelecimento, ou à volta, ou à recuperação de um Estado Social — como se este fosse menos violento ou mais desejável que o Estado Penal — cabe ter em mente, durante a leitura, que o Estado moderno detém o monopólio da violência que legitimamente nós lhe conferimos.

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escrita encharcada pelo mar;

edson lopes *

obscena ao sol

Pedro Juan Gutierrez. Trilogia suja de Havana. Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 1999, 358 pp.

Pedro Juan Gutierrez. O rei de Havana. Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 2001, 224 pp.

Pedro Juan Gutierrez. Animal tropical. Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 2002, 375 pp.

Na literatura interessa a fragilidade da criação literária, que provém do inesperado, desviando-se dos padrões, das imitações, dos modelos e das colocações dos best sellers. Trata-se de uma outra possibilidade, aquela que privilegia o improvável. Trilogia suja de Havana, Animal tropical e O rei de Havana, três livros que se remetem, comunicam-se, inacabados, um apêndice do outro, trêmulos em carne crua. São três atrevimentos do autor em criar seu próprio espaço, são experimentações de liberdade quando o ambiente em torno é decisivo, fosse Havana ou Estocolmo. Portanto, escrever é um processo avesso à formalização, apresenta-se como fuga, furta-se a reivindicar um estado de coisas, mais uma zona de singularidade, ou aquilo que quer abeirar-se de espaços próprios de singularidades.

“Conseqüentemente minha vida é uma perpétua experimentação entre o nada e o nada. Às vezes, a experimentação se torna tensa e brutal. Não consigo separar artificialmente o que faço e penso daquilo que escrevo” (AT. p.17).

* Estudante de Ciências Sociais, PUC-SP e integrante do Nu-Sol. verve, 2: 296-299, 2002

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Escrita encharcada pelo mar; obscena ao sol

A literatura, no entanto, não é o vivido, nem o vivível; passa, atravessa a vida, fabula-a sorvendo a proximidade de alguns de seus objetos, gostos, porém não lhe reconhece o rigor e nem lhe imprime uma forma em que todo o vivível opera. Aqui, o escrito não retém uma matéria vivida. Conhece-a pela proximidade, pela aventura a que se entregou de passagem. Pedro Juan escreve sobre o que viveu? Serão os seus contos uma autobiografia? Exercícios de memória? Verdade, ou mentira? A memória como máquina seletiva abrevia tempos, de- forma espaços; não se escreve sobre o que viveu. A memória é desproporcional, vem à tona em súbitos descompassos, quase desobedecendo a vontade. Retém uma parte ínfima da vida vivível. O tempo da vida vivida e o tempo de vida armazenado na memória, mantêm-se sob relação desproporcional. A restituição de uma realidade, tal como ela existiu é impossível. O livro é uma ficção, escrever é autorizar um conflito desproporcional entre a fabulação e o seu confuso convívio com a maté- ria vivida. O que pode a memória? Pode com toda certeza manter constante o esquecimento, como máquina singular que se lhe associa sem contradizer. A vida seria impossível com uma memória intensa e completa, como também seria impossível vivê-la.

Será a escritura em primeira pessoa, em Animal tropical e Trilogia suja de Havana, um documento, vivência real, testemunho? Escrever a vida a tomaria por completo. Todas as três obras, ficções. A primeira pessoa não é Pedro, não se identificam, não são os mesmos; mas, definitivamente se encontram, se conhecem, são escrituras de um e de outro. O rei de Havana é uma ficção, Pedro-narrador é uma ficção. Segundo Deleuze a literatura só começa quando nasce em nós uma terceira pessoa que nos destitui do poder de dizer Eu. Para tanto, a literatura não imagina, nem projeta um eu, atinge visões, fabulações, eleva-se até devires e potências1.

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O próprio Pedro Juan afirma não saber o que em seus romances são verdades ou mentiras. Haver mentiras não faz dos romances meras falsidades, as palavras inventadas não estão para o engano dos outros, mas para intensificar acontecimentos e invenções que estão entre a vida. No meio de Havana-sedutora, Pedro, Estocolmo- amolecimento, Malecón, negras putas, sujeira, brutos sexos, merda, balsas, Miami-bússula-norte, suores, perlotas, misérias, orixás, sarnas, turistas, negras, rum, contrabando mulato, ...

“No meio da derrocada, as pessoas riem, sobrevivem, tentam viver o melhor possível, e aguçam seus sentidos e seus olfatos, como fazem os animais mais frágeis e diminutos, que aprendem a concentrar energia e desenvolver diversas habilidades porque sabem que nunca serão grandes, fortes e vencedores” (TSH. p. 297).

Não-históricos, os livros e vidas que se fazem no transbordar das palavras. Ambos passam por todos os componentes e condições dos trinta e cinco anos de construção do homem novo, do socialismo cubano, do bloqueio, mas se desviam, dirigem-se a outros espaços e importâncias. Isto não é história. É revolver merda, fragilizar-se, criar vida.

“Sou um revolvedor de merda. E não é que eu esteja procurando alguma coisa na merda. Geralmente não encontro nada (...) Não procuro nada e não encontro nada. Portanto, não posso demonstrar que sou um tipo pragmático e socialmente útil. Só faço como as crianças, que cagam e depois brincam com a própria merda, comem e se divertem até que chega mamãe, tira eles da merda, dá banho, perfuma e ralha com eles, dizendo que não podem fazer aquilo.” (TSH. p.101).

Para Pedro Juan a vida é mais complexa que a literatura, porém menos intensa. Esta deve exceder em velocidade para manter a tensão, para não se abeirar de uma viagem sonolenta e aborrecida em que apenas

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Escrita encharcada pelo mar; obscena ao sol

se distrai. A intensidade, excita; esfola o autor que apenas senta e escreve com as tripas e com as entranhas, manchando o papel de sangue ao mesmo tempo em que fabula em sexo, misturando andanças vertiginosas. Mas tudo é real, porque lhes é dado uma escrita e viram manchas. Mesmo que o editor e o leitor não entendam o descuido, as excreções e a sujeira. Os entendimentos ordinários são cúbicos, prevêem.

Nota

1 Ver Gilles Deleuze. “A literatura e a vida” in Crítica e clínica. Rio de Janeiro, Editora 34, 1997.

2002

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II. duro

gesto e a tensão,

de comprido,

esvaiu

se num rugido: eclosão.

I. surrea listas foram as ordens gritadas nouvido

ñ vou te contartu do, mas me deixaram de pau

Thiago R. Velúdico. São Paulo, Com-Arte, 2002.